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sexta-feira, 25 de março de 2016

Resenha nº 72 - A Ilha, de Victoria Hislop


Resultado de imagem para livro A Ilha, de Victoria HislopVictoria Hislop é uma inglesa nascida na cidade de Kent. Ela é graduada em Letras pela Universidade de Oxford; trabalhou no mercado editorial e tornou-se jornalista. Este A Ilha foi o seu primeiro livro, publicado em 2006. Aqui, neste blog, já foram resenhadas as obras dela O Retorno e O Fio. A presente edição brasileira, bem como as outras, saiu pela editora Intrínseca.

Na capa do livro nos deparamos com o marketing, nos seduzindo para a leitura sob a alegação de “mais de um milhão de exemplares vendidos em todo o mundo”, e logo após a reprodução do parecer do prestigioso jornal inglês The Observer: “Finalmente – um best-seller que toca o coração... repleto de sagas de família, amores condenados e segredos devastadores. ”

Este resumo nos dá, de antemão, alguns elementos sobre o livro e sobre o modo de escrever romances de Victoria Hislop. Uma fórmula bem-sucedida, que, por isso mesmo, será repetida em O Retorno e O Fio. Nossa escritora trata de dramas familiares, seus segredos; pessoas emergentes do passado afetam o presente dos personagens. Um conflito de grandes proporções permeia a cena dramática, não só a tocando, mas influenciando-a. A vida dos personagens não seria a mesma, caso o conflito (leia-se guerra) não tivesse acontecido.

Hislop conduz suas histórias com mão segura. Isso já está evidente mesmo nesse seu primeiro livro. Sua característica se compõe de forte pesquisa da cultura na qual se movem seus personagens, a ambientação da história em países diferentes, como se nos levasse em uma viagem turística, o uso de alguns vocábulos em língua nativa, com a visível intenção de “dar cor local” às suas criaturas. Seu poder descritivo é notável: a um tempo, poético, preciso, sucinto.

A Ilha inicia sua trama exatamente por uma descrição excelente, não geográfica, mas sim do estado de ânimo dos personagens envolvidos. Observe o tratamento poético, melancólico, do estado psicológico dos seres que fazem a travessia de barco entre a cidade grega de Plaka, em 1953, e a ilha de Spinalonga, do outro lado do canal marítimo da cidadezinha:

“Um vento gelado fustigava as ruas estreitas de Plaka, e o frio do ar de outono rodeava a mulher, paralisando seu corpo e sua mente com uma dormência que quase lhe aniquilava os sentidos, mas não aliviava em nada sua tristeza. Ao atravessar cambaleando os últimos poucos metros que a separavam do embarcadouro, ela se apoiou pesadamente no pai, e seu andar lembrava o de uma velha, para quem cada passo causava uma pontada de dor. No entanto a dor não era física. Seu corpo era tão forte quanto o de qualquer outra moça que houvesse passado a vida respirando o ar puro de Creta, e a pele era tão jovial e os olhos de um castanho tão intenso e brilhante quanto os de qualquer garota da ilha.

O pequeno barco oscilava e balançava no mar, desequilibrado pelo peso do carregamento de pacotes de tamanhos diversos, amarrados uns aos outros com barbante. O homem mais velho embarcou com cuidado e enquanto tentava com uma das mãos manter o barco firme entendeu a outra para ajudar a filha. Depois que ela estava em segurança a bordo, envolveu-a de forma protetora com um cobertor para protegê-la do frio e do vento. A única indicação visível de que ela não era apenas mais um item do carregamento era as longas madeixas de cabelo castanho-escuro que esvoaçavam e dançavam livremente ao sabor do vento. Ele soltou com cuidado as amarras que prendiam a embarcação – não havia mais nada a dizer nem a fazer –, e começavam a viagem. Não era o início de uma travessia curta para entregar mantimentos. Era o início de uma jornada sem volta para uma vida nova. A vida em uma colônia de leprosos. A vida em Spinalonga. ” (página 7, não numerada)

A esta altura, o leitor poderá estar se perguntando por que diabos o resenhista começou seu trabalho de maneira tão diferente do seu habitual e estampou, logo de cara, as palavras do jornal The Observer e esta transcrição tão longa da abertura do romance. Como você, inteligentemente, já depreendeu, a seleção não é gratuita e dois serão os motivos declarados: primeiro, a partir de uma breve análise do material transcrito, inicio a parte da resenha na qual se dá ao leitor uma visão ligeira do enredo do livro; segundo, desejo dar uma ideia ao leitor do que pode render a chamada close reading (leitura atenta ou pormenorizada).

Com bastante cuidado para não cometer spoilers, que prejudicariam as surpresas propiciadas pela leitura, vamos à primeira parte, a extração de informações contidas no material selecionado, para orientar o leitor.

The Observer nos afirma “[o romance é]...repleto de sagas de família, amores condenados e segredos devastadores.” Sagas são histórias que envolvam os feitos ou dramas de várias gerações; serão, portanto, feitos ou dramas de várias gerações de famílias envolvidas em algum acontecimento, cujos componentes serão amores condenados (por quê?) e segredos mantidos em sigilo (quais?) pelo seu potencial destrutivo das relações familiares.

