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quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Resenha nº 228 - Contos de Horror da América Latina, Vários Autores

 



 

Título original: Contos de Horror da América Latina

Autores: Vários

Editora: TAG Experiência Literárias

Edição: n/c

ISBN: 978-65-88526-26-2

Origem: América Latina

Gênero literário: Contos de Horror (Coletânea)

Coordenação: Laura Viola Hübner/Kailaine Eduarda da Rosa

 

Este não é o gênero de literatura que costumo frequentar: uma coletânea de contos de horror. Você pode me perguntar: por que leu, então? Bom, tenho algumas razões – somente uma mais convincente. Recebi o volume de brinde da TAG.

Ao ler a introdução e dar de cara com a seguinte informação, minha curiosidade foi incentivada:

“Este é não é um livro de Realismo maravilhoso, é um livro de horror. Ainda assim, muitos dos autores e autoras aqui presentes são considerados precursores do movimento que eternizaria nomes como Gabriel Garcia Márquez, Jorge Luiz Borges e Silvina Ocampo. Entre outras semelhanças, isso pode se dar por nossos monstros não terem dentes afiados nem se alimentarem de sangue; eles apresentam dentes humanos, às vezes podres, toleram alho e cruzes – alguns até mesmo as veneram. Nossos monstros são a nossa própria realidade, por vezes assombrosas.” (página 9 – grifo meu)

Ora, se são monstros da nossa própria realidade, já me é possível até gostar desta coletânea. Minha implicância com o gênero não é propriamente o ambiente gótico das narrativas. São as referências a um tal e qual inverossímil sobrenatural, com caveiras e esqueletos flutuando por aqui e por ali. Não gosto de contos de cripta, motivo que me faz ficar distante de reconhecidos escritores como H. P. Lovercraft e Stephen King.

Dez contos compõem Contos de Horror da América Latina, e este passeio pela literatura dos nossos vizinhos foi outro fator de aproximação. O filho, de Horacio Quiroga; Os porcos, de Júlia Lopes de Almeida; O Cemitério, de Lima Barreto; O Homem morto, de Leopoldo Lugones; O juramento, de Humberto de Campos; Ervas e alfinetes, de Juana Manuel Gorriti; O bebê de tarlatana rosa, de João do Rio; De além-túmulo, de José Juan Tablada; A causa secreta, de Machado de Assis e A galinha degolada, de Horacio Quiroga.

Destes autores, apenas tinha ouvido falar, como autores de contos de horror, de Horacio Quiroga e de Machado de Assis. O nosso Machado se aventurou também, embora pouca gente o saiba, por trabalhos de ficção científica.

Leopoldo Lugones, Juana Manuel Gorriti, José Juan Tablada me eram desconhecidos; Humberto de Campos, João do Rio, Júlia Lopes de Almeida, Lima Barreto são autores dos quais nem desconfiava terem produzido trabalhos no gênero horror.

De fato, os monstros aqui são da nossa realidade. Loucos, aprisionados em situações sem controle, atormentados pelo amor calado a uma mulher casada mancham estas páginas de sangue e sofrimento. Não há fantasmagorias, como no famoso conto de Edgar Allan Poe, O gato preto – trabalho ao qual me rendi, por ser muito bem escrito.

Não será apropriado resumir cada um dos contos deste Contos de Horror da América Latina. Por isso, devo selecionar alguns, para dar uma ideia ao leitor que lê este blogue. E começo por Ervas e alfinetes, de Juana Manuela Gorriti.

O conto começa por um diálogo, em que uma pessoa perguntou a um cético doutor se ele acredita em maldições. Como é de se esperar, o profissional da saúde responde não acreditar nas maldições de origem diabólicas ou que tenham relação com o sobrenatural. Ele acredita apenas nas de origem natural.

O doutor conta então um caso, passado em La Paz, onde ele havia angariado a fama de magnetizador – baseado em Anton Mesmer. Neste ambiente, apresentou-se a ele uma jovem de boa procedência social. Santiago, o prometido desta senhora, padecia de uma rigidez no corpo inteiro, impossibilitado de andar e com muitas dores. O doutor tratou-o com ervas de seu conhecimento.

Entretanto, encontrou escondido no travesseiro do paciente uma boneca, com agulhas espetadas por toda a coluna cervical. O doutor põe a boneca em seu bolso e vai embora. Ao chegar em casa, sua mulher descobre a tal boneca e arranca, um a um, os alfinetes já enferrujados. O paciente é curado.

Fica o doutor na defesa de sua tese, a de que as suas beberagens preparadas de acordo com técnicas pré-estabelecidas haviam sido eficazes. Já o interlocutor deste caso, no mínimo, curioso – e segundo suas próprias inclinações – acredita ter sido o feitiço, o vodu solucionado.

Outro conto selecionado é o A causa secreta, de Machado de Assis. Conta-nos o narrador machadiano que uma mulher muito bonita, foi contaminada com a tísica – tuberculose, para a qual não havia cura à época – e morria aos poucos:

“Nos últimos dias, em presença dos tormentos supremos da moça, a índole do marido subjugou qualquer outra afeição. Não a deixou mais: fitou o olho baço e frio naquela decomposição lenta e dolorosa da vida, bebeu uma a uma as aflições da bela criatura, agora magra e transparente, devorada de febre e mimada de morte. Egoísmo aspérrimo, faminto de sensações, não lhe perdoou um só minuto de agonia, nem lhos pagou com uma só lágrima, pública ou íntima. Só quando ela expirou é que ele ficou aturdido. Voltando a si, viu que estava outra vez só.” (página 122)

O médico aconselha ao marido que vá dormir um pouco, para restaurar as forças. Na sala, junto ao cadáver, fica só o Garcia:

“Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois, como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na testa. Foi nesse momento que Fortunato [marido] chegou à porta. Estacou assombrado; não podia ser o beijo de amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero. Não tinha ciúmes, note-se; a natureza compô-lo de maneira que lhe não deu ciúmes nem inveja, mas dera-lhe vaidade, que não é menos cativa ao ressentimento. Olhou assombrado, mordendo os beiços.” (página 123)

Fica aí a recomendação de leitura. Pelo que vi, muitos associados ao clube devem não ter gostado do brinde da TAG, pois os cederam para venda em sebos virtuais. São todos bons contos, bem escritos, mas a seleção e a orientação dos trabalhos desagradem a gregos e a troianos.

Por um lado, aqueles diletantes dos contos de horror, com fantasmas vindo assustar ou possuir os vivos, com cadáveres malcheirosos saindo das sepulturas ou pântanos para se vingarem, o livro é leve demais. Para aqueles outros, que definitivamente não gostam do gênero e preferem livros de outro universo, o brinde da TAG ficou pesado demais.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Sou daqueles que apreciam, antes de tudo, um texto bem escrito.

sábado, 17 de agosto de 2024

Resenha nº 227 - Água Funda, de Ruth Guimarães

 




Título original: Água Funda

Autora: Ruth Guimarães

Editora: TAG/Editora 34

Edição: 1ª

Copyright: 2018

ISBN: 978-65-5525-178-4

Gênero Literário: Romance

Origem: Literatura Brasileira

 

Ruth Guimarães – nascida Ruth Guimarães Botelho – veio ao mundo em 13/06/1920, na cidade de Cachoeira Paulista e faleceu em 21/05/2014. Dos 4 aos 9 anos passou na fazenda que seu pai administrava e lá bebeu da fonte dos causos contados pelos peões. Toda esta gente iletrada dominava um acervo de histórias fantásticas, que classificamos como folclore, e possuía uma imensa sabedora popular baseada na experiência.

