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terça-feira, 20 de março de 2018

Resenha nº 117 - O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë


Resultado de imagem para livro O Morro dos Ventos Uivantes Mulheres na literaturaTítulo original: Wuthering Heights
Título em português: O Morro dos Ventos Uivantes
Autor: Emily Brontë
Tradutora: Rachel de Queiroz
Edição: Folha de São Paulo
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-7949-351-5
Literatura Inglesa
Gênero Literário: Romance

Terminei hoje, dia 20/03/2018, a leitura deste clássico da literatura inglesa. Vivo ainda os efeitos da leitura; oscilo entre a mais profunda antipatia do protagonista da história, Heathcliff, e uma enorme compaixão. Pontos para a Literatura, arte da palavra escrita: o livro acrescenta-me uma experiência que, afinal, poderia ter sido vivida na vida real, mas, felizmente, não o foi. E fico sem entender porque uma autora de tão dilatados talentos narrativos só produziu esta obra. E – mais espantoso ainda – como é que o talento para a literatura marcou esta família? Afinal, as três irmãs Brontë, Emily, Charlotte e Anne, além do irmão mais velho, Patrick Branwell (romancista, poeta e pintor), constituem um caso raro de quatro escritores contemporâneos dentro da mesma família. 

Emily Jane Brontë nasceu 30/07/1818 em Thornton, Inglaterra, a quinta de seis filhos de Patrick Brontë, vigário na Igreja da Inglaterra e Maria Branwell. Emily era irmã de Charlotte e de Anne, também escritoras. Além das duas, havia um irmão mais velho, Patrick Brunwell, pelo que consta, também com grande talento para a literatura, mas sem se destacar neste campo, não tendo publicado nada. Charlotte é autora do livro Jane Eyre e Anne publicou Agnes Grey.
Emily sempre teve a saúde comprometida pelas condições severas do lugar onde moravam. A casa era muito perto do cemitério local e a água que lhe chegava estava contaminada. Thornton, Yorkshire, era um lugar de condições climáticas bastante severas, ventava muito. A geografia do lugar incluía muito morros. Certamente, tais condições serão importantes na composição do seu único livro, este O Morro dos Ventos Uivantes, publicado sob o pseudônimo masculino de Ellis Bell.
No velório do irmão Brunwell, Emily contraiu forte constipação, em setembro de 1848 e sua saúde piorou deveras quando contraiu tuberculose. Não quis ser tratada por um médico e recusou todos os remédios; no dia 19 de dezembro de 1848, ela finalmente expirou.
O que é um clássico? Uma das respostas possíveis a esta pergunta é uma obra que consegue não se limitar a seu tempo; mesmo contendo elementos formativos próprios de sua época, consegue transpor esses limites e manter o vigor e algo a dizer a períodos distantes do seu. O Morro dos Ventos Uivantes enquadra-se perfeitamente dentro desta definição. Apesar de conter informações características da Inglaterra do Século XIX, em pleno Romantismo, sua história de amor, singular para a época, pela narrativa tensa, chega até nossos dias conservando o mesmo poder encantatório. Esta história forte, sobre amores atormentados, de fortes apelos sexuais, foi recebida pela crítica da época com muitas reservas. Não acreditavam que aquilo pudesse ser escrito por uma mulher. Quando O Morro veio a lume, Charlotte Brontë já havia publicado a segunda edição do seu Jane Eyre (este sim, bem recebido pela crítica).
Se pudéssemos resumir o livro tratado aqui em uma palavra, talvez a melhor fosse ressentimento. O protagonista Heathcliff é um menino órfão, trazido após uma viagem, pelo Sr. Earnshaw. Hindley, o filho legítimo logo se enciúma, por achar que está perdendo a afeição do pai. Catherine se afeiçoa rapidamente ao pequeno que chega.
