Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Resenha nº 125 - Como Um Romance, de Daniel Pennac

Resultado de imagem para livro como um romance
Título original: Comme un roman
Título em português: Como um Romance
Autor: Daniel Pennac
Tradutor: Leny Werneck
Editora: Rocco
Copyright: 1992
ISBN: 85-325-0425-6
Edição: 4ª
Páginas: 167
Gênero: Ensaio
Bibliografia do autor: Au bonheur des ogres, 1985; La Fée Carabine, 1987; La Petite Marchand de Prose, 1989; Monsieur Malaussène, 1995; Des Chrétiens et des maures, 1996; Monsieur Malaussène au théâtre, 1996 ; Aux fruits de la passion, 1999 ; Les enfants de Yalta, 1978 ; Messieurs les enfants, 1997 ; Le dictateur de Hamac, 2003 ; Chagrin de l’école, 2007 ; Comme un roman, 1992 ; Gardiens et Passeurs, 2000, entre outros.

Daniel Pennacchioni, mais conhecido como Daniel Pennac, nasceu em Casablanca, Marrocos, em 01/12/1944. É filho de um oficial francês que servia nas colônias francesas. Professor de língua francesa em uma escola de Paris e muito apaixonado pela pedagogia, morou no Brasil, em Fortaleza, por dois anos, na década de 1980. É um aficionado por nosso país. Entre seus títulos editados no Brasil estão A Pequena Vendedora de Prosa (La Petite Marchand de Prose), Senhor Malaussène (Monsieur Malaussène), Frutos da Paixão (Fruit de la Passion), Esses Senhores Os Meninos (Monsieurs les enfants), Kamo e a agência Babel (Kamo et L’Agence Babel), Kamo e a ideia do século (Kamo et L’Idée du Siècle), O olho do lobo (L’oeil du Loup), Vira-lata virador , além deste Como Um Romance (Comme un roman). Em 2007, ganhou o prêmio Renaudot por Mágoas de Escola (Chagrins de l’école) – um romance autobiográfico.
Como um romance não é um romance. É um ensaio. E o que será um ensaio? Vejamos. De acordo com a definição corrente,
Um ensaio acadêmico é um gênero textual que tem como objetivo discutir determinado tema. Ele consiste na exposição das ideias e pontos de vista do autor sobre determinado tema, com base em pesquisa referencial – ou seja, o que outras pessoas também dizem sobre aquilo – e conclusão. Busca-se originalidade no enfoque, sem, contudo, explorar o tema de forma exaustiva.
O título nos fornece uma chave interpretativa: como um romance. Escrito à maneira de um romance. Portanto, um ensaio em sentido bastante amplo que, a rigor, a universidade não conseguiria classificar como um verdadeiro ensaio. Tem, do documento acadêmico, a intenção de analisar criticamente um problema levantado – no caso, por que não lemos tanto –; a semelhança com o gênero textual, entretanto, apresenta um hibridismo com os textos narrativos (romances). Logo, Daniel Pennac se propõe a analisar e discutir um problema real, as causas de tanta gente não gostar de ler. Ele o faz por meio do artifício de tornar o texto leve, poético, sarcástico às vezes, caminhando para o lado de uma narrativa longa. Talvez, a melhor caracterização seria um ensaio poético. Não, decerto não; ensaios críticos e ao mesmo tempo poéticos não existem. Desisto. Mas Daniel Pennac faz isto conscientemente, como veremos mais tarde.
Este livro é um queridinho dos professores de língua e literatura. E de cara já vou dando um motivo: é uma delícia de se ler. Veja como o autor escreve, na página 13, por onde ele começa, efetivamente, seu ensaio:
“Ele dormiu em cima do livro. A janela, de repente, lhe pareceu imensamente aberta sobre uma coisa qualquer tentadora. Foi por ali que ele decolou. Para escapar ao livro. Mas é um sono vigilante: o livro continua aberto diante dele. E no pouco que abrimos a porta de seu quarto, nó o encontramos sentado junto à escrivaninha, seriamente ocupado em ler. Mesmo se nos aproximamos na ponta dos pés, da superfície de seu sono ele nos terá escutado chegar.”
Pennac nos diz que o problema vem de longe. Antigamente, no tempo em que o livro era difícil de se ter, pois o livro era muito caro e não andava na mão de qualquer, os leitores eram malvistos pela falta de costume de se ler. Mulheres, principalmente, não liam, pela simples razão que, durante muito tempo, elas não eram alfabetizadas. Ora, para que gastar tempo com a alfabetização delas, se elas não iriam trabalhar fora? Sua competência, segundo se pensava, era cuidar do lar e dos filhos e para isso, não havia necessidade de tal investimento.
Vieram, entretanto, os tempos mais amenos. Fizemos questão de contar histórias para nossos filhos:
“Sejamos justos. Nós não havíamos pensado, logo no começo, em impor a ele a leitura como dever. Havíamos pensado, a princípio, apenas no seu prazer. Os primeiros anos dele nos haviam deixado em estado de graça. O deslumbramento absoluto diante dessa vida nova nos deu uma espécie de inspiração. Para ele, nos transformamos em contador de histórias. Desde o seu desabrochar para a linguagem, nós lhe contamos histórias. E essa era uma aptidão em que nos desconhecíamos. O prazer dele nos inspirava. A felicidade dele nos dava fôlego. Para ele, multiplicávamos os personagens, encadeávamos os episódios, refinávamos as armadilhas... Como o velho Tolkien para seus netos, inventamos para ele um mundo. Na fronteira entre o dia e a noite, nos transformávamos em romancista, só dele.” (página 17)
Evoca J. R. R. Tolkien, de O Senhor dos Anéis. E segue, dizendo no capítulo 4, que ensinamos a ele (nosso filho) tudo sobre o livro numa época em que ele não sabia ler. Lá para os lados do capítulo 27, página 67, o autor dispara sua arma sarcástica:
“E assim vão nossas existências: ele traficando fichas de leitura, nós face ao espectro de sua repetência, o professor em sua matéria ultrajada... E viva o livro!”
A defesa é que somente existe a possibilidade de gostarmos de ler quando lemos por prazer. Descompromissadamente, sem metas a atingir. Ler por gosto. Daniel nos relata sua própria experiência como professor: começou a ler livros em voz alta, para sua classe. Nada de cobrar provas aos alunos, sobre os livros lidos:
“E obrigado também, senhores Márquez, Calvino, Stevenson, Dostoiévski, Saki, Amado, Gary, Fante, Dahl, Roché, vivos ou mortos! Nenhum, entre esses trinta e cinco refratários à leitura, esperou que o professor terminasse qualquer de seus livros para terminá-lo antes dele. Para que deixar para a próxima semana um prazer que se pode ter numa noite?” (página 111)
Mas a grande, genial sacada de Daniel Pennac está reservada para a parte IV do livro, sob o título O que lemos, quando lemos e o subtítulo esclarecedor, ou os direitos imprescritíveis do leitor, sussurrado entre parênteses. E ele os desfia, um a um:

