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segunda-feira, 6 de maio de 2024

Resenha nº 221 - Sorte, de Nara Vidal

 




Título: Sorte

Autora: Nara Vidal

Editora: Faria e Silva

Edição: N/c

Copyright: 2022

ISBN: 978-65-89573-67-8

Gênero literário: Novela

Origem: Literatura brasileira

 

Nara Vidal é escritora mineira, nascida em 1974. Formada em Línguas e Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É Mestre em Artes pela London Met University. Ela conquistou o terceiro lugar no Prêmio Oceanos, de 2019, a única brasileira entre os três vencedores. Colunista do jornal Rascunho e A Tribuna de Minas, este, escrevendo no caderno de cultura. É ainda editora da Capitolina Revista – uma publicação promotora da literatura contemporânea em língua portuguesa. Reside na Inglaterra desde 2001.

Talvez seja útil, para o leitor iniciante, caracterizar um pouco melhor o que seja o gênero literário novela. É uma composição textual narrativa, portanto, conta com personagens, narrador, enredo, tempo, em que os acontecimentos narrados se dão. Em termos de tamanho, fica entre o romance e o conto – embora esta característica não seja tão delimitadora assim, principalmente quando estamos no terreno da literatura contemporânea, com forte tendência a misturar os gêneros.

Este Sorte, de Nara Vidal, talvez seja uma mostra de novela das mais convincentes: como o conto, ela possui reviravolta de enredo (plot twist) vigorosa e estruturalmente colocada próximo ao desfecho. Com isto quero dizer que, sendo um texto enxuto, a forte guinada de enredo se encaminha de imediato para o desenlace, deixando ao leitor a ligação entre informações cruciais para o entendimento da obra.

Não conhecia a autora. Estava à procura de um livro de contos contemporâneos, quando dei de cara com a coletânea Mapas Para Desaparecer, de Nara Vidal. A sinopse dizia tratar-se de onze contos sobre a temática de relacionamento humano – tema que muito me interessa.

Constatei haver outra publicação, Eva, um romance sobre o mesmo tema e, ainda, um trabalho não acadêmico, Shakespearianas, subtítulo: As Mulheres em Shakespeare. As premissas de Sorte me convenceram a comprar o livro. Pronto. Construía-se ali o elo necessário para um leitor interessado apropriar-se do texto de uma autora.

Sorte não me decepcionou. O texto de Nara Vidal é enxuto, com poucos adjetivos, os capítulos são curtos e concisos e nos contam a história da protagonista Margareth Cunningham, da Irlanda do século XIX. Sua família é composta do pai, da irmã pequena Martha, Mary – esta, com dois anos – e Monica; e como o pai desejava um filho homem, continua engravidando a mulher, até nascerem Daniel e James:

“O pai fazia filhos na mãe até uma hora sair dela um homem. Martha, Margarth, Mary e outro na barriga. Deus há de nos conceder sua graça e encher essa casa com um homem.” O pai não escondia a predileção por um filho. Não sentia particular interesse dele por mim e nem por Martha ou Mary. Éramos uma tentativa, um erro, uma rasura, algo a ser refeito, refinado, melhorado até sair um filho.” (página 22)

O capítulo I se inicia na Irlanda, em 1806:

“Sabíamos lá em casa que aquela chuva, a enchente, os móveis arruinados, os ratos que subiam do porão para escapar do afogamento, aquilo era castigo de Deus. A nossa pobreza também era punição do Senhor. Concordamos desde cedo que abrir os olhos e atravessar horas infelizes até fechar as pálpebras de novo era a nossa maior sorte.” (página 17)

A carga dramática desta obra enxuta já nos dá um murro inicial no estômago. E, naquela chuvarada, a narradora – mais precisamente, Margareth – nos descreve outra cena, desta vez, com a participação de Martha:

“A Martha, com aquelas mãos esquisitas voando como se ouvisse música, batia os pés e ria. Não era gargalhada. Era riso. Um riso nervoso. As costas para mim. Nem percebeu que fiquei parada atrás daquele corpo fino e elegante. Estiquei os olhos para ver o riso dela. Dentro da bacia velha do quintal, cheia de água da chuva, uma ratazana morria.

Presa ao horror do espetáculo, assisti à cena inteira. Os olhos feios do bicho começando a esbugalhar, de certo já inchados pela carne tomada pela imundície da água. Debatia-se incessantemente. A ratazana revirava-se só para, em seguida virar de novo, buscando um sopro de ar já escasso. Os pés e as patas fizeram meus joelhos tremerem. Agitavam-se desfiando a morte que ria dela, feito a Martha da janela.

Primeiro caiu o rabo, cansado da luta. Túrgida, roliça, a ratazana parecia estourar. A pele da barriga brilhava de tão esticada. Dentro dela, vivia a morte.” (páginas 17/18)

Um escritor competente não elabora, de cara, uma cena impactante assim, se ela não tiver nada a ver com o projeto de sua obra. A morte é um elemento muito forte nesta história, e vai acompanhar de perto as personagens desta novela.

A situação geral da Irlanda do século XIX não era boa. Apesar de ainda ligada ao Reino Unido, era um país muito pobre e não contava com investimentos ingleses. E, para piorar as coisas, houve a Grande Fome (de 1845 a 1849). Este evento não atingiu apenas a Irlanda, tendo lugar em toda a Europa. Uma praga dizimou a produção de batatas pelo continente todo. Mas, como a batata era o único alimento disponível para um terço da população irlandesa, a fome foi devastadora. Em torno de vinte a vinte e cinco por cento da população pereceu.

O patriarca da família tem avaliações diretas deste inferno na Terra:

“Os gritos pela casa, quase diariamente, eram a sua admiração pelos conflitos napoleônicos. O pai sempre frustrado, já que a agitação nunca chegou na Irlanda. “Nem a guerra quer este país.” Bradava com revolta e esperanças de outro horizonte.

Qualquer um. “Até Brasil, a ilha movediça, é melhor que isso aqui. Não fosse minha perna, pegava vocês e ia pra Brasil, a ilha da fantasia.” (página 19)

Aqui devo fazer um corte. O leitor desta resenha deve estar se perguntando, como é isso? Não estou entendendo... a que Brasil se refere o pai de Margareth? Refere-se a uma lenda antiga. Esta lenda dizia que, nas costas da Irlanda, havia uma ilha chamada de Brasil, ou ainda, Hy-Brasil, ilha sempre envolta em mistérios. Movediça, porque aparecia de sete em sete anos, desvestida do nevoeiro que a encobria.

As embarcações, segundo a lenda, não conseguiam aportar à ilha. E pesava uma espécie de magia, ou maldição, se o quiserem: aquele que, por algum motivo, pisasse o solo de Hy-Brasil apresentaria um olho de cor diferente do outro, como uma marca.

As péssimas condições da Irlanda fazem o pai sonhar com Hy-Brasil, “até a ilha movediça é melhor do que aqui”.

Quem pôde, imigrou, principalmente, para os Estados Unidos e Canadá. Este acontecimento drástico – a fome – é o que moveu a família Cunningham a imigrar para o Brasil.

O Brasil (o país) facilitava o assentamento de terras aos imigrantes. Isto é o que era divulgado. A verdade, um pouco diferente: os imigrantes masculinos tinham de lutar sob as ordens brasileiras, na guerra cisplatina. Aqui, devo fazer outro corte.

Guerra cisplatina foi um conflito que envolveu Brasil e Argentina, pelo domínio da região do Rio da Prata, entre os anos de 1825 e 1828. O imperador brasileiro era Dom Pedro I, que foi muito criticado por se meter nesta aventura: o Brasil perdeu a guerra e no conflito gastou-se muito dinheiro, agravando a crise econômica brasileira.