Há coisas neste Brasil que a gente não entende. Como pode uma escritora do calibre desta Ruth Guimarães ficar esquecida tanto tempo? Escritora e professora universitária, consta que entendesse muito de mitologia grega, traduzisse do francês para o português e fosse, nada menos, do que a primeira divulgadora da literatura de Dostoiévski no nosso país.

Ruth escreveu muito. Entre suas obras, constam Água Funda (sua primeira obra), 1946; Os filhos do medo, 1950; Mulheres célebres, 1960; As mães nas lendas e na história, 1960; Lendas e fábulas do Brasil, 1989; Crônicas valeparaibanas, 1992; Histórias de onça, 2008 – para citar o mínimo.

Água Funda teve sua primeira edição no mesmo ano do lançamento do gigante literário João Guimarães Rosa, Sagarana. Ambas as obras se servem do jeito de falar e narrar do homem simples do interior. Consta que Ruth conseguiu a tiragem de três mil volumes – uma proeza e tanto.

Precisamos contextualizar este Água Funda. O século XIX vira crescer o café como o principal produto de exportação brasileira. O Vale do Paraíba, com suas amplas fazendas do chamado “ouro negro” se enriqueceram, pela combinação de pelo menos três fatores: o valor alto alcançado pelo principal produto brasileiro, as terras férteis do vale, a facilidade de escoar o produto pelo porto de Santos e a facilidade da mão-de-obra escrava.

Casarões luxuosos foram construídos, com o que de melhor existia na época, com a máxima tecnologia possível. Muita coisa era importada da Europa. Mas o declínio foi também rápido: a libertação dos escravos desequilibrou o preço do café brasileiro no mercado internacional. A par disto, a exaustiva monocultura empobreceu a terra. O crack da bolsa, nos Estados Unidos (ocorrido em 1929) abalou a economia do mundo e no Brasil não poderia ser diferente.

É neste ambiente, portanto, que se constrói o romance Água Funda: na exaustão da cultura do café, em algum local imaginário entre o Vale do Paranaíba, São Paulo, e Maria da Fé, sul de Minas. Esta região é, também a ambientação de obras de Monteiro Lobato, por exemplo, Cidades Mortas. Outra obra de referência literária para esta época do declínio da cafeicultura é A Falência, de Júlia Lopes de Almeida.

No parágrafo inicial, o narrador onisciente nos conta:

“Se era boa? Tão boa como mel de jati. É que a Mãe de Ouro tinha enfeitiçado o homem. A Mãe de Ouro mora do outro lado da serra. Pra lá fica Juruna, no Itaparica, e é um estirão de mais de cem vezes a distância de Nossa Senhora dos Olhos D’Água a Maria da Fé. Pois ele bateu a pé, moço, bateu a pé, com o sapicuá de farinha nas costas. Água não era preciso. Água dá à toa por aí, brota do chão, e nenhum filho de Deus nega água a quem tem sede.” (página 17)

Podemos notar aí o jeito de falar do homem simples interiorano. O uso de termos regionais (sapicuá). A repetição de termos, tão frequente no português coloquial (Pois ele bateu a pé, moço, bateu a pé) e a ocorrência de elemento do folclore brasileiro (Mãe de Ouro). Mãe de Ouro seria uma figura assim como a Iara – no livro, elemento de sedução.

O enredo do livro nos conta de Sinhá Carolina, herdeira orgulhosa da fazenda Nossa Senhora dos Olhos d’Água. O casamento de Sinhá Carolina começou bem. Ela, herdeira da fazenda, logo começou o sofrimento:

“É ditado dos antigos: casamento que começa com foguete, acaba com porrete. Esse não acabou com porrete, mas foi muito pior. Também já tinha sido mal-agourado. No dia do casamento, um guainumbi de papo branco entrou voando no quarto. No começo tudo são flores. Não é só em casamento. Os dois pombinhos, assim que vieram morar nesta casa, se davam como Deus com os anjos. Depois o Sinhô começou a se atirar em tudo quanto era farra, junto com seu Pereira. Se é verdade que a porca de sete leitões aparece perto do angico, para marido tresnoitador, Sinhô foi um que se encontrou com ela muitas vezes. Mulher, para ele, qualquer uma servia. Andava atrás de quanta saia aparecia por aí. E até disseram para a mucama, que veio com Sinhá, tinha tido um filho dele. Deus não me castigue, se não é verdade, que eu não vi. Soube por boca do povo.” (página 19/20)

Entretanto, a Sinhá tinha casado contra a vontade dos pais, era muito soberba, de modo que nunca reclamava nada com ninguém. Quando arranjou uma escrava angolana para os serviços de casa, separou o casal negro e nem as intervenções da própria filha foram capazes de abrandar-lhe o coração.

“Pesando bem as coisas, Sinhá não tinha culpa. Era bruta e ruim, mas não estava nela e os tempos eram assim. O que aconteceu depois para uns foi o castigo, para outros não foi. E não foi mesmo. Foi só ensino. Quem nunca passou miséria não sabe quanto doem certas coisas, e só aprende quando fica com o sinal na carne. O garrote mais bem marcado é aquele que levou ferro mais quente e mais fundo no couro.” (página 22)

Em outro núcleo dramático do romance, aparecem Curiango e Joca. Vejamos como o narrador – onisciente, mas parcial – nos descreve a beleza de Curiango, portadora deste apelido porque é inquieta, gosta de cantar já de madrugadinha:

“Era desse tamanhinho assim e já era uma galanteza. Depois de moça então... Não é dizer que seja bonita de admirar. Nem é bem boniteza. É uma coisa que puxa os olhos da gente, que arrepia, que enleia, que aquece, e que umas mulheres têm e outras não têm.” (página 61)

Joca e Curiango terminam por se casar.

Certo dia, Joca e João Rosa viram uma estrela belíssima no céu. Ela fora caindo, até sumir do outro lado da terra. Respeitoso, João Rosa reverenciou a estrela, identificando-a com a Mãe de Ouro – personagem de nosso folclore. Joca debochou:

“João Rosa falou baixinho, meio com medo:

— A Mãe de Ouro...

— Louvado seja Deus! Sempre vi, na minha vida, essa Mãe de Ouro tão falada.

Aí, o Joca entrou no meio da conversa:

— Mãe de Ouro... Hum... Mãe de bosta, com perdão da má palavra. Aquilo é uma estrela que mudou de lugar.

— Ela escuta, Joca!

— Que escute!

— Se não acredita, não abuse...

Ele agravou a Mãe de Ouro, porque era abusante como ele só. Mas pagou. Ela escutou a praga e veio. Porque, se não fosse a praga, podia bem ser que ele escapasse.” (página 115)

Daí para frente, Joca tem surtos. Completamente alheado do mundo, sai em busca desta Mãe de Ouro, sem nunca encontrá-la...

O que acontecerá com Joca? Ele se verá livre da sedução da Mãe de Ouro? E a outra personagem, a Choquinha, assim chamada por que está sempre de cócoras? Choquinha aparece naquele lugar assim de repente, sem passado nem futuro, vivendo numa pequena casa cedida de favor. Qual será o passado desta personagem?

Água Funda é constantemente comparado a duas obras de peso na literatura mundial: Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo e Cem Anos de Solidão, do colombiano Gabriel Garcia Márquez. Esta comparação se dá pela aproximação do realismo fantástico. Não posso dizer se esta aproximação é adequada ou não - não li, ainda, os livros em questão -, mas posso ir ao conceito deste tal realismo fantástico e ver se a Água Funda aí se enquadra.

O conceito de realismo fantástico é bastante fluido, mas, neste tipo de história, a realidade (fatos, tecnologia, logicidade) convive com a superstição (sobrenatural, elementos fantasiosos, alogicidade). Os personagens envolvidos não estranham os acontecimentos, como se eles pertencessem à normalidade. Não é o que lemos em Água Funda.

A Mãe de Ouro, por exemplo, permanece como uma espécie de “entidade” sobre-humana, contra a qual nenhuma potência humana poderá resistir. Nesta contestação do nosso livro pertencer ao movimento literário famoso na América do Sul, apoio a professora Miriam Bevilacqua, em seu canal Biblion, no YouTube.

Cumpre-nos, por último, chamar a atenção para o uso intenso dos ditados populares. Ditados são generalizações de fatos observados na experiência dos dias, elevados à categoria de verdades absolutas. Por exemplo:

Casamento que começa com foguete termina com porrete.

O garrote mais bem marcado é aquele que levou ferro mais quente e mais fundo no couro

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Resenha nº 226 - Uma Casa No Fim do Mundo, de Michael Cunningham




Título original: A Home At The End Of The World

Autor: Michael Cunningham

Tradutora: Isa Mara Lando

Editora: Cia das Letras/TAG

Edição: 2ª

Copyright: 1990

ISBN: 978-85-359-3299-7

Gênero Literário: Romance

Origem: Literatura Americana

 

Michael Cunningham nasceu na cidade de Cincinnati, no estado americano de Ohio, mas cresceu em Pasadena, na Califórnia. Cursou Literatura Inglesa na Universidade de Stanford, graduando-se. Recebeu, mais tarde, o prêmio de Master of Fine Arts. Enquanto estudava, teve alguns trabalhos publicados nos periódicos Atlantic Monthly e Paris Review.

Aqui, no Brasil, foram publicados Uma casa no fim do mundo (1990), Laços de sangue (1995), As horas (1998), Dias exemplares (2005), Ao anoitecer (2010) e A rainha da neve (2015). As horas é romance que o notabilizou como autor.

Uma casa no fim do mundo traz uma história envolvendo um triângulo amoroso entre Jonathan, Bobby e Clare. Na verdade, tal triângulo é um pouco diferente do habitual, pois se, de um lado, Bobby e Clare formam realmente um casal, Jonathan se une aos dois no campo da amizade – uma espécie de amor sem sexo.

Uma terceira personagem vem compor esta história, Alice. Ela é mãe de Jonathan. O livro me pegou pela complexidade destes personagens, pela escrita extremamente bem-cuidada, de cunho psicológico do autor e pela sua habilidade em manejar quatro vozes, quatro narradores diferentes – cada um dos componentes do triângulo central e Alice. Algo que é muito difícil de se fazer, sem se perder a coerência da narrativa – o que demonstra a habilidade de Cunningham.

Ao ler, vou fazendo anotações em post-its; este é, de todos os 226 livros resenhados neste blogue, o que mais anotações minhas teve. Como gosto, apresento-lhe o parágrafo inicial, atribuído a Bobby:

“Certa vez meu pai comprou um conversível. Não me pergunte. Eu tinha cinco anos. Ele o comprou e veio dirigindo até em casa com tanta naturalidade como se estivesse trazendo um balde de cascalho da estrada. Imagine a surpresa de minha mãe. Ela guardava elásticos nas maçanetas das portas. Lavava os sacos plásticos usados e os pendurava no varal para secar, uma fileira de mesquinhas águas-vivas domésticas flutuando ao sol. Imagine ela com uma escova na mão tentando tirar o cheiro de queijo de um saco plástico que já servira pela terceira ou quarta vez quando meu pai aparece com um Chevrolet conversível – usado, mas mesmo assim – uma paisagem móvel de metal, para-choques de cromo e algo que parecia um quilômetro de prateada carne de automóvel. Ele vira o carro estacionado no centro da cidade com uma placa de Vende-se e decidira ser o tipo de homem que compra um carro por impulso. Quando ele para o carro a gente vê que aquela alegria maníaca já começou a evaporar. O carro já é um constrangimento. Ele para na entrada da casa com um sorriso congelado que combina com a grade do radiador do Chevrolet.” (página 13)

O parágrafo transcrito é grande, eu sei. Transcrevi-o por alguns elementos que já aparecem de cara: o sarcasmo (aproximação do sorriso congelado com a grade cromada do radiador); a caracterização de uma família pobre (elementos como saco plástico utilizado pela terceira ou quarta vez); um pai bastante instável (alegria maníaca, o carro já é um constrangimento).

Bobby e o irmão Carlton vivem sob a influência do famoso festival de música de Woodstock; a filosofia hippie perpassa suas vidas. São inúmeras as referências a músicas da época (Jimmi Hendrix, por exemplo), ouvidas insistentemente pelos personagens Bobby, Clare e Jonathan. As referências ao uso de drogas, notadamente, o LSD (ácido lisérgico), são frequentes:

“Tomamos um ácido aquela manhã no desjejum, com o suco de frutas. Ou melhor, Carlton tomou um ácido e eu, devido a minha pouca idade, tive permissão para tomar meio. Esse ácido se chama “para-brisa”. Está para a clareza de visão assim como o Vick Vaporub para descongestionar o nariz. Nossos pais estão trabalhando, ganhando o pão de cada dia. Saímos lá fora no frio para que a casa, quando voltarmos, nos choques com seu calor e retidão. Carlton acredita em choques.” (página 33)

Este irmão faleceu, num acidente doméstico: ele vem correndo, bate numa porta de vidro e um dos cacos corta sua jugular. Carlton morre na frente de todos, exangue. Não há como ter um atendimento médico rápido numa cidadezinha do interior:

“Quando a ambulância chega, ele [Carlton] já se foi. Vimo sua vida se escoando. Quando seu rosto fica todo lasso minha mãe solta um uivo. Uma parte dela voa uivando pela casa toda, e ali continuará a uivar em fúria para todo o sempre. Sinto minha mãe passar através de mim quando sai. Ela cobre o corpo de Carlton com o seu.” (página 50)

A família de Jonathan é diferente. O pai, Ned, é dono de um cinema claudicante, onde ele se delicia com os filmes, em sessões quase vazias. Mesmo assim, o filho o admira: é uma figura marcante, era “um homem de grande dignidade física”.

