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sexta-feira, 3 de maio de 2024

Resenha nº 220 - Memphis, de Tara M. Stringfellow

 



Título original: Memphis

Autora: Tara M. Stringfellow

Tradutora: Carolina Cândido

Editora: Tordesilhas/TAG

Edição: 1ª

Copyright: 2022

ISBN: 978-65-5568-084-3                                    

Origem: literatura americana

Gênero: romance

 

Tara M. Stringfellow é escritora americana, poeta, advogada e graduada em Master of Fine Arts pela Northwestern University. Tem contribuições em vários jornais e publicações americanas. Morou em Okinawa, Gana, Cuba, Chicago, Espanha, Itália e Washington D.C. Finalmente, retornou para Memphis, onde, segundo consta a nota biográfica que acompanha a edição da TAG, ela se senta no balanço da varanda, com seu cão Huckleberry todas as noites.

Lamentavelmente, isto é tudo que consegui em termos de dados biográficos desta escritora. Não sei nem mesmo que nome se esconde sob a inicial “M” antes de Stringfellow. Portanto, sem mais delongas, deixemos falar o parágrafo inicial deste Memphis:

“A residência parecia habitável. Mamãe apertou minha mão com força enquanto nós três a observávamos, nosso cansaço enfadonho destoando do brilho alegre à nossa frente.

— Meu pai, Myron, escolheu e colocou cada pedra da fundação dessa casa sozinho – sussurrou ela para mim e para Mya. – Com paciência e o empenho de um homem totalmente apaixonado.” (página 3)

Aqui, temos um início de romance diferente; ao invés de começar o romance em meio às ações, Tara Stringfellow preferiu nos dar um quadro: uma mulher, Miriam, mãe de Mya e de Joan, está em frente da casa em Memphis – casa esta construída pelo pai de Miriam. Logo me indaguei: o que estão fazendo as três criaturas diante da casa que “parecia habitável”?

Não é uma casa qualquer. É a residência ancestral, onde a mãe da narradora tinha sido criada. Ela está voltando, acompanhada das filhas. O que terá acontecido? Como ela foi parar ali? Qual a sua motivação? Vai ficar por mais tempo, ou será apenas uma visita?

Um pouco mais abaixo, outro parágrafo nos dá mais informações importantes:

“A casa baixa era um respiro nas sombras das ameixeiras, nada parecida com a fortaleza vitoriana de três andares que acabávamos de abandonar. Essa casa parecia, ao mesmo tempo, grande e pequena. Tinha tantas divisões diferentes que se espalhava em todas as direções, em selvagem labirinto do Sul. Um longo caminho de acesso percorria a extensão do jardim, cortado ao meio por um portão pivotante de madeira. Mas o que fazia a casa respirar, o que dava pulmões à casa, era a varanda da frente. Largos degraus de pedra levavam a uma varanda coberta por uma densa trepadeira, madressilvas e glórias-da-manhã. Acima da varanda, meu avô ergueu um pergolado de madeira. Os raios de sol surgiam entre as vinhas verdes e placas de madeira que faziam da varanda uma confusa estufa. As madressilvas atraíam beija-flores do tamanho de bolas de beisebol; eles flutuavam sobre o dossel em tons de anil esmeralda e vinho.” (páginas 3 e 4)

Miriam – cuja vida é narrada pelo olhar de Joan –, é uma mulher preta e teve uma vida melhor, sinalizada, neste parágrafo, pela referência à sua casa anterior – “fortaleza vitoriana de três andares que acabávamos de abandonar”.

É interessante observar como um escritor/escritora trabalha a progressão da sua história, da sua obra. Note o leitor como as informações vão sendo liberadas pouco a pouco. A autora deseja que você leia o livro dela até o final. Ela quer te seduzir para a leitura. As informações aqui e ali vão se somando e formando um todo no livro e na cabeça de quem o lê. Tal é a construção de sentido, caro leitor que me dá o prazer da leitura deste blog. Não se iluda, eu mesmo estou usando agora mesmo a mesma técnica. Desejo sua atenção até o final deste texto.