Ainda no navio que trazia os imigrantes, Margareth engravida de um tal Orlando:

“O único que possivelmente sabia da minha gravidez era Orlando. Eu mesma me convenci do balanço tortuoso das águas dos trópicos. A mãe queria voltar. Dizia que os ares daquela quentura toda já mostravam em mim que não me fariam bem. Ela mesma padecia. O pai, um inválido, menos pelas pernas, mais pelo coração em desuso, só bradava. Mary e Monica acomodavam todas as ordens.” (página 36)

Outra personagem importante é a preta Mariava:

“Com pose de princesa, pescoço longo e fino, Mariava sabia todos os nomes de rios e cachoeiras. Tinha vindo de uma permuta em Minas Gerais, lugar de esmeraldas feito Hy-Brasil. Ela não falava o “C”. A Mary debochava dela e pedia que repetisse os nomes das cachoeiras da cidade dela em Minas.” (página 39)

Mariava e Margareth se tornam amigas. Ainda mais porque estavam grávidas, o que, de certo modo, as unia:

“Entre o azul-claro dos meus olhos e os olhos pretos da Mariava, nos reconhecemos. Era ela a minha amiga. Depois da Justine, era da Mariava que eu sentia saudades. Abracei apertado a minha preta com cheiro de pus. Tinha infecções pela pele afora. Ganhava uma surra por dia. Ordens de Don’Ana Vaz Peixoto, a mulher traída que era obrigada a ver a Mariava carregar um Vaz Peixoto bastardo dentro dela. A dona da quinta mandou que cortassem a cabeleireira de Mariava, cortassem a pele, cortassem o viço, já que para um golpe só não tinha coragem. Assim, preferiu sacrificá-la aos poucos. Da próxima vez, prometera cegar os olhos para que não pousassem em homem errado.” (páginas 91/92)

Mãe solteira era algo vergonhoso para as famílias da época. Havia a questão da honra feminina perdida. E, nestes casos, a saída usual era mandar a grávida para algum lugar longe dos olhos da sociedade “de bem”; normalmente, estas jovens eram mandadas para um convento que “piedosamente” as recebia, garantia a boa saúde delas. Em compensação, quando seus filhos nasciam, elas deixavam de ser mães: os filhos eram sequestrados e encaminhados para famílias que ajudavam a manter todo aquele esquema. Com Margareth não foi diferente.

O desfecho deste Sorte é surpreendente, mas não vou contá-lo. Hy-Brasil, a ilha movediça, é citada algumas vezes no decorrer da história. A lenda celta (este povo está na ancestralidade da Irlanda) conecta o local misterioso, a ilha da fantasia com o país Brasil. Nara Vidal aproveita a aproximação onomástica para exercer sua crítica social. E – é claro – a crítica se estende à atualidade brasileira.

Intrigado, fui à pesquisa sobre a lenda de Hy-Brasil. A lenda existe. A mitologia celta é pródiga em imaginações deste tipo. Basta lembrar a ilha encantada de Avalon, citada pela primeira vez nas Historia Regium Britanniae (História dos Reis da Bretanha), de Godofredo de Monmouth. É citada, também na quadrilogia As Brumas de Avalon, da escritora inglesa Marion Zimmer Bradley.

É o lugar onde foi forjada a Excalibur, a espada do Rei Arthur. É o lar da Senhora de Avalon, Fata Morgana, abordada na quadrilogia citada.

Recomendo fortemente a leitura deste Sorte.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Resenha nº 220 - Memphis, de Tara M. Stringfellow

 



Título original: Memphis

Autora: Tara M. Stringfellow

Tradutora: Carolina Cândido

Editora: Tordesilhas/TAG

Edição: 1ª

Copyright: 2022

ISBN: 978-65-5568-084-3                                    

Origem: literatura americana

Gênero: romance

 

Tara M. Stringfellow é escritora americana, poeta, advogada e graduada em Master of Fine Arts pela Northwestern University. Tem contribuições em vários jornais e publicações americanas. Morou em Okinawa, Gana, Cuba, Chicago, Espanha, Itália e Washington D.C. Finalmente, retornou para Memphis, onde, segundo consta a nota biográfica que acompanha a edição da TAG, ela se senta no balanço da varanda, com seu cão Huckleberry todas as noites.

Lamentavelmente, isto é tudo que consegui em termos de dados biográficos desta escritora. Não sei nem mesmo que nome se esconde sob a inicial “M” antes de Stringfellow. Portanto, sem mais delongas, deixemos falar o parágrafo inicial deste Memphis:

“A residência parecia habitável. Mamãe apertou minha mão com força enquanto nós três a observávamos, nosso cansaço enfadonho destoando do brilho alegre à nossa frente.

— Meu pai, Myron, escolheu e colocou cada pedra da fundação dessa casa sozinho – sussurrou ela para mim e para Mya. – Com paciência e o empenho de um homem totalmente apaixonado.” (página 3)

Aqui, temos um início de romance diferente; ao invés de começar o romance em meio às ações, Tara Stringfellow preferiu nos dar um quadro: uma mulher, Miriam, mãe de Mya e de Joan, está em frente da casa em Memphis – casa esta construída pelo pai de Miriam. Logo me indaguei: o que estão fazendo as três criaturas diante da casa que “parecia habitável”?

Não é uma casa qualquer. É a residência ancestral, onde a mãe da narradora tinha sido criada. Ela está voltando, acompanhada das filhas. O que terá acontecido? Como ela foi parar ali? Qual a sua motivação? Vai ficar por mais tempo, ou será apenas uma visita?

Um pouco mais abaixo, outro parágrafo nos dá mais informações importantes:

“A casa baixa era um respiro nas sombras das ameixeiras, nada parecida com a fortaleza vitoriana de três andares que acabávamos de abandonar. Essa casa parecia, ao mesmo tempo, grande e pequena. Tinha tantas divisões diferentes que se espalhava em todas as direções, em selvagem labirinto do Sul. Um longo caminho de acesso percorria a extensão do jardim, cortado ao meio por um portão pivotante de madeira. Mas o que fazia a casa respirar, o que dava pulmões à casa, era a varanda da frente. Largos degraus de pedra levavam a uma varanda coberta por uma densa trepadeira, madressilvas e glórias-da-manhã. Acima da varanda, meu avô ergueu um pergolado de madeira. Os raios de sol surgiam entre as vinhas verdes e placas de madeira que faziam da varanda uma confusa estufa. As madressilvas atraíam beija-flores do tamanho de bolas de beisebol; eles flutuavam sobre o dossel em tons de anil esmeralda e vinho.” (páginas 3 e 4)

Miriam – cuja vida é narrada pelo olhar de Joan –, é uma mulher preta e teve uma vida melhor, sinalizada, neste parágrafo, pela referência à sua casa anterior – “fortaleza vitoriana de três andares que acabávamos de abandonar”.

É interessante observar como um escritor/escritora trabalha a progressão da sua história, da sua obra. Note o leitor como as informações vão sendo liberadas pouco a pouco. A autora deseja que você leia o livro dela até o final. Ela quer te seduzir para a leitura. As informações aqui e ali vão se somando e formando um todo no livro e na cabeça de quem o lê. Tal é a construção de sentido, caro leitor que me dá o prazer da leitura deste blog. Não se iluda, eu mesmo estou usando agora mesmo a mesma técnica. Desejo sua atenção até o final deste texto.

Usando a casa ancestral como âncora para o enredo – ali é que se passa grande parte das etapas importantes das personagens envolvidas – o enredo se completa também em outros lugares. Mas esta narrativa se caracteriza pelo retorno à casa do pai.

Antes de prosseguir com este raciocínio, porém, será necessário explicar a importância de Memphis para esta narrativa.

Trata-se da segunda cidade mais populosa do estado americano do Tennessee. O nome da cidade presta homenagem à cidade egípcia Mênfis, às margens do rio Nilo – a versão americana localiza-se às margens do rio Mississipi. A mansão Graceland se edifica nesta localidade. Para os fãs de Elvis Presley, vai a informação: Graceland é a mansão do famoso e revolucionário cantor norte-americano – um branco que ajudou a divulgar o modo de o povo negro cantar.

 Memphis se notabilizou por várias coisas. Foi um centro produtor de algodão e madeira, foi um importante centro da política norte-americana; durante a década de 1960, foi muito importante para as manifestações em prol dos direitos dos trabalhadores negros. Mais: a cidade investiu pesado em realizações culturais e educacionais.

Nem tudo são flores. Memphis se tornou conhecida por um crime: em quatro de abril de mil novecentos e sessenta e oito, ali foi morto o maior líder negro em luta contra o racismo: Martin Luther King Jr.

Memphis é uma história de uma família preta em uma cidade – agora você já sabe por que o livro se chama Memphis – onde a maioria é de gente preta. Stringfellow usa muito de suas memórias, embora não faça autoficção.

O enredo retrocede e Miriam está casada com Jax, que havia se alistado para a guerra como Fuzileiro Naval dos Estados Unidos:

“O que havia acontecido com aquele homem? Com o casamento dela? Miriam não sabia com exatidão. Tudo o que sabia é que não estava preparada para o quão solitário o casamento podia ser. Jax estava sempre longe, em formação durante meses, sabe lá Deus onde, treinando para a guerra. Então uma guerra começou. E lá foi ele, deixando-a sozinha. Mais uma vez, Miriam odiava a grande casa vitoriana para a qual haviam se mudado após o casamento dezessete anos antes, com as escadas em espiral, cantos e fendas secretos e o chão que rangia.  Ela odiava todo aquele momento da noite, após colocar as meninas para dormir, em que seus passos ecoavam pelo corredor. Não tinha ninguém com quem conversar na Carolina do Norte. Sentia saudade de Memphis.” (página 49)

Jax, ao voltar da guerra, é um homem diferente. Está violento, atormentado. Bate em Miriam. É por isso que ela está diante da casa ancestral, em Memphis, viajando numa van claudicante, com Joan, Mya e a cachorra Loba. A casa é habitada pela irmã de Miriam, August e o filho dela, Derek.