  1. O direito de não ler.
  2. O direito de pular páginas.
  3. O direito de não terminar o livro.
  4. O direito de reler.
  5. O direito de ler qualquer coisa.
  6. O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível).
  7. O direito de ler em qualquer lugar.
  8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali.
  9. O direito de ler em voz alta.
  10. O direito de calar.
O tal “bovarismo” a que Pennac se refere, no sexto mandamento do leitor, acima, refere-se ao livro Madame Bovary, de Gustave Flaubert e é assim que o termo é explicado:
“É assim, grosso modo, o “bovarismo”, esta satisfação imediata e exclusiva de nossas sensações: a imaginação infla, os nervos vibram, o coração se embala, a adrenalina jorra, a identificação opera em todas as direções o cérebro troca (momentaneamente) os balões do cotidiano pelas lanternas do romanesco.” (página 157)
Como um romance é uma obra que paga o que promete, um gostoso livro de se ler. E esta figura de linguagem usada logo aí atrás, gostoso de se ler, é uma sinestesia (quando duas sensações se misturam, como no exemplo retrocitado, paladar e visão). Ah, se todos os livros que já li na vida fossem sinestésicos! Teria sido muito mais fácil...
Só não corri o risco de odiar ler porque, quando fui para a escola – temível lugar das leituras obrigatórias – eu já conseguia ler alguma coisa, naturalmente pouco e mal, mas já lia. E a vontade, o encantamento de ler mais e mais havia sido instaurado por minha irmã, ela mesma uma leitora do tipo traça. A língua francesa, aprendi outro dia na sala de aula, tem um termo apropriadíssimo para quem devora livros e livros, comme moi: papivore. Pois sou um papivore. E de carteirinha. O feiticeiro Pennac misturou os gêneros para melhor seduzir o leitor.
Se você desejar ler o meu exemplar de Como um romance, de certo Daniel Pennac, sinto muito, não vou emprestá-lo. Não o vendo, não o empresto, não o doo: egoisticamente, esse volume é meu, só meu. Se quiser, que compre o seu...
Nota 10, com entusiasmo.

Nenhum comentário: