Sapiens – uma breve história da humanidade foi lançado
originalmente em Israel, em 2011, e logo se tornou um best-seller
internacional, sendo publicado em quase quarenta países. Milhares de pessoas
fizeram o curso on-line do professor Harari sobre a história da humanidade, e
suas palestras no YouTube tiveram centenas de milhares de visualizações em todo
o mundo. Em 2012, ele recebeu o Prêmio Polonsky por Criatividade e
Originalidade nas Disciplinas Humanísticas.”
Esta não é uma obra de ficção e,
por esse motivo, um livro difícil de ser lido, na concepção de um grande
público não afeito a trabalhos dissertativos de grande fôlego. Note-se, também,
que ele não é exatamente um texto acadêmico característico, usando todo um
aparato técnico-conceitual, no qual o autor se preocupa quase que
exclusivamente em provar suas teses, demonstrar raciocínios, levantar hipóteses
e tirar conclusões. Filia-se ao conceito algo vago de “divulgação científica”,
a caracterizar uma obra que, sem perder seu foco dissertativo, “doma” os termos
técnicos, é parcimoniosa no uso de gráficos e fórmulas matemáticas e se direciona
ao público leigo.
Harari produz um trabalho
exemplar. Não é à-toa o seu sucesso de crítica e de público – a L&PM,
editora do livro, faz questão de destacar sobre a capa branca da obra uma tarja
vermelho-cheguei com os dizeres “Best-seller Internacional”, em letras
garrafais. Como um texto que tinha tudo para ser árido, como se depreende do
subtítulo “uma breve história da humanidade” pode ter se tornado um êxito
editorial junto ao público? Veremos o porquê mais tarde.
O fato é que Yuval Noah Harari é
originalíssimo em sua tese central e igualmente nos argumentos que levanta para
defendê-la. Sapiens – uma breve história
da humanidade é muito bem escrito, bem articulado; de acordo com The Times, “Harari sabe escrever [...]
de verdade, com gosto, clareza, elegância e um olhar clínico para a metáfora.”
Responda rápido, amigo leitor,
qual é o único lugar onde os conteúdos (disciplinas) são tratados de modo
estanque? Resposta imediata: na escola! Em qualquer outra situação, nossos
conhecimentos de geografia, biologia, história, língua – vários conteúdos,
portanto –, são requisitados no processo de leitura. Uns conteúdos mais, outros
menos, mas serão sempre vários. E aí está o primeiro trunfo do livro: o
professor Yuval consegue articular uma massa de conteúdos, harmoniosamente
interligados. Tanto assim que é tarefa quase impossível a classificação do
livro. É uma obra de história? Biologia? Articula conhecimentos de linguística,
de geografia, antropologia, sociologia.
Sua tese central: o homem
conseguiu sua supremacia incontestável sobre qualquer outra espécie nesse
planeta devido à sua capacidade de criar e compartilhar mitos. Ou seja, sua capacidade
de criar ficção. E é aí que, literalmente, o bicho pega!
O autor divide a história da
humanidade em algumas etapas que, para ele, foram decisivas: A Revolução
Cognitiva, A Revolução Agrícola, A Unificação da Humanidade, A Revolução
Científica. Nas páginas 7/8 há uma cronologia, uma planta baixa de todo o
trabalho de Harari.
Surge o homo sapiens sobre a face do planeta, mas a primeira grande etapa,
ocorrida há uns 70 mil anos, é a Revolução Cognitiva. O nascimento da linguagem
ficcional modifica tudo. O Homem passa a contar com a possibilidade de narrar
histórias, criar ficção, relacionar-se com seus deuses, obter conhecimento e
falar sobre suas experiências; os homo
sapiens se espalham a partir do continente africano. Aqui, essa nova
humanidade, mais inteligente em relação aos existentes e mais atrasados neandertais, ainda é
composta de caçadores-coletores. Isto é, vivem do que conseguem obter em termos
de caça e coleta de vegetais. São nômades, ainda não formam propriamente uma
sociedade. Logo suplantam por completo os neandertais.
