Autor: Mia Couto
Editora:
Companhia das Letras
Edição: 1ª ed.,
12ª reimpressão
Copyright: 2004
ISBN:
978-85-359-1381-1
Gênero Literário:
Contos
Origem:
Moçambique
Número de
páginas: 154
Bibliografia do autor: Contos – Vozes Anoitecidas, 1986; Cada Homem É Uma
Raça, 1990; Estórias Abensonhadas, 1994; Contos do Nascer da Terra, 1997; Na
Berma de Nenhuma Estrada, 2001; O Fio das Missangas, 2004. Romances – Terra Sonâmbula,
1992; A Varanda do Frangipani, 1996; Mar Me Quer, 2000; Vinte e Cinco, 1999; O
Último Voo do Flamingo, 2000; O Gato e O Escuro, 2001 (literatura infantil); Um
Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra, 2002; A Chuva Pasmada, 2004; O Outro
Pé da Sereia, 2006; O Beijo da Palavrinha, 2006; Venenos de Deus, Remédios do
Diabo, 2008; Antes de Nascer O Mundo, 2009; Pensageiro Frequente, 2010; A
Confissão da Leoa, 2012; Mulheres de Cinza (primeiro volume da trilogia As
Areias do Imperador), 2015; A Espada e A Azagaia (segundo volume da trilogia As
Areias do Imperador), 2016. Crônicas – Cronicando, 1988; O País do Queixa Andar,
2003; Pensatempos- Textos e Opinião, 2205; E Se Obama Fosse Africano? e Outras
Interinvenções, 2009. Prêmios – Prémio Nacional de Ficção, 1995; Prémio
Virgílio Ferreira, 1999; Prémio Mário António, 2001 (pelo livro O Último Voo do
Flamingo); Prémio União Latina de Literaturas Românicas, 2007; Prémio Passo
Fundo Zaffarini e Bourbon, 2007; Prémio Eduardo Lourenço, 2012; Prémio Camões,
2013; Neustadt International Prize for Literature, 2014.
António Emílio Leite Couto – o nosso
Mia Couto – nasceu na cidade moçambicana de Beira, em 05/07/1955, onde também
se escolarizou. Seu pseudônimo tem origem curiosa: ele gosta de gatos e
aproveitou como o irmão pequeno pronunciava seu nome; ficou-lhe, então, Mia
Couto. Iniciou a ser publicado já aos 14 anos de idade e três anos depois,
mudou-se para a capital de Moçambique – à época Lourenço Marques –, hoje Maputo.
Ele começou a cursar Medicina na faculdade, mas não terminou, indo até o
terceiro ano. É considerado um dos escritores mais importantes de Moçambique e
seu romance, Terra Sonâmbula, é reconhecido como um dos dez melhores livros da
literatura africana do século XX.
O fio das missangas contém 29 breves contos de alta carga poética,
como se pode conferir no trecho abaixo, transcrito do conto Meia culpa, meia própria culpa:
“Fosse eu invocada por voz de macho. Fosse eu retirada da ausência por desejo de alguém. Me tivesse calhado, ao menos, um homem completo, pessoa acabada. Mas não, me coube a metade de um homem. Se diz, de língua girada: o meu cara-metade. Pois aquele, nem meu, nem cara. E se metade fosse, não seria só a cara, mas todo ele, um semimacho. Para ambos sermos casal, necessitaríamos, enfim, de sermos quatro.” (página 39)
Esta mesma passagem de cima vai
servir-nos para comentar outras coisas. Perceberam alguma semelhança de estilo
com algum escritor brasileiro, leitores deste blogue? A influência de Guimarães
Rosa é bastante nítida e confessada por Mia Couto. Mas não é simples cópia,
apropriação indébita, plágio. O escritor moçambicano serve-se do português e o
mistura com várias influências de dialetos e línguas nativas de Moçambique. Outro
ponto de se notar no mesmo excerto é que o autor instaura uma voz eminentemente
feminina a narrar suas histórias (ou estórias).
Couto justifica a escolha do
título no introito do livro:
“A missanga, todos a vêem.
Ninguém nota o fio que,
em colar vistoso, vai compondo as missangas.
