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terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Resenha nº 143 - Matéria Escura, de Blake Crouch


Matéria Escura
Título original: Dark Matter

Título em português: Matéria Escura
Autor: Blake Crouch
Tradutor: Alexandre Raposo
Editora: Intrínseca
1ª Edição
Copyright: 2016
ISBN: 978-85-510-0122-6
Gênero: Ficção Científica americana
150 páginas – capa dura
Bibliografia do autor: Desert Places (2004); Locked Doors (2005) ; Abandon (2009) ; Famous (2010) ; Snowbound (2010) ; Break You (2011) ; Run (2011) ; Pines (2012) ; Wayward (2013) ; Good Behavior (2013) ; The Last Town (2014) ; Dark Matter (2016).

Pouca coisa conseguimos apurar sobre Blake Crouch. Ele nasceu em 1978, em Statesville, Carolina do Norte, EUA. Do próprio livro, nos vem a informação de que “Blake Crouch é roteirista e autor de diversos best-sellers internacionais. Sua triologia Wayward Pines foi adaptada para uma série de TV exibida pela Fox. Seus livros já foram traduzidos para trinta idiomas e venderam mais de um milhão de exemplares. Mora no estado americano do Colorado, com a família. Matéria escura é o seu primeiro romance publicado pela intrínseca.”

Livro super badalado, exposto em gôndolas de livrarias, sua bela capa de cor bem chamativa nos convidava à leitura. Mas, como normalmente faço, não compro livro no lançamento; primeiro, pesquiso, garimpo dados sobre ele. Matéria Escura é uma ficção científica. E me surpreendi com o nome da editora Intrínseca estampado na capa: é que já estou acostumado a ver o selo da Aleph em obras do tipo. Afinal, ela é a especialista em ficções científicas no Brasil. Basta ver os livros pertencentes ao universo Star Wars, as obras de Philip K. Dick. Mas não este Matéria Escura. Adquiri-o e o levei para minha viagem à praia. Livraço! História atraente, bem desenvolvida, embora o final soe – e aqui concordo com uma boa parte das resenhas lidas pela internet afora – meio apressado. Mas nada que perca a leitura.

Aqui vai a primeira dificuldade: conceituar o que seja essa tal matéria escura. Ela é um tipo de matéria diferente, que não reage com a comum, e bem pouco consigo mesma (só reage no quesito força gravitacional). Sua existência, portanto, só pode ser inferida a partir de efeitos gravitacionais sobre a matéria visível, como estrelas, galáxias e aglomerado de galáxias.

Trocando em miúdos: algo afeta a gravitação das estrelas e seus aglomerados, não dá para ver o que é, mas as equações apontam para alguma matéria estranha. Esta é a matéria escura. Estimam os senhores astrofísicos que toda a matéria escura do universo perfaz 84,5% de tudo o que existe. E não compliquemos mais.

Jason Dessen é um professor universitário de física quântica básica. É meio saudosista, uma vez que gosta de escutar música em aparelhos analógicos e tem gosto sofisticado, pois curte Thelonious Monk, um compositor e pianista de jazz dos mais importantes.

Jason é casado com Daniela, que dá aulas de pintura, é mãe de Charlie, um adolescente comum. Aliás, comum é uma palavra que pode ser aplicada à família Dessen, se não fossem as coisas incomuns sob esta camada de normalidade. Um professor universitário e uma artista plástica, que exercem seu trabalhos sem maiores pretensões.