A relação da mãe com o pai é vista pelo menino com agudeza:

“Minha mãe se submetia às carícias dele, mas não tinha o menor prazer nelas. Eu via isso em seu rosto. Quando meu pai estava em casa, ela ficava com aquele mesmo olhar cauteloso de nossas inspeções de rua. A presença dele a deixava nervosa, como se uma parte do mundo exterior tivesse se enfiado em casa à força.” (página 20)

Jonathan é gay e desde cedo demonstrará esta característica:

“Em pé na frente dele, pequeno, segurando a boneca envolta em fraldas, senti minha primeira humilhação. Reconheci em mim mesmo uma profunda inadequação, uma tolice. Claro que eu sabia que a boneca era só um brinquedo, e um brinquedo ligeiramente constrangedor.” (página 22)

Esta é uma família com certas posses, mas disfuncional. Como vimos, Alice apenas suporta Ned; não tem amor por ele. Formam um casamento em que o desgaste da relação já é visível. E para piorar, Alice engravida pela segunda vez, contra a sua vontade:

“Papai?”

“Sim?”

“A mamãe não quer ter bebê.”

“Claro que quer.”

“Não quer. Ela me falou.”

A criança não nasce com vida. O cordão umbilical se enrola no pescoço do bebê e o enforca. Quase todo o útero da mãe tem de ser retirado, tornando impossível qualquer gestação futura.

Quando Jonathan se muda para Nova York, depois de algum tempo, Bobby deixa Cleveland e se junta ao amigo de infância. Acontece que ele mora junto com Clare num apartamento. Pouco a pouco, Bobby se envolve com ela, ou melhor, ela se envolve com ele e formam um casal.

Quando Clare nasce a filha de Bobby e Clare, Jonathan torna-se um pai extremamente presente. É uma família poliamorosa, como se diz modernamente. Entretanto, não é o enredo o que mais importa neste excepcional romance. Aliás, este livro é mais um argumento para reconhecermos que temas existem em quantidade limitada. O que importa é o “como você conta a história”, como nos diz Noemi Jaffe, em seu ótimo livro Escrita Em Movimento (resenha nº 224, neste blogue).

O que torna este livro tão importante para a literatura é a profundidade psicológica destes quatro personagens-narradores. Vejamos uma das várias e várias passagens de análise deles:

“Bobby era capaz de retira-se da superfície da sua própria pele, e quando o fazia a gente desconfiava de que se o espetasse a agulha iria penetrar vários centímetros antes de ele gritar. Nos períodos vazios ele não dizia ou fazia nada de diferente. Sua fala e suas ações continuavam funcionando.” (página 291)

Ou esta passagem, com observação sobre Jonathan, feita por Alice:

“Agora eu o amava de uma maneira menos terrível, a partir de um reserva mais profunda de calma, e enxergava melhor suas particularidades humanas. Entre os passageiros que desembarcavam no aeroporto ele era pálido e belo, mas parecia inacabado; à medida que amadurecia eu começava a ver que ele corria o risco de envelhecer sem adquirir uma aparência de repouso. Infantil, sem marcas, com a beleza equina de um garoto, ia adquirindo aquele ar perenemente fresco e inexperiente que às vezes faz um velho parecer uma criança antiga em estado de choque.” (página 322)

Uma casa no fim do mundo não é um romance fácil de ler, se o leitor não estiver acostumado com o ritmo mais lento das análises psicológicas dos personagens. E particularmente neste livro elas são intensas. Michael Cunninghan desce a fundo.

A estrutura narrativa escolhida pelo autor contribui ainda mais para a excelência do que se propõe. A história, sendo conduzida pelas análises oniscientes de cada narrador, sobre si mesmo e sobre os outros narradores nos surpreendem – a nós, leitores – com uma agudeza dolorosa.

Encontramos nestes personagens os índices de nossa própria complexidade, da complexidade constitutiva das visões de mundo que cada um de nós temos. Platão criou a genial metáfora do Mito da Caverna. No mundo atual, poucos têm noção da complexidade que nos são próprias, como seres portadores de uma história e de uma cultura.

Mais que pelas redes sociais – verdadeiras cavernas onde se reflete a realidade manipulada – somo impactados pela filosofia do instantâneo, da reprodução automática do discurso alheio.

Num ambiente assim é de se esperar que a depressão e a ansiedade se constituam no mal do nosso século. E essa incapacidade de acolher o diferente facilita a prática violenta dos haters. É por isso que a leitura de um livro como este Uma casa no fim do mundo é tão importante.

O mundo não é claro, de um lado, e escuro, de outro. Nada é tão simples assim. Somos seres portadores de zonas de sombras. Livro recomendado ao leitor que goste de personagens densos e que gostem de serem surpreendidos com aspectos de nossa psicologia poucas vezes acessados.

  

sábado, 6 de julho de 2024

Resenha nº 225 - O Vício dos Livros, de Afonso Cruz

 




Título: O Vício dos Livros

Autor: Afonso Cruz

Editora: Dublinense

Edição: N/C

Copyright: 2021

ISBN: 978-65-5553-123-7

Origem: Portugal

Gênero Literário: Crônicas

 

Afonso Cruz é um escritor português, nascido em 1971, na Figueira da Foz. É também ilustrador (este pequeno livro foi ilustrado por ele), músico e cineasta. Publicou mais de trinta livros, entre romances, ensaios, teatro, não ficção, novelas juvenis e, de quebra, uma “enciclopédia inventada”. Afonso colabora regularmente para jornais e revistas. Recebeu vários prêmios, e seus direitos autorais estão vendidos para mais de vinte idiomas.

Aqui, no Brasil, tem publicados, além deste O Vício dos Livros, Vamos Comprar Um Poeta, Princípio de Karenina, Para Onde Vão Os Guarda-chuvas, O Pintor Debaixo do Lava-loiças, Nem Todas As Baleias Voam, A Boneca de Kokoshka, Jesus Cristo Bebia Cerveja, Flores, A Contradição Humana...

O Vício dos Livros, em minhas mãos, é um pequeno volume. Com noventa e duas páginas, lê-se de uma sentada. Textos deliciosos para quem gosta de ler sobre livros e seus mistérios. O texto que abre o volume já é provocativo: A primeira vez que conheci um esquifobético.

Afonso conta que estava em Olinda, Brasil, sentado num banco, com um livro na mão. Um sujeito acercou-se dele, dizendo ser um esquifobético:

“Falava de seu corpo como um filósofo platónico, com um certo desdém pela matéria: chamava-lhe neve. Apontava para si e dizia “esta neve”, querendo com isso salientar o caráter transitório do corpo. Quando reparou que segurava um livro, quis ver a capa e, tirando-mo das mãos, pegou uma caneta e escreveu qualquer coisa ilegível. Perguntei-lhe o que havia escrito e ele, em voz alta, ditou a tradução da algaravia enquanto eu a anotava na página seguinte: “Tem certo tipo de pessoa que devia ter nascido daqui a cem ou duzentos anos, quando o pessoal tivesse uma criatividade mais rápida e mais bonita. Porque o coração sente e o olho conta. Life after death. Porque o original nunca se desoriginaliza. Porque nunca foi desoriginalizado.  Se algum dia ele for desoriginalizado, nunca vai existir o original. Seja louco contra a loucura. Lembre-se que foi aqui que você conheceu um esquifobético”. (página 10)