Usando a casa ancestral como âncora para o enredo – ali é que se passa grande parte das etapas importantes das personagens envolvidas – o enredo se completa também em outros lugares. Mas esta narrativa se caracteriza pelo retorno à casa do pai.

Antes de prosseguir com este raciocínio, porém, será necessário explicar a importância de Memphis para esta narrativa.

Trata-se da segunda cidade mais populosa do estado americano do Tennessee. O nome da cidade presta homenagem à cidade egípcia Mênfis, às margens do rio Nilo – a versão americana localiza-se às margens do rio Mississipi. A mansão Graceland se edifica nesta localidade. Para os fãs de Elvis Presley, vai a informação: Graceland é a mansão do famoso e revolucionário cantor norte-americano – um branco que ajudou a divulgar o modo de o povo negro cantar.

 Memphis se notabilizou por várias coisas. Foi um centro produtor de algodão e madeira, foi um importante centro da política norte-americana; durante a década de 1960, foi muito importante para as manifestações em prol dos direitos dos trabalhadores negros. Mais: a cidade investiu pesado em realizações culturais e educacionais.

Nem tudo são flores. Memphis se tornou conhecida por um crime: em quatro de abril de mil novecentos e sessenta e oito, ali foi morto o maior líder negro em luta contra o racismo: Martin Luther King Jr.

Memphis é uma história de uma família preta em uma cidade – agora você já sabe por que o livro se chama Memphis – onde a maioria é de gente preta. Stringfellow usa muito de suas memórias, embora não faça autoficção.

O enredo retrocede e Miriam está casada com Jax, que havia se alistado para a guerra como Fuzileiro Naval dos Estados Unidos:

“O que havia acontecido com aquele homem? Com o casamento dela? Miriam não sabia com exatidão. Tudo o que sabia é que não estava preparada para o quão solitário o casamento podia ser. Jax estava sempre longe, em formação durante meses, sabe lá Deus onde, treinando para a guerra. Então uma guerra começou. E lá foi ele, deixando-a sozinha. Mais uma vez, Miriam odiava a grande casa vitoriana para a qual haviam se mudado após o casamento dezessete anos antes, com as escadas em espiral, cantos e fendas secretos e o chão que rangia.  Ela odiava todo aquele momento da noite, após colocar as meninas para dormir, em que seus passos ecoavam pelo corredor. Não tinha ninguém com quem conversar na Carolina do Norte. Sentia saudade de Memphis.” (página 49)

Jax, ao voltar da guerra, é um homem diferente. Está violento, atormentado. Bate em Miriam. É por isso que ela está diante da casa ancestral, em Memphis, viajando numa van claudicante, com Joan, Mya e a cachorra Loba. A casa é habitada pela irmã de Miriam, August e o filho dela, Derek.

Hazel é a mãe de Miriam e já falecida. A vida para ela também não foi nada fácil:

“Ela mordeu o lábio inferior enquanto trabalhava, espalhando o batom vermelho nos dentes. A mãe atendia a uma cliente de outro lado da sala. Dela estava de joelhos, alfinetes na boca. Ela prendia um babado de renda eu começava na altura do joelho e ia até a barra do vestido de linho branco da Sra. Finley – uma raridade. Desde que a guerra estourara, dois dezembros antes, era cada vez mais difícil encontrar rendas. E estavam mais caras. Apenas as clientes brancas e ricas usavam meias de seda agora. As encomendas de vestidos novos também diminuíram. As entregas de novas sedas e chiffons transformara-se em entregas de lenços passados e estampados. Agora, quando Hazel atendia o telefone e anotava compromissos, eram apenas para consertar vestidos que a mãe fizera na temporada anterior.” (página 138)

Hazel se casou com Myron:

“Ela notou que, mesmo depois de casados, eles não se comportavam como as pessoas casadas que Hazel conhecia. Muitas vezes, Myron a perseguia pela casa que construiu para ela, a risada de Hazel preenchendo o ambiente, até conseguir agarrá-la na cama de dossel. Às vezes, que durava até tarde, e eles se sentavam à mesa da cozinha para fumar cigarros, tomar café e conversar sobre o que estava por vir.” (página 141)

Myron se torna o primeiro detetive negro em Memphis. Enfrenta muitas dificuldades no exercício do cargo, pois mora em uma cidade com maioria negra, como ele, em que há uma elite branca, usufrutuária da chamada supermacia branca.

