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segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Resenha nº 126 - O Leitor Como Metáfora, de Alberto Manguel


Resultado de imagem para livro o leitor como metáforaTítulo original: The Traveler, The Tower and The Worm
Título em português: O Leitor Como Métáfora – O Viajante, A Torre e A Traça
Autor: Alberto Manguel
Tradução: José Geraldo Couto
Editora: SESC
ISBN: 978-85-9493-056-9
Copyright: 2017
Gênero: Ensaios
148 Páginas
Bibliografia do autor (incompleta): Dicionário de lugares imaginários (The Dictionary of Imaginary Places), 1980; Uma história da leitura (A History of Reading), 1996; Bride of Frankenstein, 1997; No bosque do espelho (Into the Looking Glass Wood), 1998; A Visit to the Dream Bookseller  (Ein Besuch beim Traumbuchhändler), 1998; Reading Pictures: A History of Love and Hate, 2000; Kipling: A Brief Biography for Young Adults, 2000; Comment Pinocchio apprit à lire (How Pinocchio Learned to Read), 2000 ; A Reading Diary, 2004; Com Borges (With Borges), 2004; A Biblioteca à Noite (The Library at Night), 2006; Nuevo elogio de la locura (At the Mad Hatter’s Table), 2006 ; Magic Land of Toys, 2006; The City of Words (CBC Massey Lecture), 2007; Homer's The Iliad and The Odyssey: A Biography, 2007; A Reader on Reading, 2010; The Traveler, the Tower, and the Worm: the Reader as Metaphor, 2013; Uma História da Curiosidade (Curiosity), 2015.
Alberto Manguel nasceu em 1948, em Buenos Aires, Argentina. Cosmopolita, passou a infância em Israel, estudou na Argentina e viveu no interior da França, na Espanha, na Inglaterra e na Itália. É também cidadão canadense. Atua como romancista, editor, organizador de antologias, ensaísta, tradutor. Contribui regularmente com artigos em revistas e jornais. Consta que, sendo filho de embaixador, foi criado por uma ama, pois os pais se separaram quando Manguel era uma criança. Apesar de ter origem judaica, considera-se um ateu. Adquiriu um antigo imóvel no interior da França (Mondion), onde construiu uma biblioteca de aproximadamente 30.000 volumes. Atualmente, vive em Buenos Aires, onde é diretor da Biblioteca Nacional.
Alberto Manguel é figurinha para lá de conhecida nos meios acadêmicos voltados a estudar o fenômeno da leitura. E, pelo menos para mim, uma coisa que lhe empresta certa aura é ele ter sido leitor para Jorge Luís Borges. Não, a preposição para, aí atrás não está errada; é leitor para Jorge Luís Borges, mesmo, e não de. Estou falando do período em que Borges, já cego, contratou Manguel para ser os olhos dele. Manguel lia para Borges.
De Alberto Manguel, já resenhei aqui no blogue A Biblioteca À Noite. Caro leitor, você não gosta de ler livros teóricos, estou certo? Se é assim, peço-lhe que considere a possibilidade de se deixar encantar pelos textos deste escritor. Na faculdade, tive a experiência (comum à quase totalidade dos estudantes) de lidar com textos teóricos importantes, substanciais, mas produzidos com uma aridez de dar azia no cérebro. Parecia que os doutos autores não estavam nem aí para seus leitores obrigatórios; descarregavam sua erudição sobre dado assunto e pronto – o leitor, se quisesse, que se virasse.
O Leitor Como Metáfora – O Viajante, A Torre e A Traça – mas não só ele – conta com um texto teórico com fluidez, gostoso de ler. Alberto é um erudito, mas põe a sua erudição a serviço do leitor, e isto transparece na segurança da pesquisa e das citações necessárias. Seus ensaios parecem uma conversa muito legal entre um professor e seus alunos interessados. Interessados porque o assunto encanta a ambos. O ponto de vista deste livro é o do leitor, daí a explicitação da metáfora tríplice do título: o leitor como viajante, como habitante de uma torre de mármore e como traça.