O trecho inicial do romance nos informa: duas pessoas – um homem mais velho e uma jovem mulher pulam do embarcadouro para uma frágil embarcação. Algumas palavras mais adiante, ficamos sabendo tratar-se de pai e filha. A filha está sofrendo horrivelmente, pois apoia-se pesadamente no pai e o vento gelado fustigava-lhe o corpo quase até a dormência, mas não lhe diminuía a dor da alma. Parte da descrição é calcada em cima de expressões de instabilidade, inevitabilidade, falta de esperança. A filha é como outra jovem qualquer de sua idade; seu corpo é forte, com o vigor próprio da idade. Então, o que pode estar lhe trazendo tanta infelicidade? A única segurança sentida pela jovem é a presença do pai, o acolhimento e o compartilhamento da tristeza.

“A única indicação visível de que ela não era apenas mais um item do carregamento era as longas madeixas de cabelo castanho-escuro que esvoaçavam e dançavam livremente ao sabor do vento. ” O narrador nos conta que a jovem se sentia como uma “coisa”, isto é, sentia-se despersonalizada, completamente estática, entregue ao seu sofrimento, sendo apenas o movimento esvoaçante dos seus cabelos o que ainda lhe assinalava vida. Não era apenas uma travessia costumeira de Plaka à ilha de Spinalonga; era algo além disso, um caminho sem volta, para uma vida nova. E o pior, era uma vida numa colônia de leprosos, pois Spinalonga era uma ilha destinada aos portadores de hanseníase.

As 365 páginas do livro contam os acontecimentos pelos quais passam a família Petrakis e a família Vandoulakis. Serão eventos trágicos, impactantes, ampliados pela Segunda Guerra Mundial, finalmente alcançando a região de Creta e, por consequência, a cidadezinha de Plaka. Histórias de resistência contra os alemães, aclamação de heróis; em Spinalonga, um grupo de atenienses traz alento à sofrida vida dos leprosos e quase lhes torna a vida invejável.

A jovem Alexis é filha de Sofia Fielding. Alexis deixa a casa materna, em Atenas, para estudar em Londres.  A filha tem um namorado, Ed, em um relacionamento no qual se sente insegura. Afinal, sua mãe e seu pai têm um casamento maduro, e partindo deste modelo, fica patente sua insegurança quanto ao amor por Ed. Daria para partilhar uma vida com ele? Sofia sempre se calara quanto ao passado. Alexis sentia uma curiosidade imensa em saber mais alguma coisa, mas sua mãe sempre se calara diante de suas perguntas. A relação delas não era tranquila; já com o pai, as coisas iam melhores.

Mas há também um momento no qual Sofia, mesmo a contragosto, resolve lhe abrir o acesso à história da família. Não tem coragem de contar, ela mesma, sobre sua vida, mas diz à filha para ir até a cidadezinha cretense de Plaka e procurar sua amiga Fotini. Sem delongas, Alexis chega ao seu destino, antes deixando Ed em Hania, uma cidade distante. O encontro com Fotini, beirando os setenta anos, mas com um frescor ainda presente, é fundamental, é o turning point do romance. Esse termo inglês é usado para designar uma “virada” substancial no enredo, uma mudança de rumo.

Victoria Hislop faz seu narrador, a partir do momento em que Fotini começa suas revelações, assumir a condução da narração.

Serão revelações progressivas, terríveis – Alexis amadurece por meio delas e pela amizade aconchegante da generosa Fotini, amiga de sua mãe. Em certo momento, os “destinos” (uso a palavra entre aspas, com o sentido de destino traçado pelas necessidades da trama) da família Petrakis e da família Vandoulakis se unem. Outra tragédia terá o seu lugar. Por tudo, Alexis passa a compreender muito melhor a história sofrida de sua mãe.

Não pense o leitor ser esta obra uma história em que tudo dará errado. Os dramas acontecerão, de fato; haverá amores proibidos, traições, enganos, desenganos, esperanças, desesperanças – mas, ao final, vários personagens sairão com seus relacionamentos depurados e melhores criaturas. A Vida imita a Arte ou a Arte imita a Vida? Tanto faz.

Dizem ser o romance moderno um dos gêneros literários tributários das tragédias gregas. Neste trabalho de Hislop, tanto como na vida dita real, as criaturas sofrem seus revezes, suas crises cheias de sofrimentos. Entretanto, de dentro das crises, expurgadas pela catarse, lentamente elas se levantam e retomam suas vidas, modificadas.

A utilização da close reading nesta resenha, ainda que não detalhada como deveria ser, dá uma pequena mostra ao leitor de que, partindo das informações minuciosas de um texto, conseguimos acessar os quebra-cabeças de uma obra. Não quer dizer, em absoluto, que o autor tenha pensado, passo a passo, em tudo. Não. Muito será inconsciente, produto da ampla experiência que todos temos com o gênero romance. Além do mais, o ser humano é um ser contador de histórias. Esses modelos narrativos, vindos de tudo o que lemos, funcionam como um gigantesco arquivo em nossas mentes.

Essa não foi uma leitura. Foi uma releitura. Embora feita com a intenção de resenha para um blog, o simples fato de me interessar por uma releitura já dá indício do valor reconhecido do livro. Preciso urgentemente  organizar melhor minha pequena biblioteca; não há espaço para tudo o que desejo ler. Então, uma das saídas é exatamente selecionar entre livros cuja leitura será a primeira e a única e aqueles outros, cujo valor ou prazer de reler justifique mantê-los. A Ilha, O Retorno e O Fio, de Victoria Hislop são livros a serem mantidos.

HISLOP, Victoria. A Ilha. Editora Intrínseca. Rio de Janeiro, RJ: 2005

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