Hazel é a mãe de Miriam e já falecida. A vida para ela também não foi nada fácil:

“Ela mordeu o lábio inferior enquanto trabalhava, espalhando o batom vermelho nos dentes. A mãe atendia a uma cliente de outro lado da sala. Dela estava de joelhos, alfinetes na boca. Ela prendia um babado de renda eu começava na altura do joelho e ia até a barra do vestido de linho branco da Sra. Finley – uma raridade. Desde que a guerra estourara, dois dezembros antes, era cada vez mais difícil encontrar rendas. E estavam mais caras. Apenas as clientes brancas e ricas usavam meias de seda agora. As encomendas de vestidos novos também diminuíram. As entregas de novas sedas e chiffons transformara-se em entregas de lenços passados e estampados. Agora, quando Hazel atendia o telefone e anotava compromissos, eram apenas para consertar vestidos que a mãe fizera na temporada anterior.” (página 138)

Hazel se casou com Myron:

“Ela notou que, mesmo depois de casados, eles não se comportavam como as pessoas casadas que Hazel conhecia. Muitas vezes, Myron a perseguia pela casa que construiu para ela, a risada de Hazel preenchendo o ambiente, até conseguir agarrá-la na cama de dossel. Às vezes, que durava até tarde, e eles se sentavam à mesa da cozinha para fumar cigarros, tomar café e conversar sobre o que estava por vir.” (página 141)

Myron se torna o primeiro detetive negro em Memphis. Enfrenta muitas dificuldades no exercício do cargo, pois mora em uma cidade com maioria negra, como ele, em que há uma elite branca, usufrutuária da chamada supermacia branca.

“— Eles não deixam. Estou em um caso bastante sério. Não posso falar muito sobre isso, amor, enquanto estiver aqui. – Myron olhou por cima do ombro e continuou: — Mas eu sei que é. Eu sei. Um universitário branco matriculado em Memphis. Eu o cerquei e o peguei em flagrante. Mas não me deixam prender o cara. Disseram que devia verificar minhas provas de novo. Eles acham que é melhor que um homem que estupra mulheres em um bairro de cor seja negro também. Arranjaram um coitado para prender. É o jeito.” (página 182)

Joan tem um talento especial para o desenho. A mãe, Miriam, deseja que ela curse algo que a faça ter empoderamento – claro que o termo não é usado, não era da época em que os eventos têm lugar. Miriam deseja o melhor para a filha e pô-la a salvo, naquela sociedade injusta, era sua meta. O talento de Joan fala mais alto, entretanto. Com a ajuda da tia August – ela mesmo possuidora de bela voz – vai estudar desenho em uma faculdade.

Joan é uma batalhadora. O reconhecimento de suas habilidades se dá quando ela pede para desenhar as mãos da Srta. Dawn:

“Paramos perto da base da escada e Loba se sentou, quase tão alta quanto Mya, mesmo quando sentada. Mãos são a coisa mais difícil de ser desenhada. Mas as mãos daquela mulher, com as veias anciãs e os nós dos dedos endurecidos – eu sabia que suas mãos seriam minha Mona Lisa, as Laranjas de Cézanne, as Nenúfares de Monet, se conseguisse desenhá-las corretamente.” (página 99)

Embora esta Srta. Dawn não tenha protagonismo no romance, ela permanece como um símbolo, os olhos que viram tudo na vida, as mãos que lidaram com as agruras da vida e por isso, merecem referência. Ela é anciã, guardadora da sabedoria empírica, não teorizada.

São três gerações de mulheres, cada uma delas brava a seu jeito. Hazel, a matriarca; Miriam, filha de Hazel e mãe de Joan. Joan, a seu turno, vence um trauma de infância e se empenha naquilo em que acredita. Há também Mya, irmã mais nova que Joan, sem protagonismo no livro.

Outra figura resiliente até certo ponto é a irmã de Miriam, August. Ela é mãe de Derek e tem de lidar com a prisão do filho. Todas estas mulheres fortes têm de emergir numa sociedade de supremacia branca.

Memphis é uma obra acima do comum. Tara M. Stringfellow é uma escritora excelente, sensível para as causas dos seus. E tem a virtude de não tentar produzir literatura panfletária – aliás, expressão infeliz, já que Literatura e panfletarismo não podem se coadunar. É o motivo pelo qual não gosto de ler certos autores, como alguns escritores russos de esquerda. Não por serem de esquerda, mas pelo panfletarismo exercido.

O que mais impressiona, no entanto, é o fato de este livro ser o primeiro escrito por Tara M. Stringfellow. A qualidade literária é inegável, mas coloca sobre a autora uma expectativa muito grande. Nós, leitores, não esperamos dela nada menos que outra obra de igual qualidade, que nos agrade do mesmo modo.

Creio que, ao final do ano, este Memphis vai estar, tranquilamente, entre os melhores livros lidos por mim. Ao recomendar com ênfase a leitura deste volume (disponível pela Editora Tordesilhas), devo alertá-lo, meu caro leitor, que o enredo é do tipo não linear, isto é, o enredo recua e avança no tempo – um lapso de 70 anos envolve as três principais mulheres.

A autora facilitou o nosso trabalho de recuperação do sequenciamento dos fatos em Memphis, nomeando cada capítulo Joan, Miriam, Hazel, August, seguidos dos anos em que os acontecimentos tiveram lugar.

Boa leitura!

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Resenha nº 219 - Nêmesis, de Philip Roth

 




Título original: Nemesis

Autor: Philip Roth

Tradutor: Jorio Dauster

Editora: TAG/Companhia das Letras

Edição: s/n

Copyright: 2010

ISBN: 978-65-5921-027-5

Origem: EUA

Gênero Literário: Romance

 

Philip Roth, escritor norte-americano, nasceu na cidade de Newark, Nova Jersey, em 19/03/1933 e faleceu em 22/05/2018. Foi não só um dos maiores escritores dos Estados Unidos, como também elogiado pelo famoso crítico literário Harold Bloom, como “o maior contador de histórias americano depois de Faulkner”. Roth é um colecionador de prêmios literários ao longo de sua carreira.

Autor de obras como Pastoral Americana, O Animal Agonizante, O Complexo de Portnoy, Casei com Uma Comunista, Nêmesis, etc. sua temática aborda a questão do desejo sexual e sua autocompreensão – tema de forte presença em O Complexo de Portnoy. Creio não ser demais afirmar que a marca registrada de seu estilo é o monólogo interior.

Nêmesis tem como ambiência os anos da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente, a entrada dos Estados Unidos no referido conflito, quando a base americana no Oceano Pacífico, Pearl Harbour, é atacada pelos japoneses.

Mas esta referência permanece como um pano de fundo, pois o drama mais importante para o romance é a epidemia de poliomielite que, fora de controle, ataca a cidade de Newark. De repente, ainda sem a compreensão da sociedade, as pessoas começam a adoecer, apresentando febre, dor muscular pelo corpo todo e uma paralisia que pode levar à morte:

“O primeiro caso de poliomielite naquele verão foi registrado no começo de junho, logo depois do Memorial Day, feriado que marca o começo da estação, num bairro pobre de italianos do outro lado da cidade. Ali onde morávamos, numa área do sudoeste chamada Weequahic e ocupada por judeus, nada soubemos sobre isso nem sobre os outros doze casos espalhados por quase toda Newark e mais distantes da nossa vizinhança. Só por volta do feriado de Quatro de Julho, quando quarenta ocorrências já haviam sido registradas na cidade, apareceu na primeira página do jornal vespertino um artigo intitulado “Autoridade médica alerta os pais contra a poliomielite”, no qual o dr. William Kittell, superintendente do Conselho de Saúde, orientava os pais a observarem de perto sus filhos e a contatarem um médico se qualquer criança apresentasse sintomas tais como dor de cabeça, garganta inflamada, enjoo, pescoço enrijecido, dor nas articulações ou febre.” (página 11)

O protagonista Buck Cantor é um professor de educação física e trabalha na escola da avenida Chancellor. Naquele ano, o sr. Cantor acumula, ainda a função de fiscal de pátio do recreio, ou seja, supervisiona os alunos durante o intervalo oficial das aulas. Buck tem seu próprio drama com que lidar.