Também assim é a voz do poeta:
um fio de silêncio costurando o tempo.”
Acompanhemos a poesia constante
com que Mia Couto exerce sua escrita:
“Era essa tarde, já descaída em escuro. Ressalvo. Diz-se que a tarde cai. Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. Por um cansaço de luz, um suicídio da sombra. Lhe explico. São três os bichos que o tempo tem: manhã, tarde e noite. A noite é quem tem asas. Mas são asas de avestruz. Porque a noite as usa fechadas, ao serviço de nada. A tarde é a felina criatura. Espreguiçando, mandriosa, inventadora de sombras. A manhã, essa, é um caracol, em adolescente espiral. Sobe pelos muros, desenrodilha-se vagarosa. E tomba, no desamparo do meio-dia.” (página 53, A Despedideira)
Há nesses contos surpreendentes
inversões de perspectivas, nas quais fatos corriqueiros são abordados de modo
completamente inusitado, devidamente embrulhados com sarcasmo, como no seguinte
destaque:
“Sou um qualquer da vulgar raça humana, sem comprovado pedigree, se tiver cabimento em jornal, será nas páginas de anúncios desclassificados. Já o meu cão, ao contrário, é de apurada raça, classe comprovada em certificado de nascença. O bicho é bastante congênito, cheio de hereditariedade. Retriever, filho de retriever, neto de bisneto. Na pura linha dos ancestrais, como os reis em descendência genealógica. Mais caricato é o nome, de tão humano, quase me humilha: Bonifácio. Nome de bicho? Vou ali e não venho.” (página 103, O dono do cão do homem)
Um dos processos de formação de
palavras de que dispõe nossa língua portuguesa é o da aglutinação, como no
caso, por exemplo, da palavra aguardente (água+ardente, com perda de um dos ‘aa’).
Mia Couto utiliza este processo intensamente, criando novos termos como ‘saia
almarrotada’ (alma+amarrotada), mulher eferográvida (esférica+grávida), etc. Também o nosso Guimarães Rosa se vale deste recurso, criando imagens complexas.
Em outras vezes, aparecem os
jogos de palavras:
“As outras moças esperavam pelo domingo para florescer. Eu me guardava bordando, dobrando as costas para que meus seios não desabrochassem. Cresci assim, querendo que o meu peito mirrasse na sombra. As outras moças queriam viver muito diariamente. Eu envelhecendo, a ruga em briga com a gordura. As meninas saltavam idades e destinavam as ancas para as danças. O meu rabo nunca foi louvado por olhar de macho. Minhas nádegas enviuvavam de assento em assento, em acento circunflexo.” (destaque meu, página 31, A saia almarrotada)
Obviamente, não serão todos os
leitores que vão se sentir motivados para a leitura deste O fio das missangas. Não por ser difícil, os textos não contam com
palavras rebuscadas, o leitor médio não teria muito o trabalho de ir ao
dicionário e desvendá-las. Entretanto, deverá estar disposto a apreender
significados novos causados por deslocamentos de sentidos, o que torna a leitura invariavelmente mais reflexiva. Devo deixar claro
aqui, não vai nenhuma crítica àqueles que prefiram narrativas de ação, de
suspense, ou aquelas nas quais o enredo se destaca como o item mais importante
a ser observado. Vejam, por exemplo, os romances policiais; ali, o enredo é
tudo.
Inegavelmente, porém, o leitor de
Mia Couto – como o de Guimarães Rosa – deverá investir tempo e percepção diante
de novos modos de olhar fatos comuns do dia a dia. Por mim, não é todo dia que
tenho disposição para literatura deste tipo; há de ser naqueles em que minha
sensibilidade esteja receptiva, alinhada com tal proposta e eu esteja
disponível para uma leitura mais acurada, mais minuciosa.
Por tudo isto, recomendo o livro.
É uma obra extraordinária, de alto valor literário; a prosa poética é, na
verdade, uma gênero literário híbrido: não se organiza em estrofes, mas em parágrafos;
dos poemas, pode ter as rimas, a métrica, uma voz lírica, figuras de estilo e de
pensamento.
Pretendo voltar a ler este O fio
das missangas com o mesmo cuidado e aplicação com que o li agora.
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