Mas nem sempre fora assim. Num trecho meditativo, Jason observa o filho Charlie e nos diz que:
“É estranho ter um filho adolescente. Uma coisa é criar um menininho, e outra, completamente diferente, é uma pessoa quase adulta esperar que você a ensine a viver. Sinto que tenho pouco a oferecer. Sei que alguns pais enxergam o mundo com clareza e confiança, que sabem exatamente o que dizer aos filhos, mas não sou um deles. Quanto mais envelheço, mais entendo as coisas. Amo meu filho. Charlie é tudo para mim. No entanto, não consigo fugir à sensação de que estou em falta com ele. Lançando-o aos lobos sem nenhum recurso além das migalhas de minha perspectiva incerta.
Abro o armário ao lado da pia e começo a procurar um pacote de fettucine.
— Seu pai podia ter ganhado o Nobel – diz Daniela a Charlie.
Dou uma risada.
— Isso é um exagero.
— Não deixe que ele engane você, Charlie. Seu pai é um gênio.— São seus olhos – respondo. – E o vinho.
— É verdade. Você sabe que é. A ciência não avança mais por sua culpa, porque você ama sua família.
Só me resta sorrir. Quando Daniela bebe, três coisas acontecem: seu sotaque original aflora, ela se torna agressivamente gentil e tudo que fala atende à hipérbole.
— Seu pai me disse uma vez... nunca vou esquecer... que a pesquisa científica consome a vida de uma pessoa... Ele disse...” (páginas 11/12)
Observe, caro leitor, como um bom escritor cedo fornece pistas para o conflito que vai acontecer lá na frente, ainda bem distante. Num simples diálogo familiar, temos pistas importantes. Jason, professor universitário, na visão de sua esposa, está estragando sua vida (ele é um gênio, poderia fazer a ciência evoluir) se tivesse feito outra opção (ele ama a família dele, a pesquisa científica consome a vida de uma pessoa).

O tema aqui é terrivelmente incomodante: somos felizes com a vida que temos? Se escolhêssemos outras opções,  não seríamos mais felizes? É exatamente esta questão seminal que faz Matéria Escura ser o excelente livro que é. A roupagem de ficção científica reveste esta questão posta. Quantas vezes, caro leitor, chegamos à maturidade, contemplamos nossa vida, nossos feitos. E do alto das nossas experiências, concluímos que não é que a vida que temos seja ruim, mas a maturidade, o acúmulo de sentires e de saberes nos fazem perceber, nossas escolhas poderiam sim, ter sido outras. E aí, diante da possível angústia que nos ameaça, disparamos o mecanismo de defesa e dizemos para nós mesmos, ok, deixe estar, estou bem assim.

Matéria Escura constitui-se, no entanto, como ficção científica.

Jason Dessen está na festa em homenagem a seu amigo, Ryan Holder; ele acabou de ganhar o prêmio Pavia, por suas contribuições ao desenvolvimento da ciência. De novo, para não deixar dúvidas, o narrador abre espaço para o diálogo acontecido entre Ryan e Jason:
“Detecto uma faísca de aborrecimento na voz dele, talvez raiva, e está aumentando, como se ele estivesse se irritando com alguma coisa.
Tento quebrar a tensão forçando o humor.
— Está chateado comigo, Ryan? Parece até que você acha que o decepcionei.
— Olha, eu dei aula no MIT, em Harvard, na John Hopkins, nas melhores universidades do planeta. Conheci os filhos da puta mais inteligentes por aí, e, Jason, você teria mudado o mundo se tivesse optado por esse caminho. Se tivesse ido em frente. Mas não: está ensinando física elementar para futuros médicos e advogados de patentes.” (página 16)
Pronto. Dedo na ferida.

E Daniela também fez suas opções. Tinha uma carreira promissora, já expusera numa importante galeria. A relação com Jason aconteceu, ela ficou grávida de Charlie e optou por ser uma professora de curso fundamental, ensinando artes.

A festa de Ryan é fundamental, o ponto impulsionador para esta história seminal. Ao sair de lá, Jason é sequestrado, levado para um lugar secreto.  Tiram-lhe toda a roupa, aplicam-lhe alguma droga desconhecida para ele. Quando ele acorda, está num outro universo, no qual ele é tratado como um cientista genial – alguém que contribuiu para importantíssimas aquisições científicas.