Sob o título estranho de A poesia prende poetas, acidenta carros e afunda barcos, Afonso Cruz nos fala de Dionísio I, tirano de Siracusa. Ele reuniu poetas renomados para ajudá-lo na escrita de poesia:

“Um dos casos mais curiosos da vida de Dionísio, também contado por Diodoro Sículo, terá sido quando competiu nas Olimpíadas, levando vários carros com quatro cavalos cada (bastante mais velozes do que os dos adversários) e uma caterva dos melhores atores para lerem os seus poemas e, assim, glorificá-lo no triunfo. Os versos eram tão maus que alguns carros chocaram entre si e outros despistaram-se. Do mesmo modo, o barco que levava a sua delegação olímpica de volta à Sicília naufragou perto de Tarento, em Itália, uma vez mais devido à paupérrima qualidade da poesia do tirano (que forçou a sua leitura durante a viagem), ou assim atestaram os marinheiros que sobreviveram.” (página 20)

O texto de Gatos é ótimo. O autor relaciona os escritores aos gatos, principalmente quando aqueles elaboram seus personagens:

“Se temos um personagem que tem um desejo e simplesmente o concretiza, não temos nada. Para contarmos uma história, temos de dar voltas necessárias até chegarmos ao destino, não podemos chegar lá diretamente, sem tensão, dificuldades, gozo, embelezamentos, obstáculos. Temos de escrever como os gatos caminham quando os chamamos. Não sei se os gatos gostam de escritores, mas são duas espécies claramente aparentadas: por trabalharem sós, pela contemplação e observação e curiosidade. Quando um escritor levanta a cabeça do teclado para meditar sobre uma personagem, quando para para tentar encontrar a palavra justa, quando olha pela janela para tentar desfazer um nó de enredo, tem um comportamento felino. Um gato poderá encontrar, nesse tipo de gestos, uma espécie de identificação.” (página 66)

Depois deste insight, absolutamente afonsino, eu – que não amo os gatos – devo reconsiderar minhas disposições afetivas em relação aos felinos.

E assim, seguem estes textos que bem podem funcionar como valorização do texto bem escrito, valorização da nossa possível biblioteca domiciliar (tem-se cada vez menos bibliotecas domiciliares, não?) ou, até mesmo, uma pausa entre um livro e outro.

Só para fechar esta breve, mas recomendada resenha, trago As histórias que se estragam:

“Disse Antonio Basanta, no livro Leer contra la nada: “A primeira biblioteca que conheci na minha vida foi a minha mãe (...) Cada noite, antes de dormir, visitávamos as estantes da sua memória”. Ouvi Juan Villoro dizer que as histórias não deviam começar por “era uma vez”, mas por “era uma voz”. E acrescentou: “As histórias são muito diferentes se contadas pela voz de que nos ama”. É a ouvir que damos os primeiros passos para a construção da nossa própria essência, através da partilha de histórias.” (página 87)

 

domingo, 30 de junho de 2024

Resenha nº 224 - Escrita em Movimento, de Noemi Jaffe

 



Título: Escrita Em Movimento

Autora: Noemi Jaffe

Editora: Companhia das Letras

Edição: 1ª

Copyright: 2023

ISBN: 978-65-5921-590-4

Gênero: Dissertação

Origem: Brasil

 

Noemi Jaffe é doutorada pela USP. Dá aulas de escrita criativa na Casa do Saber, no curso de formação para escritores do Instituto Vera Cruz. É, ainda, crítica literária do jornal Folha de São Paulo.

No campo da não ficção, ela publicou Folha explica Macunaíma (2001), Do princípio às criaturas (2011), Crônica na sala de aula (2003), Ver palavras, ler imagens (2001) e Escrita em movimento (2023).

No campo da literatura brasileira, escreveu Todas as coisas pequenas (2005), Quando nada está acontecendo (2011), A verdadeira história do alfabeto (2012), O que os cegos estão sonhando? (2012), Írisz: as orquídeas (2015), O livro dos começos (2016), Não está mais aqui quem falou (2017), O que ela sussurra (2020) e Lili – novela de um luto (2021).

Na verdade, hesitei em fazer resenha de um livro de não ficção, como é este Escrita em movimento, de Noemi Jaffe. O subtítulo já nos informa do que trata o pequeno volume: Sete princípios do fazer literário. Mas, como aproveitei muitas informações da obra e como ela não é um livro acadêmico, convenci-me de que deveria resenhá-lo. Afinal, é um trabalho destinado não só a quem deseje escrever; certamente, que gosta de aprender um pouco mais sobre literatura também poderá servir-se das orientações de Noemi.

Jaffe divide Escrita em movimento em sete princípios, seguidos de depoimentos de autores sobre eles. São: 1) Palavras – com a palavra Beatriz Bracher; 2) Simplicidade – com a palavra José Luiz Passos; 3) Consciência narrativa – com a palavra Eliana Alvez Cruz; 4) Originalidade – com a palavra Carol Bensimon; 5) Estranhamento – com a palavra Jeferson Tenório; 6) Detalhes – com a palavra Milton Hatoum; 7) Experimentação – com a palavra Edimilson de Almeida Pereira.

Princípio 1: Palavras.

Noemi afirma que

“Na literatura, “como se diz” é tão ou mais importante do que “o que” se diz, e é no “como” que se localiza a marca autoral de um escritor.” (página 24)

Opondo-se à ideia difundida de inspiração como algo etéreo, metafísico, a autora afirma que, para um autor,

“não são as palavras que obedecem às ideias, mas o contrário. No primeiro caso, deparamos com textos explícitos, panfletários. Já no segundo, encontramos a originalidade, surpresas e a relação indissolúvel entre a história e o sabor de contá-la.” (página 27)

Princípio 2: Simplicidade.

“Simples é o que evita refinamentos e rebuscamentos desnecessários. Diante da possibilidade de escolher, por exemplo, entre um termo culto, de extração elevada ou antiga e outro mais coloquial e facilmente compreensível, o texto simples opta pelo segundo. Entre “derradeiro” e “último”, o princípio da simplicidade recomenda o uso de “último”, excetuando-se o caso em que “derradeiro” se fizer necessário – por exemplo, se for próprio da fala culta de um personagem.” (página 56)

Mesmo no caso de sinônimos, esclarece Jaffe, há pequenas nuances de significado entre eles, pois não há sinônimos perfeitos.

Princípio 3: Consciência Narrativa

 “A escrita de uma narrativa ficcional – conto, novela, romance – comporta inúmeras opções importantes, maiores ou menores, que podem ocorrer antes, depois e principalmente durante o processo, e que vão determinar os caminhos e a identidade que a obra irá tomar.

O escritor precisa ter consciência dessas opções e saber que cada uma delas imprime determinadas características à sua escrita: atmosfera, tom, confiabilidade por parte do leitor ou não, maior ou menor neutralidade, maior ou menor objetividade, aproximação ou distanciamento do leitor em relação ao texto, intimidade ou formalidade, emoção ou apelo à razão e muitas outras.” (página 76)

Princípio 4: Originalidade

Confirmando o que se entende por originalidade, hoje em dia, nem sempre foi um critério a ser alcançado, Noemi cita o nosso Gregório de Matos Guerra; ele se esmerou em imitar poetas consagrados. Este princípio – o da imitação de obras consagradas – na verdade, é antigo – aparece em ninguém menos que Luís Vaz de Camões: em sua obra lírica, seus sonetos bem-construídos beberam da fonte de Petrarca.

“As coisas não são mais assim (já faz alguns séculos, na verdade) e agora criar algo que fuja aos padrões, que rompa com as expectativas ou que somente apresente algo novo é considerado uma qualidade primordial da obra literária. É claro que é sempre fundamental diferenciar a novidade pela novidade – gratuita e superficial – da novidade que realmente faz sentido.” (página 103)

Princípio 5: Estranhamento

“O estranhamento é tanto consequência como causa do ofício da escrita literária. Escrever exige estranhamento e provoca estranhamento. Um escritor geralmente questiona as formas como as coisas se manifestam, sente necessidade de interpretar palavras e sentidos, mas, sobretudo, o escritor é aquele que se espanta com as coisas, desde as mais triviais às mais extraordinárias. Ele dificilmente permite que as coisas se banalizem, já que quase tudo é matéria de escrita para ele.” (página 130)

Princípio 6: Detalhes

“Quando conhecemos alguém, superficial ou profundamente, o que nos faz sentir de fato próximos da pessoa são suas manias, idiossincrasias, hábitos, detalhes: uma coceira, um cacoete verbal ou gestual, um objeto especial, uma fotografia, uma música, uma piada privada. Muitas vezes, uma única menção a algum desses detalhes faz com que o personagem seja compreendido metonimicamente, pela força sintética desse elemento.” (página 151)

Princípio 7: Experimentação

“O contrato que o texto experimental estabelece com o leitor costuma ser claro: trata-se de uma obra que se abre para potencialidades ainda inexploradas da linguagem e/ou do tratamento temático. Um leitor que se dispõe a ler uma obra com essa proposta precisa, igualmente, abrir-se para um novo olhar. Só assim poderá decidir se aquele experimento atingiu o efeito desejado e se ele efetivamente abre novos caminhos. Esperar que a leitura de um texto experimental seja semelhante a uma leitura habitual é um equívoco e pode levar a julgamentos precipitados e, muitas vezes, preconceituosos.” (página 170)

Escrita em Movimento ajunta, ainda a proposta de exercícios de aplicação prática, relativa a cada um dos princípios: por exemplo, reescreva um trecho já conhecido de um modo novo; crie um personagem, conviva com ele a cada dia, depois escreva um trecho explorando os detalhes, as manias que tal personagem possua.

A leitura é leve e descontraída, além de informativa. Noemi Jaffe faz uso de duas qualidades advindas de suas práticas, como professora de literatura e como escritora. Se você é um leitor que gosta de se informar um pouco mais sobre a arte de escrever (e, quem sabe, se anime a produzir seu próprio texto), meu conselho é válido: não perca a leitura deste Escrita em Movimento.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Resenha nº 223 - A Filha Perdida, de Elena Ferrante




Título Original: La Figlia Oscura

Título em português: A Filha Perdida

Autora: Elena Ferrante

Tradutor: Marcello Lino

Copyright: 2006

ISBN: 978-85-510-0032-8

Gênero literário: romance

Origem: Itália

 

Elena Ferrante é uma escritora italiana. Esta informação é quase tudo o que sabemos sobre a autora. Ah, sabemos mais um pouco: o nome dela é apenas um pseudônimo literário. Pronto. Esgotou-se a biografia conhecida desta senhora, que insiste em se manter desconhecida do seu grande público.

Em 1991, Elena apareceu com o seu primeiro romance, Um amor incômodo. 2002 chegou, e ela publicou seu segundo romance, Dias de Abandono. Em 2003, ela publicou um livro de não ficção, Frantumagliacaminhos de uma escritora, um volume de entrevista com Ferrante.

Este A Filha Perdida é de 2006; nele, entramos em contato com a história de Leda, uma professora universitária divorciada, que tem duas filhas. Leda está de férias em uma praia no sul da Itália.

Em 2007, saiu o único livro voltado para o público infantil, com o título de Uma Noite na Praia. Em 2011, a escritora começou o que seria seu maior sucesso editorial até agora: a tetralogia de Nápoles, como ficaram conhecidas as sequências de Uma Amiga Genial: História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica, História da Menina Perdida.

Com a sequência de Nápoles, Elena Ferrante ganhou vários prêmios, sendo um sucesso de público e de crítica. Podemos seguir aqui a história de Lenu, caracterizada como “brilhante, intensa, boa aluna na escola” e sua melhor/pior amiga, igualmente individualizada como “brilhante como Lenu”, mas de um brilhantismo anárquico e autodidata.

Se considerarmos os quatro volumes como um todo, quase podemos dizer que se trata de um romance de formação, ou bildungsroman.

Cheguei ao volume A Filha Perdida, de Elena Ferrante, conduzido pelo filme homônimo ao livro, Uma Filha Perdida, produção da Netflix, com Olivia Colman, Jessie Buckley, Dakota Johnson no elenco e direção/roteiro de Maggie Gyllenhaal. O engraçado é que gostei do filme, mas não muito.

A despeito do desempenho do elenco, o filme é um pouco arrastado; o “não gostei muito”, aqui, vai mais para a escolha da diretora e roteirista. Transpor uma história complexa, com várias camadas interpretativas, com vários trechos digressivos ou filosóficos é uma opção arriscada, quando se trata de um filme, na minha opinião modesta. Mas o meu negócio é o livro.

Pois é. Cheguei ao volume e... gostei muito. A história é realmente complexa e sensível – como se diz hoje – sobre as agruras da maternidade. Mas não só, como disse acima. Subtemas perpassam o texto, para deleite do leitor atento.

Deixemos o parágrafo inicial do livro falar:

“Eu estava dirigindo havia menos de uma hora quando comecei a passar mal. A queimação na lateral do corpo reapareceu, mas de início decidi não dar importância àquele sinal. Só me preocupei quando percebi que não tinha mais forças para segurar o volante. Em poucos minutos, minha cabeça ficou pesada, os faróis me pareceram cada vez mais fracos e logo esqueci até que estava dirigindo. Em vez disso, tive a impressão de que estava no mar, em pleno dia. A praia estava vazia, e a água, calma, mas em um mastro a poucos metros da orla tremulava a andeira vermelha.” (página 5)

Aí está uma das características da escritora Elena Ferrante: ela sabe muito bem usar o “mostrar e não dizer”, isto é, ao invés de simplesmente dizer que Leda teve um desmaio ao volante do carro, ela mostra a cena. Esta escolha acertada de técnica narrativa mexe com as emoções do leitor, que as vai construindo à medida que é conduzido pelo texto.

Leda é uma professora universitária, divorciada e mãe de duas filhas já grandes.

