Título Original: Liquid Fear
Autor: Zygmunt Bauman
Tradutor: Carlos Alberto Medeiros
Editora: Zahar
Edição: s/ed.
Gênero Textual: Dissertação Expositiva
Copyright: 2006
ISBN: 978-85-378-0048-5
ISBN: 978-85-378-0048-5
Bibliografia do autor: Amor Líquido; Aprendendo A Pensar com
A Sociologia; A Arte da Vida; Comunidade; Confiança e Medo na Cidade; Em Busca
da Política; Europa; Globalização: As Consequências Humanas; Identidade; O
Mal-estar na Pós-Modernidade; Medo Líquido; Modernidade e Ambivalência;
Modernidade e Holocausto; Modernidade Líquida; A Sociedade Individualizada;
Tempos Líquidos; Vida para Consumo; Vidas Desperdiçadas (todos os volumes pela
editora Zahar).
Zygmunt Bauman, sociólogo, nasceu
em Poznaή, Polônia, em 19/11/1925 e faleceu em Leeds, Inglaterra, em 09/01/2017.
Nascido em uma família de judeus não praticantes, ele e seus parentes foram
para a União Soviética após a invasão e anexação da Polônia por forças alemãs e
soviéticas do Tratado Germano-Soviético, fato acontecido em 1939. Entre 1940 e
1950, Bauman foi comunista convicto, atuando como instrutor político.
O sociólogo recebeu forte
influência das ideias de Antonio Gramsci e Georg Simmel e se transformou,
progressivamente, num crítico ao governo comunista da Polônia. Começou a
trabalhar com outros acadêmicos da Universidade de Varsóvia, dentro de uma
proposta humanista do marxismo. Não obstante, ele sempre se declarou
socialista, apregoando mesmo, em seus últimos anos de vida, que, mais do que
nunca, o socialismo é necessário ao mundo.
Para Bauman, “as relações
amorosas deixam de ter aspecto de união e passam a ser mero acúmulo de
experiências” (expresso em Amor Líquido)
e “a insegurança seria parte estrutural da constituição do sujeito pós-moderno”
(percepção em Medo Líquido).
Um resumo deste Medo Líquido
não é tarefa fácil, por alguns motivos: o pensamento do professor Bauman é
muito abrangente, extremamente analítico e sua argumentação é minuciosa e
poderosa. Ele sempre se recusou a fornecer respostas simples para questões tão
complexas quanto as que ele aventa em qualquer de seus livros. Portanto,
leitor, já sei que você, ao fim desta postagem, estará insatisfeito por eu não
ter fornecido uma ideia mais ampla da obra em questão, se for daqueles que,
como eu, está tomando contato mais sistematizado com esse pensador pela
primeira vez; ou então, num segundo caso, já o conhece, possivelmente de
maneira profunda, e por isso mesmo estará gabaritado a julgar minha
superficialidade ao resumir-lhe Medo Líquido. Trazendo uma pitada de sarcasmo
do velho Machado de Assis para esta contextualização, dir-te-ei, leitor amigo,
que “a obra em si mesma (a do Zygmunt, não me interprete mal) é tudo: se te
agradar (o resumo), fino leitor, pago-me da tarefa (de tentar o resumo); se te
não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.”
Fundamental para toda a obra
deste absolutamente fantástico pensador é o seu conceito de liquidez: mundo
líquido, medo líquido, amor líquido. A liquidez é a incapacidade de algo tomar
a forma fixa, duradoura. Uma sociedade líquida, portanto, é uma sociedade que
perdeu sua capacidade de análise, de reflexão, com o fim das utopias. Bauman
nos explica que a sociedade atual é desregulamentada, pois o mercado é o
resultado do que ditam as regras e as regras, por seu turno, são ditadas por um
fulcro econômico-capitalista: a eliminação dos concorrentes e o sucesso com os
consumidores. Nessa liquidez não há possibilidades de projetos de vida a longo
prazo, porque tudo muda o tempo todo; a empregabilidade é momentânea; as
relações amorosas não se estabilizam; o homem crê poder devastar a natureza a
seu bel-prazer. Como consequência desse estado, a condição humana decai para a
insegurança, para o medo (do futuro e do presente) e se instaura a angústia
geral.
Nas páginas 58/59 de Medo Líquido,
Bauman nos diz:
“Se a expectativa da imortalidade enfatiza a importância (instrumental) e a potencialidade da vida mortal, embora reconhecendo a iminência da morte corpórea, a desconstrução da morte, paradoxalmente, intensifica o grau de terror da morte e eleva drasticamente a potência destrutiva desta, mesmo quando aparentemente questiona sua iminência. Em vez de suprimir a consciência da inevitabilidade da morte (seu suposto efeito) e libertar a vida dessa pressão, torna mais ubíqua e importante do que nunca a presença da morte na vida.”