Há uma introdução, em que o autor cita Nietzsche em epígrafe, dizendo “não existe o que se possa chamar de fatos. Apenas interpretação.” Ela vai servir à perfeição para o que Alberto pretendeu ao planejar seu projeto deste livro. Senão, vejamos como ele inicia sua introdução:
“Até onde sabemos, somos a única espécie para a qual o mundo parece ser feito de histórias. Biologicamente desenvolvidos para ter consciência de nossa existência, tratamos nossas identidades percebidas e a identidade do mundo à nossa volta como se elas demandassem uma decifração letrada, como se tudo no universo estivesse representado num código que temos a obrigação de aprender e compreender. As sociedades humanas estão baseadas nessa suposição: de que somos, até certo ponto, capazes de compreender o mundo em que vivemos.” (página 13)
Esta maneira de ver perpassa toda a filosofia, de Platão a nossos dias. A grande questão: o mundo é o que é e precisamos interpretá-lo, dar-lhe uma significação, ou muito diferente, o mundo não é e nós o criamos como tal, e ao significá-lo, criamos realidades? E me lembro de Yoval Harari, em seu Sapiens - Uma Breve História da Humanidade (já resenhado aqui): a capacidade de efabulação fez o predomínio do Ser Humano sobre as demais espécies. Mas, como diria Belchior, em uma de suas canções de cunho filosófico, “deixando a profundidade de lado”, o que Manguel está nos dizendo nesta introdução é que a tradição letrada é de fundamental importância na interpretação de mundo, mas não é, per se, satisfatória; é preciso a metáfora como força de transferência:
“A linguagem mal toca a superfície da nossa experiência e transmite de uma pessoa a outra, num código convencional supostamente compartilhado, notações imperfeitas e ambíguas que dependem tanto da inteligência cuidadosa daquele que fala ou escreve como da inteligência criativa daquele que ouve ou lê. Para incrementar as possibilidades de entendimento mútuo e criar um espaço mais amplo de sentido, a linguagem recorre a metáforas que são, em última instância, uma confissão do insucesso da linguagem em comunicar diretamente. Por meio de metáforas, experiências num campo são iluminadas por experiências em outro.” (páginas 13/14)
E é, portanto, firmando o pé nas metáforas, que Alberto Manguel faz este estudo da relação dos leitores com seus objetos de desejo, e por extensão, da relação dos leitores com o mundo.
A primeira parte vai tratar do leitor como viajante, ou a leitura como reconhecimento de mundo. Abordando principalmente Santo Agostinho (aquele, de Confissões) e Dante Alighieri (o autor da Divina Comédia), o ensaísta vai aproximar o leitor ao peregrino, em sua jornada de conhecimento do mundo:
“Dante, que escreveu sua Comédia no exílio, devia saber em que sentido amplo ele próprio era um peregrino. Deve ter percebido a proximidade entre sua vida itinerante e a leitura itinerante, e conhecido o amargor (como ele diz na Comédia) de comer “pão estrangeiro com gosto de sal” e de “subir e descer escadas estrangeiras”. “Perambulei como um mendigo virtualmente por todas as regiões por onde se estende esta nossa língua”, diz ele em Convívio, lendo seu caminho Itália afora. Durante os vinte longos anos de exílio, até o último dia de sua vida, a biblioteca de Dante consistia nos poucos livros que ele carregava consigo de um refúgio a outro, aos quais eram ocasionalmente acrescentados os que seus anfitriões lhe emprestavam – uma coleção cambiante que refletia os diferentes estágios e experiências dos vários locais de seu banimento.” (página 51)
A segunda parte, O leitor na torre de marfim, caracteriza, como diz o subtítulo, A leitura como alheamento do mundo. Nesse caso, o ato de ler se reveste de escapismo, de devaneio. E, ajuntando a este alheamento o toque da melancolia ou cansaço de mundo, Manguel aborda, como não podia deixar de ser, o Hamlet, de William Shakespeare:
“Para Hamlet, encerrado na casca de noz de sua biblioteca, o mundo real, o mundo fora dos livros, é um pesadelo aprisionador. Neste sentido, o fantasma do pai de Hamlet surge como uma libertação apavorante. O fantasma demanda implicitamente que Hamlet feche seus livros, saia do seu espaço confinado de palavras e encare os fatos dolorosos, que, como sua “carne sólida, sólida demais”, recusam-se a dissolver-se. Hamlet (diz-lhe o fantasma) precisa relembrar o pai, o rei assassinado, e não “a matéria mais ordinária” escrita em seus livros. Desse modo Hamlet é confrontado brutalmente com uma realidade (ou antes com uma “irrealidade” que é mais real que o real) que substitui os “caros registros triviais” que ele escolheu copiar, com uma realidade terrena que suplanta o palavreado de seus livros e “catálogos”. Esses “catálogos”, mantidos habitualmente por estudantes no tempo de Shakespeare, eram cadernos de citações nos quais eles supostamente deviam copiar exemplos inspiradores e ensinamentos morais dos clássicos.” (página 82)
A terceira parte recebe o título de A traça – O Leitor Como Inventor do Mundo. Como não podia deixar de ser – o leitor experimentado associaria quase de imediato a imagem do leitor-traça com Dom Quixote, de Cervantes – um solitário que, de tanto ler, enlouquece e cria para si um mundo à maneira do mundo dos cavaleiros andantes de antigamente.