Aqui, Matéria Escura vai introduzir outro fenômeno da física quântica, a ideia de multiversos, ou a famosa Teoria das Cordas. Segundo esta proposição, o universo não é único. Pense num instrumento musical, de cordas. Quando se toca uma corda (no violão, por exemplo), outras notas vibram por simpatia. Esta vibração por simpatia é chamada, na teoria musical, de campo harmônico.

À semelhança do campo harmônico, quando o universo vibra faz vibrar outras frequências, criando outras realidades adjacentes. Ao explorar ficcionalmente esta possibilidade, Blake Crouch imagina então os multiversos, cada qual vibrando em frequências diferentes e abrindo construções de vidas diferentes, embora interligadas.

É assim que Jason Dessen inventou uma máquina (uma caixa de um material super-resistente)  capaz de transportar pessoas por estes multiversos, ofertando imensas possibilidades ao viajante. E porque o cérebro humano não poderia acolher experiência de tal envergadura, ele solicita a elaboração, ao seu amigo Ryan, de um composto químico, capaz de causar acomodação aos efeitos da viagem (naquela dimensão Ryan não ganhou o prêmio Pavia).

Eis como o narrador instituído por Crouch explica esta questão complexa da matéria escura e do multiverso, de modo bem didático:
“—Mas essas outras realidades não existem concretamente.
— Na verdade, elas são tão reais quanto a que estamos vivendo agora – diz Jason.
— Como isso seria possível?
— É um mistério. Mas existem evidências. A maioria dos astrofísicos acredita que a força que mantém as estrelas e as galáxias unidas, aquilo que faz todo o universo funcionar, vem de uma substância teórica que não se pode medir nem observar diretamente. O que eles chamam de matéria escura. E essa matéria escura compõe a maior parte do Universo conhecido.
— Mas o que é exatamente essa matéria escura?
— Ninguém sabe ao certo. Há tempos os físicos tentam formular novas teorias que expliquem o que é e como se originou. O que se sabe é que ela tem gravidade, assim como a matéria comum, mas que deve ser feita de alguma coisa que ainda desconhecemos completamente.
— Uma nova forma de matéria.
— Exato. Alguns teóricos das cordas veem nisso um indício da existência do multiverso.” (páginas 119/120)
Jason, então, é um cientista brilhante, comprovando suas pesquisas, viajando pelos multiversos – onde a realidade em cada qual deles é diferente. Ficcionalmente, o autor leva às últimas consequências esta busca por outras escolhas.

Entretanto, o viajante dos multiversos volta ao ponto inicial de suas possibilidades: procura freneticamente por Daniela e por Charlie nestes universos disponíveis. Este seria o drama do ser humano: uma vez tocado pelas experiências significativas que tornaram sua vida exatamente daquele jeito, talvez não seja mesmo possível trocá-las por outras: elas dotariam a vida do viajante do significado mais importante. Ou seja, eu me construo como pessoa na interação com os outros.

Não, mas o livro não dá trégua, não há paz possível: para Jason, a completa valorização, sua vida entendida na mais intrínseca verdade seria aquela mesma, com Daniela, com Charlie – a sua prosaica vidinha – profundamente valorizada pelas (re)visões provocadas pelas viagens nos multiversos.

Recomendo e muito a leitura deste Matéria Escura. Livro que coloca questões primordiais para o ser humano. Certamente, você não precisará entender os conceitos de multiversos, de matéria escura, da teoria das cordas e até de uma conclusão com cara de coisa absolutamente maluca: o universo, os multiversos são criações da mente humana. Era por isso que Jason usava a droga, capaz de fazer o cérebro “delirar” e criar realidades interdimensionais. E sim, uma vertente da física quântica trabalha com esta ideia “maluca”.

Matéria Escura me encantou e me incomodou. Tem me incomodado. Um dos efeitos colaterais deste incômodo é um olhar mais arguto sobre minha própria vida e uma dúvida na cabeça: estarei valorizando devidamente minhas escolhas? Acho que não...

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