Há aproximadamente 12 mil anos,
aqueles caçadores-coletores passam por outra etapa decisiva em sua história: a Revolução
Agrícola. Aqui, já os encontramos em assentamentos permanentes, com a
domesticação de animais e de plantas. Acontece a invenção do dinheiro, dos impérios,
das grandes religiões.
A Revolução Industrial data de
200 anos. Por toda a parte, e cada vez mais, as máquinas criadas pelo homem
fazem o trabalho que era deles. A família e a comunidade se enfraquecem e são
substituídas pelo poder do Estado e do mercado. Há extinção em massa de plantas
e animais. Os humanos transcendem os limites do planeta Terra, as armas
nucleares se tornam uma ameaça efetiva à sobrevivência da humanidade. Os organismos
são moldados não mais pela chamada seleção natural, mas pela interferência do
homem (design inteligente).
Essa massiva supremacia do Homem
começou, como dito, lá atrás, na Revolução Cognitiva. Ao ser capaz de criar
mitos e de propagá-los, modificou o modo de ver o mundo. Somos o único animal
que acredita em coisas que não existem, construtos abstratos, como nação, povo,
dinheiro, benefícios previdenciários, e Harari não hesita em apontar, também as
religiões como coisas pertencentes ao domínio da abstração.
Nossa linguagem – um número infinito
de sons – é extremamente versátil:
“Um macaco-verde pode gritar para seus camaradas: “Cuidado! Um leão!”, mas um humano moderno pode dizer aos amigos que esta manhã, perto da curva do rio, ele viu um leão atrás de um rebanho de bisões. Pode então descrever a localização exata, incluindo os diferentes caminhos que levam à área em questão. Com essas informações, os membros do seu bando podem pensar juntos e discutir se devem se aproximar do rio, expulsar o leão e caçar bisões.” (página 31)
A partilha dos mitos levou os
humanos à cooperação e, consequentemente, ao crescimento de suas realizações:
“Toda cooperação humana em grande escala – seja um Estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados que só existem na imaginação coletiva das pessoas. As igrejas se baseiam em mitos religiosos partilhados. Dois católicos que nunca se conheceram podem, no entanto, lutar juntos em uma cruzada ou levantar fundos para construir um hospital porque ambos acreditam que Deus encarnou em um corpo humano e foi crucificado para redimir nossos pecados. Os Estados se baseiam em mitos nacionais partilhados. Dois sérvios que nunca se conheceram podem arriscar a vida para salvar um ao outro porque ambos acreditam na existência da nação sérvia, da terra natal sérvia e da bandeira sérvia. Sistemas judiciais se baseiam em mitos jurídicos partilhados. Dois advogados que nunca se conheceram podem unir esforços para defender um completo estranho porque acreditam na existência de leis, justiça e direitos humanos – e no dinheiro dos honorários.” (página 36)
Harari afirma, a certa altura do
texto, que as guerras de grandes proporções não têm como acontecer no mundo de
hoje, não porque as pessoas tenham se tornado melhores, mas porque tais conflitos
não seriam rentáveis. Além do mais, os “tesouros” a conquistar migraram do
natural (petróleo, ouro, por exemplo) para o mítico/intelectual (a informação,
as pesquisas, o conhecimento). Outra razão, sempre de acordo com Yuval, é que os países, ao se tornarem globalizados, também se tornaram interdependentes e ninguém,
efetivamente, lucraria com uma guerra de proporções planetárias – porque todos
sairiam perdendo. Além do mais, o arsenal nuclear, cujo poder destrutivo faria
desaparecer o planeta, construiu uma “pax atômica”, que refreia qualquer anseio
de dominação por meio de armas.
Respondamos agora à questão: por que Sapiens – uma breve história da
humanidade se tornou um best-seller, apesar do assunto pretensamente árido?
Yuval Harari escreve com absoluto domínio textual. Um trabalho dissertativo,
mesmo aqueles mais palatáveis ao gosto do grande público, não deixa de ter
alguma aridez. Mas este é um trabalho que se enquadra bem nesses tempos do
pós-moderno: é um texto de características híbridas, pois combina o rigor da
exposição e da argumentação tipicamente dissertativas com sarcasmos, piadas,
brincadeiras semânticas tipicamente narrativas. Vejamos algumas passagens.