“Quando minhas filhas se mudaram para Toronto, onde o pai vivia e trabalhava havia anos, descobri, com um deslumbre constrangedor, que eu não sentia tristeza alguma – pelo contrário, estava leve, como se só então as tivesse definitivamente posto no mundo. Pela primeira vez em quase vinte e cinco anos, não senti mais aquela ansiedade por ter que tomar conta delas. A casa estava arrumada, como se ninguém morasse ali, eu não precisava mais me preocupar o tempo todo em fazer compras ou lavar a roupa suja, a mulher que havia anos me ajudava nas tarefas domésticas conseguiu um trabalho mais rentável, não senti necessidade de substituí-la.” (capítulo 2, página 7)

Esta vai ser a tônica durante a trama: uma mãe que, ora se sente feliz por não ter mais de cuidar das filhas, ora se sente cobrada por não ter sido uma boa mãe. A narrativa fica mais intrincada quando, já na praia do sul da Itália, Leda encontra uma família de napolitanos – especialmente uma mulher jovem, Nina, casada e com uma filha pequena, Elena.

“Elas também faziam parte da família grande e barulhenta, mas a jovem mãe, vista assim à distância, com seu corpo esbelto, o maiô escolhido com muito bom gosto, o pescoço esguio, a cabeça graciosa e os cabelos longos e ondulados de um negro brilhante, o rosto indiano com as maçãs salientes, as sobrancelhas marcadas e os olhos oblíquos, pareceu-me uma anomalia naquele grupo, um organismo que misteriosamente fugira à regra, a vítima, agora conformada, de um sequestro ou de uma troca de bebês.” (página 18)

O foco da observação silenciosa da professora universitária recai sobre a relação da pequena Elena e sua mãe. Mirando-se na relação das duas, Leda faz incursões de memória, avalia sua relação com as próprias filhas:

“Queria que minhas filhas fossem amadas, não suportava que não fossem, a possível infelicidade delas me aterrorizava. Mas as lufadas sensuais que sopravam delas era violentas, vorazes, e eu sentia que o corpo delas tinha como que roubado o poder de atração do meu.” (página 64)

A realidade vai, aos poucos, se impondo. Elena perde uma boneca na praia e agora está inconsolável. Com a pequena no colo – ela se recusa a descer ao chão – Nina reage, sob os olhos perscrutadores de Leda:

“Onde estava o idílio que eu havia presenciado na praia? Reconheci o constrangimento de estar sob o olhar de estranhos naquelas condições. Evidentemente fazia horas que ela tentava acalmar a menina sem sucesso e se sentia esgotada. Ao sair de casa, tinha tentado travestir a fúria da filha com um vestido bonito.” (página 81)

À certa altura, a narrativa retorna ao passado e vemos Leda participando de um congresso internacional sobre o escritor E. M. Foster:

“Havia uma palestra muito esperada, a do professor Hardy, um estudioso muito admirado, de uma universidade prestigiosa. Meu professor sequer me cumprimentou, estava com outras pessoas. Encontrei um lugar no fundo da sala, abri diligentemente meu caderno de anotações. Hardy apareceu: um homem de uns cinquenta anos, baixinho, magro, com um rosto agradável e olhos extraordinariamente azuis. Ele falava em um tom de voz baixo e envolvente, e depois de algum tempo surpreendi a mim mesma, me perguntando se gostaria que ele me tocasse, acariciasse, beijasse. Falou dez minutos e, de repente, como se a voz viesse de dentro da minha alucinação erótica e não do microfone ao qual ele estava falando, eu o ouvi pronunciar meu nome, depois meu sobrenome.” (página 118)

Para a sua satisfação, o nome e sobrenome de Leda foram citados em voz alta, como referência para o trabalho do professor Hardy. Mais à frente, outro trecho muito elucidativo para a tese do livro. Quando Leda retorna para casa, Gianni, seu marido, a repreende:

“Gianni, quando voltei, me repreendeu por ter ligado apenas duas vezes em quatro dias, quando Marta estava doente. Eu respondi: estive muito ocupada. Disse também que, depois do que havia acontecido, precisaria trabalhar muito para estar à altura da situação.” (página 12)

Um dos temas do livro A Filha Perdida é, portanto, sobre as dificuldades pelas quais as mulheres passam, ao serem mães. A sinopse, na quarta capa do livro, me parece certeira, por isto transcrevo um trecho:

“Aliviada depois de as filhas já crescidas se mudarem para o Canadá com o pai, Leda decide tirar férias no litoral sul da Itália. Logo nos primeiros dias na praia, ela volta a atenção para uma grande família napolitana, barulhenta e grosseira, semelhante a sua própria família de origem, da qual conseguiu escapar aos dezoito anos para estudar em Florença. Sentindo por eles uma mistura de repulsa e fascínio, Leda se identifica em especial com Nina, uma jovem mãe, e Elena, sua filha pequena, e se envolve cada vez mais com as duas e com o objeto de afeto da menina, uma boneca. Nina inicialmente parece ser a mãe perfeita e faz Leda se lembrar de si mesma quando jovem e cheia de expectativas. A aproximação das duas, porém, desencadeia em Leda uma enxurrada de lembranças, da infância infeliz a segredos da vida adulta que ela nunca conseguiu revelar a ninguém.”

Sim, não é spoiler, Leda tinha achado a boneca e a conservou consigo o tempo todo, só a devolvendo ao final. Como se ela necessitasse que aquela família – com quem tivera uma relação ambígua – a considerasse uma péssima pessoa, embora Nina quase a tenha elegido à categoria de modelo.

A Filha Perdida trabalha um feminismo sem afetações, focando na realidade dura das mães modernas, que têm de trabalhar, lutar para manter seu emprego, seus filhos, sua casa e, ainda, marido.

Há outros temas: o que é permitido aos homens e é vedado às mulheres; a herança de infelicidade entre mães e filhas; o lugar da mulher no mundo, principalmente no mundo de hoje; o casamento socialmente tido como única forma de realização da mulher; a assexualização da figura materna...

Como escreve nossa autora, “uma mãe não é nada além de uma filha que brinca”... 

domingo, 12 de maio de 2024

Resenha nº 222 - A Analfabeta, de Ágota Kristóf

 




Título original: L’Analphabète: Récit autobiographique

Autora: Ágota Kristóf

Tradutora: Prisca Agustoni

Edição: N/c

Editora: Nós

Copyright: 2024

ISBN: 978-65-85832-15-1

Gênero literário: Relato autobiográfico

Origem: Literatura húngara

 

Ágota Kristóf é uma escritora húngara nascida na cidade de Csikvánd, em 30/10/1935. É considera uma das maiores escritoras europeias do século XX. Abandonando seu país, aos vinte e um anos de idade, juntamente com sua filhinha de quatro anos e seu marido, fugiu da repressão soviética que se seguiu à Revolução Húngara de 1956. Passou pela Áustria, em sua rota de fuga, com destino à Neuchatêl, Suíça. Nesta mesma cidade suíça, faleceu Ágota Kristóf em 27/07/2011, aos setenta e cinco anos.

Foi bem acolhida no novo país. Lá começou a trabalhar numa fábrica de relógios – época em que aprendeu o francês, idioma que seria, dali para frente, sua língua de expressão literária.

Escreveu os seguintes livros: 1986: Le grand cahier; 1988: La Preuve; 1991: Le Troisième mensonge; 1995: Hier; 2004: L’analphabète; 2005: C'est égal. Existe, ainda – sem tradução para o português do Brasil – uma coletânea de quatro peças, denominada L’Heure grise, de 1998, (A hora cinza), contendo os seguintes textos: John et Joe (1972), La clé de l’ascenceur (1977), Un rat qui passe (1972-1984), L’heure grise ou le dernier client (1975-1984).