Por conta da sua avançada miopia, não foi aceito para ir defender os Estados Unidos na guerra mundial. Também devido a sua baixa estatura, nunca foi aceito como atleta nas universidades americanas. Estas duas limitações são, para ele, motivos de autodepreciação.

E, sem avisos, após um entrevero com alguns italianos, enfrentados pelo sr. Cantor, dois dos seus alunos adoecem:

“Alguns dias mais tarde, não aparecera para jogar dois dos meninos que estava no pátio quando os italianos vieram. Pela manhã, ambos haviam acordado com febre alta e o pescoço enrijecido, e já na noite seguinte – tendo perdido gradualmente a força nos braços e pernas e respirando com dificuldade – foram levados às pressas de ambulância para o hospital.” (página 22)

Vários alunos adoecem repentinamente; alguns têm de ficar numa vida vegetativa em pulmões de aço – máquinas destinadas a aliviar o esforço de respiração.

O sr. Cantor mora com a avó e, como é muito correto em tudo o que faz, cuida muito bem da velhinha. A idosa tem problemas cardíacos, o que lhe rende dores no peito quando faz algum esforço.

Numa epidemia assim – basta nos lembrarmos da recente pandemia de COVID-19 – teorias sem qualquer fundamentação se espalham: são os italianos que levaram essa doença para os EUA, são os judeus, ela se transmite pelo toque, pela respiração, pelo calor tórrido que varre Newark, etc.

Buck tem uma namorada que trabalha em local afastado dali e usa de todos os recursos de convencimento para fazer com que o namorado saia de Newark e vá trabalhar no mesmo local que ela:

“Tenho uma coisa para te dizer. Uma notícia sensacional’, disse Márcia. “O Irv Schlanger foi convocado. Vai embora da colônia. Precisam de um substituto. Precisam desesperadamente de quem tome conta dos esportes aquáticos durante o resto das férias. Falei com o senhor Blomback sobre você, dei todas as suas credenciais e ele quer te contratar sem nem fazer uma entrevista.” (página 66)

Buck alega que já tem um emprego. Sente-se mal por “trair” seus alunos, abandonando-os ao aceitar o novo emprego. E ela, convincente:

“Você ia ser um diretor aquático sensacional. Todo mundo aqui ia te adorar. Você é um nadador excelente, um saltador excelente e um professor excelente. Ah, Bucky, é uma chance única na vida. E”, ela disse, baixando a voz, “poderíamos ficar sozinhos aqui. Há uma ilha no lago. Podíamos ir de canoa para lá à noite, depois que as luzes são apagadas. Não teríamos que nos preocupar com sua avó, com os meus pais ou com as minhas irmãs espionando pela casa. Poderíamos finalmente ficar sozinhos.”  (página 67)

Cantor acaba convencido e parte para a nova vida. A colônia de férias fica nas montanhas, o ar é saudável, o lugar é bonito. Entretanto, a consciência do protagonista nunca o deixa em paz. As coisas não saem como planeja o casal apaixonado, mas não posso dizer o que acontece, para não estragar sua leitura, meu caríssimo leitor ou leitora.

Nêmesis coloca um cenário de epidemia de poliomielite permeado por notícias da guerra na Europa, que chegam; de fato, foram concomitantes, o presidente dos EUA à época

Frank Delano Roosevelt, tornar-se a vítima mais famosa da pólio.

Quando um escritor do calibre de Philip Roth elabora uma trama dessas, suas escolhas não serão gratuitas ou só porque os fatos foram concomitantes; os homens morrem nas guerras em que se metem e, paralelamente, são mortos por uma epidemia que não planejaram.

E, o que serve a essa sincronicidade proposital do autor, o sr. Buck Cantor admite a existência de Deus, mas rebela-se contra ele. Como pode existir um Deus que mata seus próprios filhos? E, ainda mais, mata crianças de um modo indiscriminado? Certamente, não pode ser a divindade onisciente, onipresente e onipotente, toda amor, que lhe ensinaram nas aulas de catecismo.

A culpa sentida por Buck por abandonar seus alunos à própria sorte, como se sua presença pudesse mudar o rumo dos acontecimentos, suas autocondenações, fazem lembrar os atormentados personagens de Dostoiévski.

Nêmesis discute esta questão da culpa autoimposta. O sujeito que não se perdoa, e o que é pior – o sujeito que elabora uma culpa para si, quando ele é tão vítima quanto todos os outros –, este sujeito, qual futuro terá? A culpa carregada pelo resto da vida infelicita a própria vida. Pois, para Buck Cantor, ele se transformou num vetor da poliomielite, um elemento de contágio.

Na conversa com um de seus ex-alunos, que agora se tornou seu amigo, há interessantes digressões. A concepção de Deus, manifestada por Cantor é uma dessas:

“Para minha mente ateísta, propor um tal Deus sem dúvida não era mais ridículo do que dar crédito às divindades adoradas por bilhões de pessoas. Já a rebelião de Bucky contra Ele me parecia absurda simplesmente porque não era necessária. Bucky não conseguia aceitar que a epidemia que atingiu as crianças de Weequahic e as crianças de Indian Hill fora uma tragédia. Ele precisava converter a tragédia em culpa. Precisava encontrar uma necessidade para o que ocorria. Há uma epidemia e Bucky necessita de uma razão para ela.” (página 187)

Ao contrapor seu amigo Arnold Mesnikoff (curiosa a aproximação fonética deste sobrenome com Raskolnikof, não?), acometido pela doença, portador de sequelas, cadeirante, ao protagonista Buck Cantor, o autor nos coloca: a maneira de pensar do seu personagem principal não é a única válida. Há outras. Apesar das desgraças, você pode optar por vencê-las e construir uma vida tão feliz quanto possível, ou, ao contrário, deixar-se abater, fazer más escolhas em função da culpa, terminando por boicotar a felicidade ainda possível.

Recomendo de modo enfático este Nêmesis. Philip Roth é um baita romancista.

terça-feira, 26 de março de 2024

Resenha nº 218 - Casas Vazias, de Brenda Navarro




Título original: Casas Vacias

Autora: Brenda Navarro

Tradutora: Livia Deorsola

Editora: TAG/Dublinense

Edição: s/n

Copyright: 2018

ISBN: 978-65-5553-060-5

Origem: México

Gênero Literário: Romance

 

Brenda Navarro nasceu no México, no ano de 1982. Vive em Madri, Espanha. Formou-se em Sociologia e estudou Economia Feminista no México. Tem mestrado em Estudos de Gênero em Barcelona.

Além do engajamento em órgãos que lutem pelos chamados direitos humanos, Brenda é conhecida por seu envolvimento em projetos que buscam promover a escrita de mulheres; o Enjambre Literario foi fundado por ela. Tem como objetivo divulgar autoras na América Latina, publicando suas obras.

Brenda é autora de contos e poemas, tendo ganhado o prêmio Tigre Juan exatamente por este Casa Vazias – seu romance de estreia. Recentemente, publicou seu segundo romance, Cinzas na Boca.

Adianto, caro leitor, esta obra de Brenda Navarro me impressionou bastante. É uma obra bem escrita, com personagens interessantes – foco nas personagens femininas, como não podia deixar de ser. Casas Vazias é forte candidato a figurar entre os melhores romances lidos por mim, neste ano de 2024.

Estruturalmente, a obra se assenta em dois arcos narrativos: Fran, Nagore, Daniel e uma narradora, mãe de Daniel; no segundo arco, estão Rafael, Leonel e outra narradora, mãe de Leonel. Capítulo a capítulo, as duas narradoras se alternam, numa trama bastante eficiente.

Para completar, no primeiro arco, Nagore é filha de Amara e Xavi, mas que vive com a família da narradora. É informado que Xavi, numa crise conjugal, matou sua esposa Amara. Nagore é criada por Fran – irmão de Amara – e a narradora.

Os capítulos não obedecem a uma linha temporal, o que sempre exige uma atenção a mais do leitor, pois será seu o trabalho de “organizar” os fatos para a sequência da história.

O enredo não é difícil. Certo dia, a narradora – mãe de Daniel – está com o menino em um parque. Ela se distrai um breve momento, ao despedir-se do seu amante Vladimir. Daniel, que estava brincando, desaparece. A mãe o procura pelos quatro cantos do parque, mas nada. A partir daí, ela tem de lidar com o pouco interesse dos policiais em descobrir o paradeiro do menino. E tem um agravante: Daniel é autista.