A presença do sarcasmo se
evidencia:
“Contudo, o profeta Mani não fez qualquer tentativa de oferecer uma fórmula matemática que pudesse ser usada para prever escolhas humanas por meio da quantificação da força respectiva dessas duas forças. Ele nunca calculou que “a força atuando sobre um homem é igual à aceleração de seu espírito dividida pela massa de seu corpo.” (página 265)
Um tipo de deslocamento
semântico, como os usados pelo nosso Machado de Assis pode soar estranho num
trabalho dissertativo:
“Truman decidiu usar a nova bomba. Duas semanas e duas bombas atômicas depois, o Japão se rendeu incondicionalmente, e a guerra chegou ao fim.” (página 272)
Por deslocamento semântico
entende-se essa aproximação, dentro de uma mesma frase, de duas categorias de
palavras diferentes, numa mesma função sintática “semanas” e “bombas atômicas”,
uma circunstância e um substantivo, onde seria de se esperar uma circunstância (de tempo) seguida de outra circunstância (de tempo).
Uma piada, insolitamente, vai
aparecer lá na página 294, incluída por Harari:
“Em 20 de julho de 1969, Neil Armstrong e Buzz Aldrin aterrissaram na superfície da Lua. Nos meses que antecederam sua expedição, os astronautas da Apollo 11 treinaram em um deserto remoto similar ao da Lua, no oeste dos Estados Unidos. A área é o lar de várias comunidades indígenas, e existe uma história – ou lenda – descrevendo um encontro entre os astronautas e um dos habitantes locais.
Um dia, enquanto estavam treinando, os astronautas se depararam com um velho índio. O homem lhes perguntou o que eles estavam fazendo. Eles responderam que eram parte de uma expedição de pesquisa que em breve viajaria para explorar a Lua. Quando o velho escutou isso, ficou em silêncio por alguns instantes e então perguntou aos astronautas se eles poderiam lhe fazer um favor.
— O que você quer? –, eles perguntaram.
— Bem – disse o velho –, as pessoas da minha tribo acreditam que a Lua é habitada por espíritos sagrados. Eu estava pensando se vocês poderiam transmitir a eles uma mensagem importante do meu povo.
— Qual mensagem? – perguntaram os astronautas.
O homem proferiu algo em sua língua tribal e então pediu que os astronautas repetissem de novo e de novo, até memorizarem corretamente.
— O que significa? – os astronautas perguntaram.
— Ah, não posso lhes dizer. É um segredo que só a nossa tribo e os espíritos da Lua podem saber.
Quando voltaram à base, os astronautas procuraram e procuraram até que encontraram alguém que sabia falar a língua tribal e lhe pediram para traduzir a mensagem secreta. Quando repetiram o que haviam memorizado, o tradutor começou a gargalhar. Quando se acalmou, os astronautas perguntaram o que significava. O homem explicou que a frase que eles haviam memorizado com tanto cuidado queria dizer: “Não acredite em uma única palavra do que essas pessoas estão lhe dizendo. Eles vieram roubar suas terras”.
As 462 páginas deste livro
englobam, ainda, um índice remissivo, notas relativas a vários trechos dos
capítulos e uma sólida bibliografia acadêmica.
Se você é um fiel de qualquer
religião, pode se sentir incomodado com o tratamento que Yuval Noah Harari dá
às religiões de um modo geral, à católica de um modo restrito, caracterizando-as como mera imaginação coletiva. Lembre-se,
entretanto, por mais que Sapiens – uma breve
história da humanidade seja um texto leve, gostoso de ler, é um trabalho
acadêmico. Ciência e religião são como óleo e água – não costumam se misturar. Dê
o desconto devido; se lhe aprouver, relaxe e aproveite. Esse livro muda a
maneira ingênua como vemos o mundo e os seres de carbono que vemos neles,
nossos pares.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens – uma breve história da humanidade.
Editora L&PM. Rio Grande do Sul, RS: 2012
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