No Brasil, Ágota Kristóf não é muito conhecida, apesar de sua importância literária. Pelo que consegui apurar, há traduções brasileiras para Le grand cahier (Um caderno e tanto), La preuve (A prova) e Le Troisième mensonge (A terceira mentira), que vão compor uma trilogia, conhecida como Trilogia da cidade de K. Infelizmente, tais obras estão esgotadas há anos e mesmo estas, encontradas em sebos pelo Brasil, são antigas e as publicações não estão à altura do que merece nossa escritora húngara.

A Editora Nós tomou a si a responsabilidade de publicar A Analfabeta, em uma edição mais caprichada. Um volume pequeno, de bolso, contendo apenas cinquenta e duas páginas, ao modo dos livros da francesa Ernie Arnaux. Talvez por influência de Arnaux é que a Editora Nós tenha se animado a publicar o trabalho de Ágota.

Nesse caso, da força de Ernie, um prêmio Nobel, e do prestígio indiscutível que ganhou sua autoficção, pela proximidade de gênero, teria vindo a lume A Analfabeta – um relato biográfico – escrito em primeira pessoa.

Creio, como disse a tradutora e escritora Prisca Agustoni, no Instagram, parece haver um momento propício aos relatos autobiográficos, enquanto acontecem movimentos imigratórios intensos pelo mundo. Tornam-se importantes os depoimentos pessoais, para a compreensão da cultura do outro, modernamente desaguando num gênero específico, que ficcionaliza histórias de vida, num contexto cultural multifacetado.

Tenho na minha biblioteca, em volumes separados, a Trilogia da cidade de K., ou como é mais conhecida, a “trilogia dos gêmeos”. Consegui adquiri-los, editados pela Editora Rocco, mas, como disse acima, o tratamento dado a estas publicações não condiz com o valor da escritora.

Tudo isto posto, vamos ao volume A Analfabeta.

Não é bom a gente ficar tentando descobrir a biografia do autor por trás de sua literatura. Mas, no caso assumido deste relato biográfico, isto não só é permitido, como recomendado, de vez que a própria classificação de biografia reporta à vida do autor ou autora.

O parágrafo inicial já impacta o leitor:

“Leio. É como uma doença. Leio tudo o que me chega às mãos, aos olhos: jornais, livros escolares, manifestos, pedaços de papel achados pela rua, receias de cozinha, livros para crianças. Tudo o que está impresso.” (página 5)

A mesma compulsão que moveu o fidalgo Dom Quixote. Entretanto, enquanto na fantástica obra de Miguel de Cervantes a “doença” da leitura leva o cavaleiro andante à loucura, jogando-o num mundo imaginário impossível, a leitura é uma iniciação e um ato de preservação psicológica diante da guerra que começa.

A Hungria estava subordinada ao comando da União Soviética. Explode, então, um movimento de revolta ao comando central. A repressão é violenta, como o é a repressão de qualquer ditadura.

O trecho abaixo representa bem a opressão que vive a autora, mandada estudar num internato – no caso, um internato linha-dura, muito semelhante à ditadura vivida:

“Mas não tenho a liberdade de visitar meu irmão Yano, que se encontra somente a vinte quilômetros daqui, na mesma situação que eu, e que também não pode me visitar. Somos proibidos de deixar a cidade, e, de qualquer forma, não temos dinheiro para o trem.” (página 15)

Um dos capítulos se inicia com um título incisivo: Língua materna e línguas inimigas. A narradora havia sido alfabetizada em húngaro, sua língua natal. Sob a repressão soviética, é obrigada a alfabetizar-se em russo, a língua imposta:

“Ninguém conhece russo. Os professores de línguas estrangeiras – alemão, inglês, francês – começam a frequentar cursos intensivos de russo durante alguns meses, mas não podemos dizer que o aprendam de fato, e acabam não tendo vontade nenhuma de ensiná-lo. De qualquer forma, os estudantes não têm vontade nenhuma de aprendê-lo.” (página 23).

Ao fugir do seu país, aos vinte e um anos, junto com a filha e o marido, Ágota terá de ser alfabetizada pela terceira vez na vida, o que levanta a questão de como será alguém se pensar e pensar o mundo numa língua estrangeira que possivelmente o limita:

“É assim como, com 21 anos, ao chegar na Suíça, e absolutamente por acaso numa cidade onde se fala francês, encaro uma língua para mim totalmente desconhecida. É aqui onde começa minha luta para conquistar essa língua, uma luta longa e acirrada, que por certo durará por toda a minha vida.” (página 23)

E, um pouco adiante, na mesma página:

“Falo francês há mais de 30 anos, o escrevo há 20, mas ainda não o conheço. Não consigo falar sem erros e só consigo escrever com a ajuda de um dicionário que consulto frequentemente.

É por esta razão que defino a língua francesa também como sendo uma língua inimiga. Mas tem outra razão, a mais grave: essa língua está matando minha língua materna.” (página 23)

A vida continua, Kristóf trabalha numa fábrica de relógios. É bem-tratada pelos suíços, “um sujeito grandalhão” a aborda no ônibus, no intuito de tranquilizá-la lhe diz que os suíços jamais deixarão os russos chegarem até ela. Não suspeita que, apesar de se sentir acolhida, persiste na estrangeira o sentimento de expatriada:

“Como explicar, sem ofendê-lo, e com as poucas palavras eu sei em francês, que seu lindo país é apenas um deserto para nós refugiados, um deserto que temos que atravessar para chegar àquela que chamam “a integração”, “a assimilação”. Naquele momento eu ainda não sei que vários entre nós não conseguiriam chegar até lá.” (página 41)

A Analfabeta é um relato lírico e, ao mesmo tempo, muito realista. São expostos aqui os sentimentos como os de nosso Gonçalves Dias, em sua Canção do Exílio:

“Minha terra tem primores

que tais não encontro eu cá;

em cismar – sozinho à noite

mais prazer encontro eu lá;

minha terra tem palmeiras

onde canta o sabiá.”

E escrever se torna uma profissão de fé. Quem sente esta segunda doença, a de escrever – a primeira, como nos disse a autora, é a de ler – pode aquilatar o significado de estar-se impedido de vazar para o papel seus registros, literários ou não:

“Primeiramente, é claro, é preciso escrever. Em seguida, é preciso continuar escrevendo. Inclusive quando não interessa a ninguém. Inclusive quando temos a impressão de que nunca interessará a ninguém. Inclusive quando os manuscritos se acumulam nas gavetas e nós os esquecemos, mesmo continuando a escrever outros.” (página 43)

Poderia continuar escrevendo sobre o pequeno volume A Analfabeta. Por identificação, além da qualidade literária de seu texto. Também sou mordido pela doença de escrever. Escrevo, reviso, reviso textos que nem sei se um dia estarão nas mãos do público. Não importa: escrever é preciso. Viver não é preciso.

Como sou igualmente leitor, tenho de decidir outro dilema: ler também é preciso. Não, talvez não haja dilema: ler e escrever, afinal, se contraídas, são doenças incuráveis. Não é, meu caro Fernando Pessoa?