Morto o casal que o adotara, Heathcliff passa a sofrer humilhações constantes e se torna melancólico e bruto. Catherine e ele desenvolvem um amor muito grande um pelo outro, mas ela tem de fazer uma escolha e esta recai sobre Edgar Linton, por ele ter condições de sustentá-la. Heathcliff parte da propriedade de Wuthering Heigths e, quando retorna, está rico (o romance não nos explica por que meios).
Catherine tem uma filha e morre ao dar à luz. Desesperado, Heathcliff quer se vingar de todos; seu amor correspondido, mas não desfrutado, as humilhações pelas quais havia passado são os motores que desatam a personalidade de um dos mais intrigantes personagens de toda a literatura. Beirando, por vezes, a loucura, tendo alguns laivos de consideração para com algumas pessoas, como a empregada Ellen Dean (apelidada Nelly), talvez ele fosse classificado, hoje, como portador de bipolaridade.
Heathcliff é odioso, sob vários aspectos. Entretanto, quando o leitor vai acompanhando sua formação, ao ter ciência dos maus tratos a que fora submetido após a morte dos seus benfeitores, consegue pelo menos entender o móvel de suas atitudes.
O Morro dos Ventos Uivantes tem um fluxo de tempo lento, comum nos romances da época. Tempo lento, permeado de descrições, não quer dizer desinteressante. A autora consegue manter nossa atenção pelo clima tenso criado. E, observe, caro leitor, como a descrição da propriedade, Wuthering Heights, é a extensão do personagem Heathcliff:
“Um degrau nos levou à sala de estar da família, sem o intermédio de um vestíbulo ou de um corredor; chamam aqui a essa peça: ‘the house’ – ‘a casa’ por excelência. Em geral, serve ao mesmo tempo de cozinha e sala de visitas: em Wuthering Heights, contudo, a cozinha fora forçada a recuar para outro sítio: pelo menos escutei um rumor de conversa e um tilintar de utensílio culinários, lá dentro; e não descobri nenhum sinal de que na grande lareira da ‘casa’ se assava, fervia-se ou cozia-se pão; nas paredes não luziam caçarolas de cobre nem escumadeiras de estanho. Mas, a um canto, a luz e o calor se refletiam esplendidamente sobre filas de imensos pratos de peltre, intercalados com pichéis e jarros de prata, enchendo prateleira sobre prateleira, até o teto, num vasto aparador de carvalho. Por falar em teto, creio que o daquela sala jamais fora pintado: sua anatomia completa exibia-se nua ao olhar curioso, exceto num trecho onde o escondia um paiol de madeira, carregado de bolos de aveia, de pernis de vaca e carneiro, e de presuntos.” (página 13)
Este ambiente lúgubre é completado por uma passagem um pouco adiante:
“— É melhor que deixe a cachorra quieta – grunhiu o Sr. Heathcliff em uníssono com ela, detendo com um pontapé demonstrações mais ferozes. – Não está acostumada a receber festas... nem foi criada para cão de colo. – Caminhando depois para uma porta lateral, tornou a gritar: - Joseph!
Das profundas da adega, Joseph resmungou indistintamente, mas não deu indícios de que subia; o patrão mergulhou, pois, em sua busca, deixando-me vis-à-vis com a feroz cadela e um casal de mal-encarados e peludos cães de pastor, que com ela partilhavam a ciosa guarda de todos os meus movimentos. Fiquei imóvel, poi não me agradava nada a ideia de lhes entrar em contato com as presas; mas, crente de que não entenderiam insultos mímicos, entreguei-me, infelizmente, ao prazer de piscar e fazer caretas para o trio; algum trejeito que tomou minha cara irritou a dama que, de repente, se enfureceu e me saltou aos joelhos. Atirei-a ao chão e corri a interpor a mesa entre nós. Essa manobra atiçou a matilha inteira: meia dúzia de quadrúpedes adversários, de vários tamanhos e idades, deixou tocas ocultas e saltaram para a arena.” (página 15)
O Morro dos Ventos Uivantes tem dois narradores: na primeira parte, tudo se inicia quando o Sr. Lockwood chega à propriedade de Heathcliff, desejando alugar por uma temporada a outra propriedade, Thrushcross Grange. Nela, há uma empregada que se tornará amiga do locatário, Ellen Dean, de apelido Nelly. Nelly será a segunda narradora, contando toda a história pregressa daquela localidade e do drama vivido por todos os personagens daquela família. Depois, o Sr. Lockwood retoma a narrativa, quando, muito tempo depois, ele retorna à localidade e resolve visitar a antiga propriedade.