Falando sobre o arrebatamento que um livro pode causar no leitor, Alberto Manguel nos explicita:
“E, no entanto, há leitores para os quais o mundo na página adquire tamanha vivacidade, tamanha verdade, que suplanta o mundo dos sentidos racionais. Excluindo os casos clínicos, todo leitor já sentiu, ao menos uma vez, o poder avassalador de uma criatura de palavras, apaixonando-se por certo personagem, detestando visceralmente outro, tendo a esperança de emular um terceiro. Santo Agostinho nos conta que, em sua juventude, chorou pela morte de Dido [primeira rainha da cidade de Cartago, apaixonada por Eneias, que a deixa e ela acaba se apunhalando]. Os vizinhos de Robert Louis Stevenson em Samoa imploraram para que ele lhes mostrasse a garrafa que guardava o diabo. E ainda hoje os Correios de Londres recebem cartas endereçadas ao Sr. Sherlock Holmes no número 221B da Baker Street.” (página 113)
Alberto nos explica, o amante dos livros tornou-se o Louco dos livros e converteu-se na figura da Traça dos livros, estas últimas paródias daquele leitor arrebatado. Para estas traças (para usar a última detratação), o que importa é ler, é o ato da leitura em si.
E, discorrendo sobre o protótipo do leitor arrebatado, nosso ensaísta nos alerta, no que se refere ao “cavaleiro da triste figura”:
“É assim que, em 1605, Cervantes definiu o Louco dos Livros que conhecemos como Dom Quixote. E, no entanto, quando Cervantes retratou seu bravo cavaleiro, não estava propriamente definindo o leitor enlouquecido por seus livros. Em vez disso, Cervantes estava definindo uma sociedade loucamente temerosa de suas próprias inverdades. Sem dúvida, como nos é dito no capítulo de abertura, Alonso Quijano acredita na realidade factual das histórias que lê. Mas então, ao longo do romance, fica claro que a visão de mundo de Dom Quixote é algo mais complexo que a mera ilusão. Em várias ocasiões, quando está a ponto de se deixar arrebatar pela fantasia urdida por suas leituras, Dom Quixote, com lúcida intuição, supera o hiato entre o que é real no mundo e o que é real em sua imaginação.” (página 126)
Em sua última parte, Conclusão, Alberto Manguel fecha suas reflexões nos trazendo Gustave Flaubert, citando o romance inacabado, Bouvard e Pécuchet – dois idiotas simplórios que pensam poder entender o mundo ao se porem a ler todos os livros já publicados.
Num belo parágrafo que funciona como síntese da discussão proposta pela obra, citando o Madame Bovary, do mesmo Flaubert, Anna Karenina, de Tólstoi e novamente o Dom Quixote, pondera Manguel:
“Emma Bovary devora livros e imagina que as vidas ficcionais são dela própria, que ela é uma heroína de Balzac ou Sue. Dom Quixote devora livros e molda seu comportamento de acordo com certos códigos ficcionais que julga justos e apropriados, embora saiba que não é nenhum Lancelote, nenhum Amadis [de Gaula]. Anna Karenina não vê na ficção que lê nem personagens ideais nem ideais de conduta, mas simplesmente vidas imaginárias que zombam dela e a atormentam com a vida que ela própria não está vivendo. Não a vida ficcional, mas sua própria vida, não a lady Mary, mas a da própria Anna Karenina, menos uma imagem do mundo que um exemplo de ação do mundo, um exemplo de como é viver, ao mesmo tempo consciente de que a vida lida não é sua própria vida. E assim como Anna Karenina compreende o que significa ser lady Mary sem acreditar que ela mesma seja lady Mary, compreendemos o que significa ser Anna Karenina sem sermos de fato Anna Karenina.” (página 138)
Peço desculpas ao leitor deste blogue, me excedi realmente no tamanho das transcrições. Tenho a desculpa de que resenhar um livro teórico não é o mesmo que resenhar um livro de ficção. Não se trata, aqui, de reduzir um enredo ao seu estado mínimo, dando leves impressões de personagens. Resenhar um livro teórico, e principalmente um da riqueza e erudição de O Leitor Como Metáfora significa rastrear-lhe os pontos principais de argumentação, de exposição de ideias e de referências. Poderia ser mais sintético? Penso ser possível maior concisão. Não fui capaz, entretanto; talvez, por causa do meu entusiasmo com o texto. É um magnífico livro – reconheço – para quem ame literatura e se disponha a entender um pouco melhor o processo do qual participa.
Para terminar, meu caro amigo leitor, já o imagino com um sorriso malicioso nos lábios e nos olhos, me indagando diretamente: “e você, senhor Cleuber, que leitor é você?” Certo, leio mais do que a média dos leitores brasileiros, mas não me considero uma traça. Não leio qualquer coisa em qualquer tempo. Também não me vejo como um leitor numa torre de marfim, realizando uma leitura escapista, até porque faço resenhas e as publico neste blogue. Ao refletir sobre as leituras, claramente reflito sobre o mundo. Então, salvas as licenças poéticas, considero-me um leitor do primeiro time metafórico, o leitor viajante. Concorda?
Outra nota 10, com entusiasmo.


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