“Preguei alguns cartazes perto de casa e do parque onde Daniel desapareceu. Não faltavam curiosos que irrompiam em meio à dor com que eu me desprendia da imagem do meu filho. Olhavam, mas não olhavam, nunca olham e, quando o fazem, é para reafirmar a eles mesmo que estão bem. A desgraça do outro é a obliquidade do nosso próprio eixo. Uma vez escutei que uma mulher enfatizava a condição autista de Daniel. Coitadinho, tomara que esteja morto, disse. E eu apertei os lábios e as mãos, porque suas palavras eram o eco de algo que eu não podia dizer.” (página 131)

O casal não tem boa condição financeira. A narradora não manifesta profundo desejo de ser mãe. Mesmo a sua relação com Nagore não é boa; passa por um casamento tumultuado com Fran.

“Tinha pena de mim mesma, me jogava no travesseiro resmungando contra a minha sorte em casa sem janelas por causa de vá saber que ideia arquitetônica. O calor e a umidade me asfixiavam e, quando ninguém estava me vendo, eu dava tapinhas em Daniel, que, do lado de dentro, toda hora me chutava. Era uma batalha campal da qual eu sempre saía perdendo. Nagore fazia barulho perto da única janela daquele edifício escuro no qual passamos o verão antes de voltarmos ao México; várias vezes eu a escutei falando em catalão com seu boneco, quando achava que ninguém estava escutando. Enquanto isso, Fran saía para enfrentar a burocracia como alguém que fareja, sussurra, examina um mundo que lhe é proibido habitar. Tínhamos problemas tão supérfluos que éramos imperceptíveis, até mesmo uns em relação aos outros. Já nesse momento tínhamos que ter concluído que nos regozijar em nossa miséria podia ter como consequência nos tornar miseráveis diante do mundo, porque por dentro já éramos.” (página 86)

O outro arco vai focar a outra narradora, seu filho Leonel e o marido, Rafael. Aqui, teremos outra realidade diferente: o casal tem ótima condição financeira, habita uma boa casa com piscina. Igualmente, o casal não vive um casamento harmonioso. A narradora tem verdadeira fascinação por ser mãe. E ficamos sabendo que esta mãe que não consegue engravidar é a pessoa que sequestrou Daniel no parque. Deu ao menino o nome de Leonel. Logo, a tão desejada maternidade se mostra um problema: o menino é de difícil relacionamento – é autista – e Rafael nunca desejou ter filhos.

“Queria ser mãe dos filhos de Rafael, que, naqueles dias, quem sabe o que aconteceu com ele tempos atrás, e mesmo que eu perguntasse ele não dizia nada, porque ele era assim, que porra ele tinha o quê, pois algo você tem, não diga que não, eu dizia, mas ele nunca falou olha, eu tenho isso, ou sinto que, sei lá, alguma coisa, ou olha, é que seu te contasse, mas nada, e acho que ainda que eu não aceite, sou dessas mulheres que preferem estar com um homem mesmo que ele não goste delas e que sempre dizem então amanhã será  outro dia, porque tem que se fazer alguma coisa para melhorar; muito otimista ou muito entusiasmada; por isso achei que Leonel ia chegar e deixar tudo melhor, mas não posso tapar o sol com uma peneira,  que está estragado está estragado, não tem jeito.” (página 41).

O leitor poderá perceber com facilidade a diferença de linguagem deste trecho, na comparação com aquele, em que a mãe de Daniel se manifesta. Aqui, é uma linguagem solta, apenas um período em que se penduram várias orações subordinadas, separadas por vírgulas, até serem contidas pelo ponto final.

Se o livro se dedicasse a discutir a questão da maternidade, já poderia ser bom. Mas, Casas Vazias vai além. Discute a questão central da maternidade, mas nos coloca que esta tem sido uma percepção composta por uma sociedade de predominância masculina. Será esta uma postura polêmica e Brenda Navarro tem coragem de pôr o dedo na ferida.

Se, de um lado temos uma mãe que não quer ser mãe, mas é levada a isso; se, de outro, temos uma mãe que o deseja ser, mas para quem a maternidade se torna um peso quase insustentável, temos aí um questionamento sério. Ser mãe – condição essencialmente da mulher – pode ser imposta, pode ser cobrada de qualquer mulher?

Toda mulher se realiza na maternidade? Ou não, há mulheres que não se realizem com tal condição? E, ainda, por que é concebido que nem todo homem nasceu para ser pai? No livro, nem Fran, nem Rafael se importam com seus dependentes. Afinal, Fran nunca quis ter filhos e Rafael só foi nessa onda diante do desejo de sua esposa em ser mãe – aspiração tão intensa que ela sequestra Daniel por não poder gerar seu próprio filho.

A revista que acompanha sempre as edições da TAG – Experiências Literárias tem um artigo de Tatiana Cruz, que acho interessante reproduzir:

“Narrado por duas vozes que se intercalam, capítulo por capítulo, em um fluxo de memórias sem ordem cronológica e sem o filtro da maternidade idealizada modulando as falas das personagens, o que vemos são duas mulheres desempenhando o papel de mãe em meio a um contexto de miséria emocional estruturado pela misoginia, marcado nas entranhas pela violência endêmica.” (Tatiana Cruz, in Dos Desparecimentos, revista da TAG)

Casas Vazias é um livro inquietante. Contém vários trechos de grande impacto, ao correr do texto. Mas nenhum me causou mais impacto do que aquele, dito pela narradora do primeiro arco, a mãe de Daniel:

“A lactância é o reflexo das mães que querem afogar os filhos diante da impossibilidade de comê-los. Oferecemos o peito a eles não só por instinto, mas também pelo desejo obliterado de acabar com a descendência antes que seja tarde demais. De todo modo, um erro crasso.” (páginas 86/87)

Não é que a gente tenha de concordar com o dito, mas é muito forte e, com adaptação para o feminino, navega no mito de Saturno devorando seus próprios filhos. Alertado por um oráculo, o deus do tempo – Saturno para os latinos, Cronos, para os gregos – de que ele seria morto por um de seus filhos que o sucederia no trono, resolve acabar com o problema.

Mas, e o final de Casas Vazias? Este, meu caro leitor, minha cara leitora, não te conto. Digo apenas que é um final muito inteligente, muito interativo. Sei, de antemão, nem todos irão gostar do desfecho, como de resto, acontece com qualquer final.

Outros livros, outras vozes abordam esta importante questão da maternidade colocada no centro de uma sociedade misógina são apontados na revista da TAG, e os transporto para cá na intenção de que, quem deseje aprofundar no tema possa contar com algum material: Suíte Tóquio, de Giovana Madalosso (2020), Resta Um, Isabela Noronha (2015), Rebentar, de Rafael Gallo (2015), Mapas para Desaparecer, de Nara Vidal (2020), Canção de Ninar, de Leïla Slimani (2016), A Filha Perdida, de Elena Ferrante (2006) e Noites Azuis, de Joan Didion (2011). Acrescento As Alegrias da Maternidade, de Buchi Emecheta, resenhado neste blogue – um livraço, recomendo! Como recomendo, de modo enfático, o livro de Brenda Navarro! 

terça-feira, 19 de março de 2024

Resenha nº 217 - Voltar Para Casa, de Toni Morrison

 




Título original: Home

Autora: Toni Morrison

Tradutor: José Rubens Siqueira

Editora: Companhia das Letras

Edição: 1ª – 1ª Reimpressão

Copyright: 2012

ISBN: 978-85-359-2712-2

Origem: Estados Unidos

Gênero literário: Romance

 

Toni Morrison (o nome verdadeiro é Chloe Antony Woford) nasceu 18/02/1931, em Lorain, Ohio, Estados Unidos. É a segunda dos quatro filhos de uma família de classe média baixa, profundamente afetada pela Grande Depressão. Morrison sempre fora uma leitora ávida e seus escritores prediletos eram Jane Austen e Liev Tólstoi. Do pai herdou o talento para contar histórias. Sempre as ouvia, envolvendo as questões entre negros e brancos. Consta que ela se converteu ao catolicismo aos 12 anos de idade; recebeu então o nome de batismo Anthony, que deu origem à sua designação literária, Toni.

Em 1958, Toni Morrison se casou com o arquiteto jamaicano Harold Morrison que também lecionava, como ela, na Universidade de Howard. Toni concluiu seu mestrado em inglês com a tese sobre o suicídio nos livros de William Faulkner e Virginia Woolf. Toni Morrison ganhou o Prêmio Nobel de Literatura de 1993.

A obra-prima desta autora é Amada (1987). Outras obras – romances – são  O Olho Mais Azul (1970), Sula (1974), Song of Solomon (1977), Tar Baby (1981), Jazz (1992), Paraíso (1999), Amor (2003), A Mercy (2008), Voltar Para Casa (2012), God Help The Child (2015). Ela escreveu ainda ensaios e tem publicação na área de literatura infantil. O Olho Mais Azul e Sula já foram resenhados neste blogue.