Por que O Morro dos Ventos Uivantes obteve tamanha permanência, sendo transformado em filmes várias vezes, sendo lido em pleno Século XXI? Não será somente pelo talento narrativo da autora, Emily Brontë. A verdade é que ele trata de temas universais, a questão do amor genuíno abafado por questões financeiras, vingança, ódio, relações familiares complexas – temas que têm sempre algo a dizer a qualquer época.
O título dado aqui no Brasil – O Morro dos Ventos Uivantes –, faz com que muita gente que não leu o livro o julgue uma história de terror. “Ventos uivantes” remete a um ambiente de terror, uma vez que o adjetivo ‘uivantes’ lembra lobo e nos permite associações com narrativas de lobisomens, por exemplo. Nada mais enganoso.
Há sim, o ambiente soturno, a presença de fantasmas, ou pelo menos, a sugestão de presença destes seres, tão comuns na cultura inglesa:
“Eu não enxerguei nada. Mas nem o menino, nem os carneiros davam um passo à frente, de modo que os fiz passar pelo caminho de baixo. Provavelmente o Pastorinho, andando solitário pela charneca, recordava as tolices que ouvia em cada da boca dos pais e dos companheiros e por sua vez enxergava também os fantasmas. Contudo, eu mesma já não gosto de andar no escuro. Nem gosto de ficar sozinha nesta casa triste: é mais forte do que eu. Será para mim uma alegria quando eles partirem daqui para Thrushcross Grange.” (página 382)
Quando Emily Brontë fez a opção de contar a parte mais interessante do romance, os dramas vividos pelos personagens, pela boca de Nelly, ela constrói um narrador não confiável, pois Nelly Dean, nitidamente, tomar partido, o tempo todo, da sua querida Cathy; Ellen tem a tendência evidente de absolvê-la de qualquer culpa, e não tem a mesma complacência com os outros. É um narrador-personagem, isto é, as coisas que narra afetam a ela também.
Finalmente, elementos característicos do período romântico (século XIX) estão presentes, como a idealização extrema do objeto do amor:
“— Ela abandonou isso tudo levada por uma ilusão – respondeu o homem. – Fazia de mim um herói de romance e esperava da minha dedicação cavalheiresca uma ilimitada indulgência. Mal a posso considerar uma criatura racional, tão obstinada se mostrou em me transformar num indivíduo fantástico, baseando-se em sonhos que inventava.” (página 175)
Atravessa o romance o reflexo do estado melancólico do personagem em elementos da natureza:
“Cathy fitou muito tempo a florzinha solitária que tremia no seu abrigo e afinal respondeu:
— Não, não quero tocar nela; parece melancólica, não é mesmo, Ellen?
— Sim – respondi –, quase tão abatida e estiolada quanto você; seu rosto não tem uma pinga de sangue. Dê-me a mão e vamos correr. Anda tão lenta que me atrevo a dizer que a acompanho.” (página 268)
O Morro dos Ventos Uivantes é um romançaço – não fosse um clássico. Todos os seus personagens são multifacetados: Isabella, Hariton, Heathcliff, Catherine, Cathy, Hindley, Joseph, o menino Linton... Todos tocados por algo de loucura, de instabilidade, de excessos emocionais, por ressentimentos, mediados pela voz narradora de uma Nelly parcial, mas de maior estabilidade emocional. Os dois únicos seres de construção mais simples, nesta saga familiar, são o Dr. Kenneth e o Sr. Lockwood. A imediata associação que me vem à mente são as criaturas do escritor russo Dostoiévski: seres atormentados, perdidos, inquietos.
Livro recomendado a quem ama os clássicos. E para aqueles que ainda não se aventuraram por algum. Só há um meio de a gente gostar de ler clássicos: é pegá-los e lê-los.
Nota atribuída: 10,0


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