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sábado, 4 de abril de 2015

Resenha nº 50 - Onde Andará Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu

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Caio Fernando Loureiro Abreu nasceu na cidade de Santiago, Rio Grande do Sul, em 12/09/1948. Estudou Letras e Artes Cênicas na UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo sido ali colega de outro escritor, João Gilberto Noll. Caio abandonou os dois cursos e trabalhou como jornalista nas revistas Nova, Manchete, Veja e alguns jornais. Em 1968, nos “Anos de Chumbo”, foi perseguido pelo famigerado DOPS – Departamento de Ordem Política e Social – tendo ficado escondido no sítio da escritora paulista, Hilda Hilst. Foi exilado em 1970, por um ano, na Europa; viveu na Espanha, na Suécia, nos Países Baixos, na Inglaterra e, por fim, na França. Fernando Abreu teve a coragem de se assumir homossexual em plena ditadura militar. Em 1994, descobriu ser portador do vírus HIV. Faleceu em 25/02/1996.

Conhecia o escritor Caio Fernando Abreu por ouvir comentários, ler algo sobre ele na internet, mas ainda não o havia lido, apesar de ter esse livro na minha biblioteca. Iniciei, desta forma, a leitura ontem, 03/04 e a terminei hoje, 04/04/2015, ansioso por resenhá-la.

Antes de tudo, o livro é sobre a questão da identidade; a palavra pentimento, de origem italiana, é abordada várias vezes durante a narrativa deste Onde Andará Dulce Veiga?. Pentimento é um conceito muito vinculado à pintura: significa uma pintura sobre um esboço anterior; em muitos casos, com o passar do tempo, a tinta da pintura final clareia e deixa ver o leve esboço de origem. O uso frequente do vocábulo tem tudo a ver com a falta de identidade, já que duas realidades, ainda que não completamente distintas entre si, causam uma espécie de lusco-fusco, uma sobreposição. Perpassa o livro uma amargura, um desencanto contido, que às vezes não consegue evitar o grito:

“- Há anos que você sempre quer me ajudar, e acaba atrapalhando tudo. Não foi você quem contou para Alberto que eu estava louca em Nova York? Me faz um favor: não tenta nunca mais me ajudar. Eu quero quebrar a cara sozinha, meu amor. Como quebrei, depois que Ícaro morreu.

De repente, sem ninguém esperar, Márcia jogou-se na cama e começou a chorar, o rosto enfiado nos lençóis encardidos. Em frente àquele morto-vivo travestido de outra morta-viva, como atores que não tivessem decorado o texto nem as marcas de um filme ou peça, talvez livro, de qualidade duvidosa, Patrícia e eu nos entreolhamos.”(página 155)

O narrador da história, também nomeado Caio, é um sujeito completamente perdido, numa cidade grande. Não sabe que rumo dar a sua vida. Não consegue se decidir sobre sua própria sexualidade. E tudo começa quando ele consegue um “trabalhinho de repórter no Diário da Cidade, talvez o pior jornal do mundo” (página 2). Ele se lembra da cantora Dulce Veiga, desaparecida há mais de vinte anos e comenta o caso com seu chefe, que é fã de carteirinha da artista desaparecida. Dá-lhe carta branca para pesquisar e fazer uma crônica saudosa. A publicação faz sucesso e assim ele começa o trabalho de detetive, atrás da cantora.

Dulce (que, a seu turno, também não sabia direito o que querer da vida)  tivera seus casos extraconjugais e acabou se envolvendo com quem não devia, num tempo de ditadura. Acabou desaparecendo de cena, não tendo tempo nem para comparecer ao show ao vivo já marcado. Os jornais da época fizeram um alvoroço, mas, depois, como tudo aliás, o caso foi caindo no esquecimento.

Uma banda de rock faz sucesso naquele momento, com o nome de Márcia Felásio e As Vaginas Dentatas. O narrador descobre que Márcia é filha de Dulce Veiga. Construindo seu percurso investigativo, nosso repórter avança por meio de fiapos de revelações a respeito da diva da música; nem sempre as pessoas estarão dispostas a colaborar com seus esforços. Há um momento em que ele quase desiste. Para não cometer lamentáveis spoilers, já que, num romance de trama policial o enredo tem grande importância, não vou mais falar das surpresas que aguardam o leitor.