Creio que a melhor síntese para este livro é a constante da quarta capa, da autoria de Michiko Kakutani:

“Morrison encontrou uma nova voz e um estilo direto de narrar que revela domínio total sobre suas personagens. Violência, paixão e arrependimento se entrelaçam para mostrar como amor e dever podem redimir um passado maculado.”

De fato, se ainda subtemas como luta contra o racismo e a defesa da dignidade feminina dentro de uma sociedade machista cruzam a história montada por Morrison, este Voltar Para Casa é “uma história arquetípica de retorno à casa depois da guerra, reminiscente da Odisseia, sobre uma geração de veteranos e migrantes negros do Sul, ao longo de uma década supostamente tranquila que para eles foi tudo menos isso”. (New York Magazine)

O chamado “arco de redenção” acompanha o protagonista Frank Money, desde a guerra na Coreia do Norte até o seu retorno aos EUA. Profundamente tocado por acontecimentos brutais durante aquele conflito, Frank traz ainda suas próprias brutalidades de que agora se arrepende. O sofrimento transforma, entretanto.

E Frank, atormentado por seus fantasmas, recupera sua dedicação à irmã Ci (Ycidra), salvando a vida desta. Negros que são, ainda vivem imersos numa sociedade racista do sul dos Estados Unidos, onde as chances de sobrevivência dele e de Ci revelam-se pequenas.

A estrutura do romance tem dezessete capítulos. Os de números 1, 3, 5, 7, 9, 11, 14 e 17 trazem diálogos internos ou monólogos – quando o personagem fala de si para consigo – de Frank. É por esta estratégia que adentramos os dramas pessoais do protagonista:

“Os cascos erguidos batendo com estrondo, as crinas sacudindo por cima dos olhos brancos enlouquecidos. Eles se mordiam feito cachorros, mas quando levantavam, erguidos nas patas de trás, as da frente em volta do cangote um do outro, a gente ficava sem ar de emoção. Um era cor de ferrugem o outro muito preto, os dois brilhando de suor. Os relinchos não assustavam tanto quanto o silêncio depois de um coice na boca do oponente. Ali perto, os potros e as éguas, indiferentes, mascavam a grama, olhavam pro outro lado. Então eles pararam. O cor de ferrugem baixou a cabeça e bateu o casco no chão, enquanto o vencedor saiu trotando num arco, empurrando as éguas na frente dele.” (capítulo 1, página 10)

Esta descrição inicial, do menino Frank ao observar o combate entre dois cavalos nos lembra que, basicamente, temos duas pulsões: a de permanência do indivíduo e a da perpetuação da espécie. Numa visão que beira a erotização do combate, o narrador parece nos dizer que a violência é inerente à luta pela vida. E, se é assim na natureza (alguém aí tem dúvidas de que a natureza é selvagem?) muito mais o será o homem, dono de recursos imaginativos.

Mas o livro não é uma apologia à violência. Ao contrário, ele demostra o esforço do protagonista em vencer suas próprias tendências e cuidar do outro – no caso, a irmã Ci.

Frank, então, é um soldado que retornou da guerra da Coreia. Em estado de profunda depressão, o protagonista nos diz:

“Respirar. Como fazer isso de um jeito que ninguém ficasse sabendo que ele estava acordado? Fingir um ronco ritmado, profundo, deixar pender o lábio inferior. O mais importante: as pálpebras não podem se mexer, e tem de deixar o coração bater de um jeito regular e as mãos moles. Às duas da manhã, quando eles conferissem para ver se ele precisava de outra injeção imobilizadora, veria o paciente do segundo andar, quarto 17, mergulhado num sono de morfina. Se ficassem convencidos, podiam pular a injeção e soltar os pulsos, de forma que ele sentisse algum sangue nas mãos. O truque de imitar um semicoma, igual a se fingir de morto de cara para baixo na lama de um campo de batalha, era se concentrar só num objeto neutro. Uma coisa que encobrisse qualquer sinal fortuito de vida.” (página 11) 

Existem pessoas que nos fazem acreditar que a humanidade, apesar de tudo, pode ter esperança, demonstrada pela iniciativa bondosa de alguns, como nesta passagem abaixo, em que Frank encontra o reverendo Locke:

“Não importa”, disse Locke. “Você vai agradecer cada trocado, já que não vai sentar em nenhum bar das paradas do ônibus. Escute aqui, você é da Geórgia, estava num Exército desagregado e talvez ache que lá no Norte é diferente do Sul. Não pense nisso e não conte com isso. O costume é tão verdadeiro com a lei e pode ser tão perigoso quanto ela. Agora vamos. Eu e levo de carro.” (página 21)

Lily encontra Frank quando ele entra no estabelecimento comercial em que ela trabalha. De alguma forma, aquele ar distante dele – ela o entende como tranquilo – a faz querer ficar com ele. Frank, entretanto, ainda não está preparado para uma vida comum, atormentado que está, pelos seus fantasmas:

“Viver com Frank tinha sido glorioso no começo. O rompimento foi mais um gaguejar que uma única erupção. Ela começou a ficar incomodada mais que alarmada, quando voltava para casa e o encontrava sentado no sofá, olhando para o chão. Um pé de meia calçado, a outra meia na mão.” (página 70)

A vida da irmã Ci (Ycidra) também não é nada fácil. Havia se casado, mas fora abandonada sem explicações. Lutando para se manter – era uma mulher negra sem companheiro numa sociedade racista – aceitara trabalhar para um médico. Seria uma espécie de ajudante nas experiências do profissional e fora introduzida na casa do doutor por Sarah, que já trabalhava ali.

Quando Ci adoeceu, foi Sarah que avisou Frank, o único parente de Ci cujas referências ela possuía. Ele apareceu, certo dia, para resgatar a irmã:

“Enquanto isso, Frank entrou no quarto onde sua irmã estava deitada imóvel e pequena, com o uniforme branco. Dormindo? Ele sentiu seu pulso. Leve ou nada? Inclinou-se para ouvir a respiração ou não respiração. Ela estava fria ao toque, nada do calor da morte recente. Frank conhecia a morte e aquilo não era ela – por enquanto.” (página 104)

Voltar Para Casa é um romance de 136 páginas. Apesar de o texto muito direto estar ali, como em outros livros de Toni Morrison, ela conseguiu dar um tom um pouco mais lírico que em seus trabalhos anteriores. O livro é de 2012 e Toni Morrison faleceu em 2019. Esta obra foi o adeus da escritora. Esta correlação me dá vontade de fazer uma especulação, caro leitor. Pura especulação, já vou dizendo.

Como se, após anos de engajamento, Morrison tivesse abarcado as características humanas; somos capazes de grandes gestos de amor e de grandes vilanias. Sinto este Voltar Para Casa como um gesto de amor pelos homens e mulheres que compõem a sociedade, com suas virtudes e defeitos. Um olhar tristemente amoroso sobre o filho que, tendo boas intenções, insiste em fazer as piores escolhas.

Esta não é só uma história arquetípica do anti-herói que retorna da guerra despedaçado por esta experiência, tendo se transformado em um monstro (situação somente revelada no final do romance) ao dar vazão a seus próprios instintos. Este livro não é só o arco de um protagonista em redenção, em apaziguamento com sua própria consciência acusadora.

Voltar Para Casa recria, à sua maneira, a história bíblica do Filho Pródigo. A autora selecionou o filho que volta. Nem por isso a narrativa perdeu seu impacto, pois ela ateve-se ao elemento mais dramático da parábola. Ao contrário, quando o narrador em terceira pessoa se cola em Frank, sem acusá-lo de nada, pois que sua vida já é dura ao extremo, a culpa do personagem o martiriza, enfatiza sua jornada rumo à redenção.

Do modo mais neutro possível, o narrador deixa que Frank expresse seu drama. As tendências à violência estavam presentes na alma dele, como ficou claro na cena inicial, em que Frank – ainda um menino – se embevece com a luta dos cavalos.

Penso estar evidente, meu caro leitor, que gostei muito deste romance. É uma leitura pesada, ainda mais nos tempos de clubes de ódio em que vivemos. Leitura necessária. Toni Morrison se transforma, leitura a leitura, numa das minhas autoras queridinhas.

                                                                                                         

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Resenha nº 216 - É A Ales, de Jon Fosse




Título original: Det Er Ales

Autor: Jon Olav Fosse

Tradutor: Guilherme da Silva Braga

Editora: Companhia das Letras

Edição: 1ª – 1ª Reimpressão

Copyright:  2003

ISBN: 978-85-359-3542-4

Origem: Noruega

Gênero: Romance

 

Jon Olav Fosse, mais conhecido por Jon Fosse, nasceu em Haugesund, Noruega, em 29/09/1959. Seus principais trabalhos são na área de dramaturgia, embora ele também se dedique ao romance.