“— Eles não deixam. Estou em um caso bastante sério. Não posso falar muito sobre isso, amor, enquanto estiver aqui. – Myron olhou por cima do ombro e continuou: — Mas eu sei que é. Eu sei. Um universitário branco matriculado em Memphis. Eu o cerquei e o peguei em flagrante. Mas não me deixam prender o cara. Disseram que devia verificar minhas provas de novo. Eles acham que é melhor que um homem que estupra mulheres em um bairro de cor seja negro também. Arranjaram um coitado para prender. É o jeito.” (página 182)

Joan tem um talento especial para o desenho. A mãe, Miriam, deseja que ela curse algo que a faça ter empoderamento – claro que o termo não é usado, não era da época em que os eventos têm lugar. Miriam deseja o melhor para a filha e pô-la a salvo, naquela sociedade injusta, era sua meta. O talento de Joan fala mais alto, entretanto. Com a ajuda da tia August – ela mesmo possuidora de bela voz – vai estudar desenho em uma faculdade.

Joan é uma batalhadora. O reconhecimento de suas habilidades se dá quando ela pede para desenhar as mãos da Srta. Dawn:

“Paramos perto da base da escada e Loba se sentou, quase tão alta quanto Mya, mesmo quando sentada. Mãos são a coisa mais difícil de ser desenhada. Mas as mãos daquela mulher, com as veias anciãs e os nós dos dedos endurecidos – eu sabia que suas mãos seriam minha Mona Lisa, as Laranjas de Cézanne, as Nenúfares de Monet, se conseguisse desenhá-las corretamente.” (página 99)

Embora esta Srta. Dawn não tenha protagonismo no romance, ela permanece como um símbolo, os olhos que viram tudo na vida, as mãos que lidaram com as agruras da vida e por isso, merecem referência. Ela é anciã, guardadora da sabedoria empírica, não teorizada.

São três gerações de mulheres, cada uma delas brava a seu jeito. Hazel, a matriarca; Miriam, filha de Hazel e mãe de Joan. Joan, a seu turno, vence um trauma de infância e se empenha naquilo em que acredita. Há também Mya, irmã mais nova que Joan, sem protagonismo no livro.

Outra figura resiliente até certo ponto é a irmã de Miriam, August. Ela é mãe de Derek e tem de lidar com a prisão do filho. Todas estas mulheres fortes têm de emergir numa sociedade de supremacia branca.

Memphis é uma obra acima do comum. Tara M. Stringfellow é uma escritora excelente, sensível para as causas dos seus. E tem a virtude de não tentar produzir literatura panfletária – aliás, expressão infeliz, já que Literatura e panfletarismo não podem se coadunar. É o motivo pelo qual não gosto de ler certos autores, como alguns escritores russos de esquerda. Não por serem de esquerda, mas pelo panfletarismo exercido.

O que mais impressiona, no entanto, é o fato de este livro ser o primeiro escrito por Tara M. Stringfellow. A qualidade literária é inegável, mas coloca sobre a autora uma expectativa muito grande. Nós, leitores, não esperamos dela nada menos que outra obra de igual qualidade, que nos agrade do mesmo modo.

Creio que, ao final do ano, este Memphis vai estar, tranquilamente, entre os melhores livros lidos por mim. Ao recomendar com ênfase a leitura deste volume (disponível pela Editora Tordesilhas), devo alertá-lo, meu caro leitor, que o enredo é do tipo não linear, isto é, o enredo recua e avança no tempo – um lapso de 70 anos envolve as três principais mulheres.

A autora facilitou o nosso trabalho de recuperação do sequenciamento dos fatos em Memphis, nomeando cada capítulo Joan, Miriam, Hazel, August, seguidos dos anos em que os acontecimentos tiveram lugar.

Boa leitura!

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