Caio Fernando Abreu tem um estilo extremamente conciso e preciso, sua imaginação passeia pelas cenas como as lentes de uma câmara:

“Castillos bateu no ar um de seus cigarros. Desde que eu o conhecia, há uns vinte anos, fumava três ou quatro ao mesmo tempo. Alguns equilibravam-se na beira da mesa, o contorno metálico cheio de manchas escuras, outros espalhavam-se pelos cinzeiros perdidos entre pilhas de laudas, fotos, clips, pastas, envelopes, copos plásticos, adoçante artificial, tubos de cola, rolos de dinheiro, latas de coca-cola dietética e um boi nordestino de cerâmica, que eu conhecia de outras redações. Por trás dele, o ventilador soprou as cinzas contra os meus olhos. A sala acarpetada devia estar numa temperatura próxima de um forno crematório.”(página 14)

O aspecto amargo-irônico transparece em descrições como esta:

Até encontrar um táxi, passei por dois anões, um corcunda, três cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro maneta, mais um enrolado em trapos como um leproso, uma negra sangrando, um velho de muletas, duas gêmeas mongolóides, de braço dado, e tantos mendigos que não consegui contar. A cenografia eram sacos de lixo com cheiro doce, moscas esvoaçando, crianças em volta.” (página 21)

Mas há espaço para o poético, como no trecho em que o autor descreve o cair da tarde:

“Ergui a cabeça para as manchas cada vez mais douradas do crepúsculo, e foi nesse momento que a vi, incendiada de prata, um pouco acima da faixa violeta sobre os edifícios mais altos, a primeira estrela, devia ser Vênus. Primeira estrela que vejo, lembrei, realiza o meu desejo, pulávamos amarelinha riscada com pedaços de tijolo pelas calçadas do Passo da Guanxuma, eu sempre queimava o limite do céu na hora de dar o giro de costas, num salto, olhos fechados, sete vezes repetir, olhos abertos presos na estrela até fazer o último pedido, depois não olhar mais para cima. Parado entre quatro esquinas, a primeira estrela à minha esquerda, o arco-íris à direita, de frente para a cidade, de costas para o parque, respirei fundo o ar lavado pela chuva e pedi. Pedi sete vezes em voz alta, não havia ninguém por perto para olhar e talvez rir, um homem não muito jovem, todo molhado, falando sozinho, pedindo não sei o quê.” (página 36)

O autor utiliza duas formas de ordenar o tempo, durante a narrativa: 1) tempo cronológico, para a sequência dos fatos que se seguirão até o desvendamento do mistério de Dulce Veiga; 2) tempo não cronológico, para tratar de suas lembranças, que progridem ou recuam na sequência, dependendo do que os fatos lhe evocam.

Várias referências a músicas, como  Nada Além, maior sucesso de Dulce Veiga e regravada pela filha, Márcia Felásio, se fazem presentes. Em outras passagens, é a referência literária que prevalece:

“Mais que de ti”, lembrei, “mais que de ti, lembro dos teus sapatos amarelos.” Há mais de dez anos aquele verso – seria um verso? – rondava na minha cabeça. Só isso, nunca soubera o que vinha depois. Haveria mesmo algo depois? Ai como eu estava entediado. Espiei o jornal, um filme novo de David Cronemberg, eu adorava A mosca, chegara a escrever um artigo comparando-o com Kafka: a-mesma-gênese-maldita-de-todos-os-ousiders-que-originou-A-metamorfose, qualquer coisa assim, pretensa. Claro, eu me identificava um pouco, afinal tinha meus aninhos de terapia: moscas, baratas, insetos. Estava fazendo o possível para ficar deprimido, e não consegui parar.” (página 53)

Este foi um feliz primeiro contato com Caio Fernando Abreu. Romance maduro, não diria autobiográfico (para afirmar isso sem ser leviano precisaria conhecer a fundo a biografia do autor). Entretanto, acredito que todo aquele que escreve adiciona à matéria do trabalho algo de suas experiências, nem que sejam revisitadas, reinterpretadas. Excelente obra, digna de toda a recomendação. Antes de terminar, apenas mais um parágrafo.

O volume que tenho é parte de uma coleção chamada de Grandes Escritores da Atualidade; saiu em banca de revistas, publicada pela Planeta DeAgostini. Os volumes são muito bem-cuidados, e os autores selecionados, de grande qualidade. Ela saiu em 2003, dizem alguns, para fazer concorrência à outra coleção da Abril, de Clássicos. Não obstante a qualidade visível e o cuidado na seleção, a dose não foi repetida. Perde-se assim uma oportunidade ótima de se divulgar autores pouco conhecidos do grande público.

ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga?. Coleção Grandes Escritores da Atualidade. Editora Planeta DeAgostini. São Paulo, SP: 2003.

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