Outro conceito fundamental em
Zygmunt Bauman é o de “globalização negativa”: é a relação perversa nos espaços
por ela afetados. É isso o que o sociólogo descreve às páginas 126:
“Até aqui, nossa globalização é totalmente negativa: não restringida, suplementada ou compensada por uma contrapartida “positiva” que ainda é, na melhor das hipóteses, uma esperança distante, embora também seja, segundo alguns prognósticos, um empreendimento desesperado. Tendo tido a oportunidade de agir livremente, a globalização “negativa” especializou-se em quebrar fronteiras demasiado frágeis para aguentar a pressão e em cavar buracos numerosos, enormes e impossíveis de tampar, através das fronteiras que resistiram com sucesso às forças destinadas a rompê-las.”
Zygmunt se reporta a Adolf
Eichmann, supervisor do envio em massa de judeus aos campos de concentração,
notadamente ao de Auschwitz, como caracterização do terror de nossos dias: uma ameaça que, de nenhum modo, se mostra como ameaça e de
iniciativa individual. É sabido que Eichmann afirmou, ao final da guerra,
“daria saltos na sua sepultura de tanto rir porque, sentir que tinha cinco milhões
de pessoas na sua consciência, seria para ele uma fonte de extraordinária
satisfação.”
Os doutos psicanalistas, chamados
a dar seu parecer no julgamento do carrasco alemão, constataram não haver
problemas mentais com o acusado. Ele era “um homem com ideias muito positivas”,
afiançaram alguns deles.
Eis o que constata Zygmunt
Bauman, sobre Eichmann, às páginas 90:
“[Eichmann] era uma criatura corriqueira, sem graça, enfadonhamente ‘comum’: alguém com quem se cruza na rua sem se notar. Como marido, pai ou vizinho, dificilmente se destacaria na multidão. Era o indivíduo típico, mediano, das tabelas estatísticas psicológicas, assim como morais (pudemos computá-las).”
O terror mora ao lado. Ou dentro
de nossa própria casa.
Duplicamos as fechaduras em nossas
portas; cercamos nossas casas com muros altos; não satisfeitos, mandamos
instalar cercas elétricas; ajuntamos serpentinas de segurança; codificamos
alarmes eletrônicos com sensores de presença; finalmente, colocamos câmaras nos
pontos estratégicos. Mesmo assim, não temos sossego, pois o mal não tem uma
face característica. Foi-se o tempo em que o Diabo – essa criação providencial
(sem trocadilhos, por favor!) era a personificação do mal.
“Podemos estar olhando em direções radicalmente diferentes e evitar os olhares uns dos outros, mas parecemos estar entulhados no mesmo barco sem uma bússola confiável – e sem ninguém ao leme. Embora nossas remadas estejam longe de ser coordenadas, somos marcadamente semelhantes em um único aspecto: nenhum de nós, ou quase nenhum, acredita (muito menos declara) que está perseguindo seus próprios interesses – defendendo privilégios já obtidos ou reivindicando uma parcela daqueles até aqui negados. Em vez disso, hoje em dia todos os lados parecem estar lutando por valores eternos, universais e absolutos. Ironicamente, nós, os habitantes da parte líquido-moderna do planeta, somos estimulados e treinados a ignorar esses valores em nossas atividades cotidianas e a ser guiados por projetos de curto prazo e desejos de curta duração – mas mesmo então, ou talvez precisamente por isso, tendemos a sentir de modo ainda mais doloroso sua carência ou ausência quando (ou se) tentamos identificar um motivo dominante nessa cacofonia, uma forma na neblina ou uma estrada na areia movediça.” (páginas 149)
Bauman indica um dos elementos
que compõem esse mosaico da globalização negativa: o neoliberalismo, surgido
numa sociedade líquida, que preda concorrentes, que deixa ao mercado a gestão
das próprias regras. Num planeta atravessado por redes de informação, afirma
Bauman, ou as redes têm mecanismos para encontrarem seus próprios e gratos
usuários ou os próprios usuários, satisfeitos, anseiam por as procurarem.
Segue o professor, agora com um
trabalho de síntese, às páginas 166:
“Não existem – nem podem existir – soluções locais para problemas globalmente originados e fortalecidos. A reaproximação do poder e da política terá de ser atingida, se é que o será, no nível planetário. Como afirma acidamente Benjamin R. Barber, ‘nenhuma criança norte-americana pode se sentir segura em sua cama se as crianças de Karachi ou Bagdá não se sentirem seguras nas delas. Os europeus não poderão ostentar por muito tempo as suas liberdades se os povos de outras partes do mundo permanecerem carentes e humilhados’. A democracia e a liberdade não podem mais ser garantidas num só país ou mesmo num só grupo de países. Sua defesa em um mundo saturado de injustiça e habitado por bilhões de seres humanos aos quais se negou a dignidade acabará inevitavelmente corrompendo os próprios valores que pretende proteger. O futuro da democracia e da liberdade tem de ser assegurado em escala planetária – ou não o será. ”
Medo Líquido, por tudo o
que se disse nesta resenha, é livro para quem aprecie o gênero
dissertativo-explicativo. Não é leitura leve, mas profundamente esclarecedora.
Lendo-o, entendemos porque Zygmunt Bauman é considerado uma das maiores cabeças
pensantes de nossa época. Sua análise é profunda e inteligente, conjugando
vários fatores na tentativa de um diagnóstico mais preciso pela via sociológica
dos problemas do nosso tempo.
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