Desde 2011 foi concedida a ele uma “residência honorária”, pertencente ao governo norueguês, por suas contribuições à cultura e artes da Noruega. Jon Fosse foi laureado com o Prêmio Nobel de 2023. A justificativa para o prêmio cita “por suas peças e prosa inovadoras, que dão voz ao indizível”.

Fosse declarou-se ateu quando jovem, mas em 2013 converteu-se ao catolicismo. Durante a juventude, tocou guitarra no grupo Rocking Chair – atividade que ele abandonou, ao converter-se.

É autor de várias obras – principalmente na dramaturgia, como dito acima – no Brasil, temos É A Ales, Brancura, Trilogia, A Casa dos Barcos, Manhã e Noite. Jon Fosse é constantemente comparado ao escritor irlandês Samuel Beckett. Para quem não se recorda, Beckett é o autor da famosa peça Procurando Godot.

Então, li É A Ales. Não posso dizer que o livro tenha me conquistado de primeira. Ao contrário, não foi uma primeira vez fácil. Tive de esquecer-me do conceito de concisão literária. Caracterizado, com frequência, como possuidor de um estilo hipnotizante, isto corre muito pelas constantes repetições de termos, de verbos discendi (disse, falou, observou, etc). além do mais, o estilo de Fosse é bastante experimental; desobedece as normas de pontuação – como Saramago o faz –, abusa dos polissíndetos, que são as repetições de conjunções, normalmente coordenativas.

Entretanto, É A Ales me despertou o interesse – se não o da empatia, pelo menos o racional, de vez que certos recursos encontrados no pequeno livro são intencionais – e me decidi por uma segunda leitura. Nada melhor; mudei minhas impressões sobre a obra.

Escrever um romance de tão poucas páginas (esta edição tem 108) e de tanta complexidade narrativa não é para qualquer autor. O enredo não é complicado, a grandiosidade do livro vai para o que Jon Fosse consegue extrair da trama, do conflito.

Vamos lá, caro leitor.

“Vejo Signe deitada no banco da sala olhando para tudo que é familiar, a velha mesa, a estufa, a caixa de lenha, o velho painel de madeira nas paredes, a grande janela com vista para o fiorde, ela olha para essas coisas sem ver, e tudo está como sempre esteve, nada mudou, mas assim mesmo tudo mudou, ela pensa, porque depois que ele desapareceu e nunca mais voltou nada mais foi o mesmo, ela simplesmente está aqui, porém sem estar aqui, os dias chegam, os dias passam, as noites chegam, as noites passam e ela os acompanha, sempre com movimentos vagarosos, sem permitir que nada deixe grandes marcas ou faça grande diferença...” (página 9)

Pontos para o autor, já no parágrafo de abertura ele nos entrega o conflito: a tal Signe está deitada no banco da sala, e pensa sobre alguém desaparecido. Neste parágrafo inicial, o leitor pode perceber a repetição de termos, de expressões, que vão perpassar o livro todo.

Esta Signe espera o marido, Asle, que, no fim de novembro de 1979, sai de barco por um dos muitos fiordes noruegueses e desaparece. Encontram apenas o barco. Este enredo se aproxima muito da peça de Samuel Beckett, citada acima. Em Esperando Godot, há um grupo de personagens à espera do tal Godot, como nos informa o título. Godot não aparece. A peça se desenrola, a peça termina e nada de Godot. A tempo: Beckett se enquadra no chamado teatro do absurdo.

O narrador de Fosse observa Signe, nos revela o que ela pensa e sente. Informa-nos que ela se desloca de si própria, como se parte de sua consciência ficasse no corpo e parte se projetasse à sua frente. Signe se observa:

“...ela está em pé defronte a janela, e se vê deitada no banco, e ela parece estar muito velha, muito cansada, e os cabelos dela estão bastante grisalhos, mas ainda compridos, e imagine estar em pé defronte a janela olhando para fora e depois olhar para o banco e se ver deitada velha e grisalha, ela pensa enquanto olha para estufa e lá, lá na cadeira ao lado da estufa ela se vê sentada, mais essa!...” (página 33)

O Fiorde (recorrendo à Wikipedia, Fiorde é uma grande invasão de mar entre montanhas rochosas, originada por erosão) é uma presença em todo o texto do livro. É um acidente geográfico que une o passado ao presente.

E logo ficamos sabendo, houve outro acidente ali, naquele Fiorde. Aos sete anos, um menino morreu afogado ali. O nome do menino: Asle.

“O Asle morreu, diz Kristoffer

ele completou sete anos e morreu, ele diz

não, ele está vivo, diz Brita

você não vê, ele morreu, diz Kristoffer

e Brita fica lá com Asle nos braços e os braços de Asle estão aberto e vazios...” (página 81)

O nome Asle, então, designa dois seres: aquele menino morto aos sete anos por afogamento, e o marido de Signe, desaparecido no Fiorde. E há também a velha Ales, que observa consternada a cena:

“E então a velha Ales endireita o corpo, no patamar de pedra onde está, e lentamente se vira e entra na Antiga Casa. Na casa dela, a Velha Ales está entrando na casa dela, ela pensa. E no pátio em frente à antiga Casa onde mora Brita segura Asle nos braços. E então Kristoffer se aproxima de Brita e pega Asle nos braços.”  (página 86)

O tempo se embolou na cabeça de Signe. Os dois fatos – a morte do pequeno e o desparecimento do marido, ambos de certa forma ligados pelas semelhanças dos nomes – perdem a separação nítida de passado e presente. E Ales, a Velha Ales e Signe têm coisas em comum: ambas perderam entes queridos. Com a diferença: para a Velha Ales, a constatação da morte encerrou o caso, pôs um limite, ainda que doloroso.

Para Signe, diante do desaparecimento, o caso não teve e não tem um fim – um corpo sobre o qual chorar –, mas que também estabelece um limite. E ela vegeta, a certa altura do texto torna-se gritante o seu estado depressivo:

“... e ela não pode simplesmente ficar deitada lá, ela pensa, porque ela precisa se levantar, se pôr de pé, ela precisa fazer alguma coisa, não pode ficar simplesmente deitada no banco, ela pensa, e então se vê parada no cômodo olhando em frente para o nada e então se vê ir até a porta que dá para o corredor e se vê pôr a mão na maçaneta e se vê lá com a mão na maçaneta e pensa, enquanto segura a maçaneta, por que ele não vem?, e sempre aquilo, esperar, esperar...” (página 70)

É A Ales é um romance que, ao ler, não há necessidade de nos preocuparmos com spoilers. Não é o que acontece, o que importa; é como os personagens lidam com seus sofrimentos, com seus fantasmas do passado. A força da natureza, representada aqui pelos Fiordes traiçoeiros, se impõe. Os acontecimentos tiram a vida de pessoas queridas, leva-as para longe, deixando no lugar apenas dor, saudade, depressão.

Gostei da releitura do livro, mas não sei se o recomendo, caro leitor. É poeticamente amargo, Fosse parece querer assinalar – pelo menos neste texto – o absurdo de viver neste mundo. E este é outro quesito que o aproxima de Samuel Beckett e do absurdo de Esperando Godot. 

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Resenha nº 215 - As Maravilhas, de Elena Medel



Título original: Las Maravillas

Autora: Elena Medel

Tradutora: Rubia Goldoni

Editora: Todavia/TAG Livros

Copyright: 2020

ISBN: 978-65-5692-335-2

Gênero literário: Romance

Origem: Literatura espanhola

 

Elena Medel é escritora espanhola, nascida na cidade de Córdoba, em 29/04/1985. Estudou Filologia Hispânica na Universidade que leva o nome da cidade. Dirige a revista de poesia La Bella Varsovia. Tem trabalhos de poesia, conto, romance e ensaio publicados.

Com obras traduzidas para vários idiomas, é uma escritora em ascenção, tendo recebido o prêmio Fundación Princesa de Girona (2016). Seu único romance, por enquanto, é este As Maravilhas, publicado no Brasil pela editora Todavia e, neste caso, com edição exclusiva pela TAG – Experiências Literárias.

Duas mulheres fazem parte da história contada por Medel: María e Alícia. Outra mulher – Carmen – da qual pouco se fala, é filha de María e mãe de Alícia. María veio viver em Madri, pois precisava de um emprego e, por isso, abandona a casa dos pais, deixando para trás, também, sua filha Carmen:

“O bebê cheira a cigarro. A primeira coisa que chama a atenção de María quando pega Carmen no colo é seu cheiro, tão diferente do de outros bebês. A filha da vizinha dos seus tios às vezes cheira a cebola, por mais que a mãe passe colônia nela para disfarçar; já o menino da casa – da casa em que ela trabalha, corrige-se María; não de sua casa, que não existe –, porque não conhecia nada parecido, mas agora o reconhece nas lojas, nos cafés. A filha da vizinha brinca com as anelas à tarde, e o menino vive entre o berço e o moisés na sala; Carmen também percorre a casa a seu modo, entre o quarto e o colo da avó, sentada à mesa grande. María percebe que talvez o cheiro de cigarro tenha a ver com sua família. Sua mãe fuma na cozinha, seu pai fuma o tempo todo, e ela suspeita que seu irmão Chico começou a fumar no quarto, pensando que ali ninguém o descobriria. Carmen cheira a cigarro; talvez María pense que a filha tenha o cheiro da casa de dois quartos, ou talvez pense apenas em como é estranho estar dormindo ali, com ela.” (página 19)

Deste parágrafo selecionado podemos retirar algumas informações sobre María. Ela é pobre, precisa trabalhar na casa dos outros, não tem uma casa sua. Possui um irmão, Chico além da mencionada filha, Carmen. Este fato acontece no ano de 1960.

O livro se inicia com o arco narrativo focado em Alícia:

“Com uma única nota no bolso, Alicia observa a praça quase deserta, os poucos carros e os poucos pedestres. Mais alguns minutos, e o dia vai clarear. Quando pode escolher, Alicia sempre prefere trabalhar de tarde: não precisa acordar cedo, pode passar a tarde na loja e voltar direto para casa. Nando reclama nessas semanas, na verdade, em quase todas; ela se desculpa dizendo que foi uma colega que pediu: tem dois filhos pequenos e para ela o turno da manhã é melhor. Assim fica livre nas primeiras horas do dia e evita as tardes no bar com os amigos dele – que também são os dela, por força da rotina – as tapas baratas, os bebês entre guardanapos sujos. Alicia achava que a maternidade alheia acabaria com esse hábito, mas as mães se ausentam do bar até as crianças pegarem no sono, às vezes volta se têm certeza de que dormem profundamente, e Nando se aborrece se ela tenta pular o ritual.” (páginas 9/10)  

A narrativa coloca em cena uma Alicia que precisa contar os centavos; ela tem de fazer uma retirada num dos caixas eletrônicos da estação Atocha. É uma trajetória financeira descendente, pois esta mesma Alicia, quando ainda em idade escolar, é descrita da seguinte maneira:

“No caso de Alicia, ainda não tinham conseguido montar nenhuma história. Tudo nela as desnorteava; escrevia sem erros de ortografia; sabia de cor datas e nomes de personagens históricas, não bocejava na aula. Não entenderam como podia ter repetido de ano, mas o que mais as desnorteava era o que s passava fora de sua cabeça: quer usasse um par de tênis diferente a cada dia da semana, quer fizesse questão de exibir a marca do seu jeans.” (página 38)

As maravilhas, aludidas pelo título do romance, fazem referência às coisas maravilhosas observadas pelas colegas Celia e Inma, quando vão à casa de Alicia, fazer um trabalho escolar. Claramente, a anfitriã tem uma condição de vida muito melhor do que as convidadas.

O que teria acontecido, tanto no caso de Maria – avó de Alícia – como no da própria Alícia, empobrecida, depois?

O pano de fundo é a situação sociopolítica da Espanha. Como veremos, este país é sacudido por periódicos conflitos, quer no âmbito político – no embate entre esquerda e direita por permanência no poder –, quer por problemas sociais.

Há uma guerra civil, compreendida entre 1936 e 1939. A Espanha era então uma república parlamentarista, com a maioria dos parlamentares escolhidos de esquerda, com um primeiro-ministro socialista.  Acontece um golpe de estado, liderado pelo general Franco. Os golpistas tomam o poder em 1939, iniciando a ditadura franquista.

Exercendo um fascismo de direita, sob o regime de Franco a Espanha tem de conviver com um cardápio de arbitrariedades, terror violento. Os opositores do ditador são executados. Para vencer a guerra civil, Franco tem de contar com a ajuda – que mais tarde será temerária – de Hitler e de Mussolini. Portanto, quando explode a Segunda Guerra Mundial, Franco compromete seu apoio aos fascistas.

Ao terminar o conflito mundial, em plena época da chamada guerra fria, a Espanha está diante de um complexo cenário no mundo: o antigo inimigo, os Estados Unidos, tornam-se, agora, aliados do país ibérico. A Espanha era fascista sob o jugo de Franco, mas era também anticomunista. Os EUA desenvolviam alianças que evitassem o perigo comunista na Europa. A ditadura franquista só termina com a morte do seu líder, em 1975.

Na revista que acompanha a edição da TAG, em um texto informativo assinado por Paula Sperb, há um esclarecimento:

“Em As Maravilhas, aparecem as históricas eleições gerais de 1982, que consagram o socialista Felipe González, do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), como presidente. Maria participa de uma celebração com seus companheiros do grupo de bairro. Nos anos 1990, no entanto, o país voltou a ser governado por partidos de direita.”

A Espanha mergulha numa crise econômica, que vem de 1990 e dura até os dias atuais. No romance, a perda de emprego, o empobrecimento das classes sociais é o pano de fundo da narrativa, o motivo pelo qual Alicia, que inicialmente é de uma classe mais abastada, termina na estação Atocha de maneira precária.

“Alicia custa a atravessar as catracas: não é que os trens para o centro passem cheios, mas é tanta gente descendo na estação Atocha Renfe que ela custa a alcançar o vagão. Amaldiçoa a colega que lhe pediu para cobrir seu horário por um tempo – primeiro por uma hora, depois duas ou três –, porque a amiga que olhava seus filhos não tinha aparecido e obrigou Alicia a sair do trabalho mais tarde que o normal. Ela sabia da manifestação, tinha visto de manhã as mulheres na Cuesta de Moyano, mas não imaginava que tivesse algo a ver com ela: só quer voltar logo para casa, comprar alguma coisa no mercado para jantar, e que ninguém a incomode.” (página 181)

Esta movimentação, que apanha Alicia em meio ao seu dia de trabalho, é a Greve das Mulheres, em 2018. Deixemos Paula Sperb, no mesmo artigo contextualizador da Revista da TAG, nos explicar:

“No romance, o Dia Internacional da Mulher marca um dos momentos mais importantes da trama. As manifestações de mulheres ocorreram em escala global naquele ano. Na Espanha, porém, elas reivindicaram também respostas aos problemas econômicos. “No contexto espanhol, a data adquire um caráter singular porque é convocada uma greve geral de trabalhadores e essa greve é convocada pelas mulheres. Promover a greve naquele momento tinha dois sentidos: o primeiro é o de afirmação de gênero e luta por igualdade: o segundo, o de combate à precarização do trabalho, que afeta todos, mas especialmente as mulheres”, explica Fraga.”

Em As Maravilhas, Alicia não é uma alienada; igualmente, María não era uma alienada. Ambas, em momentos diferentes da história contada, não participam diretamente dos movimentos os quais lhes são contemporâneos e do interesse delas. É que estão ocupadas, dirigem toda a sua força em sobreviver. Lutam a cada dia pelo prato de comida e por isso, não podem participar de greves, por mais importante sejam elas.

Se forem mandadas embora por ausência ao trabalho, será muito pior para elas. Têm dependentes, têm filhos a quem alimentar. Esta é a dura realidade de que se esquecem os militantes de diversas greves – mesmo as mais justas – há pessoas a quem falta tudo, até o sustento para se ter a possibilidade de lutar por aquilo em que se acredita.

As Maravilhas é o tipo de leitura que necessita fortemente de contextualização, para que possa ser entendido em profundidade. O pano de fundo da história recente da Espanha não pode ser descartado. Ajunte-se a isto a questão do direito feminino de escolha: cuidar ou não cuidar dos outros; porque, via de regra, esta é uma “função social” imposta às mulheres. Faz parte da cultura de “toda mulher nascer para ser mãe”.

Frequentemente, penso eu, desconsidera-se a individualidade, em favor de uma construção histórica. Existem mulheres que não têm a menor inclinação para a maternidade, como existem homens que não têm a menor inclinação para a paternidade. E as construções históricas, não esqueçamos, são feitas pelos dominantes. E quem são os dominantes, nesta questão? Os homens.

Se você, meu caro leitor, gosta de romances com forte contextualização política e histórica, leia este livro. Elena Medel pode ser uma romancista iniciante, mas este seu As Maravilhas é uma grata constatação.