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domingo, 12 de maio de 2024

Resenha nº 222 - A Analfabeta, de Ágota Kristóf

 




Título original: L’Analphabète: Récit autobiographique

Autora: Ágota Kristóf

Tradutora: Prisca Agustoni

Edição: N/c

Editora: Nós

Copyright: 2024

ISBN: 978-65-85832-15-1

Gênero literário: Relato autobiográfico

Origem: Literatura húngara

 

Ágota Kristóf é uma escritora húngara nascida na cidade de Csikvánd, em 30/10/1935. É considera uma das maiores escritoras europeias do século XX. Abandonando seu país, aos vinte e um anos de idade, juntamente com sua filhinha de quatro anos e seu marido, fugiu da repressão soviética que se seguiu à Revolução Húngara de 1956. Passou pela Áustria, em sua rota de fuga, com destino à Neuchatêl, Suíça. Nesta mesma cidade suíça, faleceu Ágota Kristóf em 27/07/2011, aos setenta e cinco anos.

Foi bem acolhida no novo país. Lá começou a trabalhar numa fábrica de relógios – época em que aprendeu o francês, idioma que seria, dali para frente, sua língua de expressão literária.

Escreveu os seguintes livros: 1986: Le grand cahier; 1988: La Preuve; 1991: Le Troisième mensonge; 1995: Hier; 2004: L’analphabète; 2005: C'est égal. Existe, ainda – sem tradução para o português do Brasil – uma coletânea de quatro peças, denominada L’Heure grise, de 1998, (A hora cinza), contendo os seguintes textos: John et Joe (1972), La clé de l’ascenceur (1977), Un rat qui passe (1972-1984), L’heure grise ou le dernier client (1975-1984).

No Brasil, Ágota Kristóf não é muito conhecida, apesar de sua importância literária. Pelo que consegui apurar, há traduções brasileiras para Le grand cahier (Um caderno e tanto), La preuve (A prova) e Le Troisième mensonge (A terceira mentira), que vão compor uma trilogia, conhecida como Trilogia da cidade de K. Infelizmente, tais obras estão esgotadas há anos e mesmo estas, encontradas em sebos pelo Brasil, são antigas e as publicações não estão à altura do que merece nossa escritora húngara.

A Editora Nós tomou a si a responsabilidade de publicar A Analfabeta, em uma edição mais caprichada. Um volume pequeno, de bolso, contendo apenas cinquenta e duas páginas, ao modo dos livros da francesa Ernie Arnaux. Talvez por influência de Arnaux é que a Editora Nós tenha se animado a publicar o trabalho de Ágota.

Nesse caso, da força de Ernie, um prêmio Nobel, e do prestígio indiscutível que ganhou sua autoficção, pela proximidade de gênero, teria vindo a lume A Analfabeta – um relato biográfico – escrito em primeira pessoa.

Creio, como disse a tradutora e escritora Prisca Agustoni, no Instagram, parece haver um momento propício aos relatos autobiográficos, enquanto acontecem movimentos imigratórios intensos pelo mundo. Tornam-se importantes os depoimentos pessoais, para a compreensão da cultura do outro, modernamente desaguando num gênero específico, que ficcionaliza histórias de vida, num contexto cultural multifacetado.

Tenho na minha biblioteca, em volumes separados, a Trilogia da cidade de K., ou como é mais conhecida, a “trilogia dos gêmeos”. Consegui adquiri-los, editados pela Editora Rocco, mas, como disse acima, o tratamento dado a estas publicações não condiz com o valor da escritora.

Tudo isto posto, vamos ao volume A Analfabeta.

Não é bom a gente ficar tentando descobrir a biografia do autor por trás de sua literatura. Mas, no caso assumido deste relato biográfico, isto não só é permitido, como recomendado, de vez que a própria classificação de biografia reporta à vida do autor ou autora.

O parágrafo inicial já impacta o leitor:

“Leio. É como uma doença. Leio tudo o que me chega às mãos, aos olhos: jornais, livros escolares, manifestos, pedaços de papel achados pela rua, receias de cozinha, livros para crianças. Tudo o que está impresso.” (página 5)

A mesma compulsão que moveu o fidalgo Dom Quixote. Entretanto, enquanto na fantástica obra de Miguel de Cervantes a “doença” da leitura leva o cavaleiro andante à loucura, jogando-o num mundo imaginário impossível, a leitura é uma iniciação e um ato de preservação psicológica diante da guerra que começa.

A Hungria estava subordinada ao comando da União Soviética. Explode, então, um movimento de revolta ao comando central. A repressão é violenta, como o é a repressão de qualquer ditadura.

O trecho abaixo representa bem a opressão que vive a autora, mandada estudar num internato – no caso, um internato linha-dura, muito semelhante à ditadura vivida:

“Mas não tenho a liberdade de visitar meu irmão Yano, que se encontra somente a vinte quilômetros daqui, na mesma situação que eu, e que também não pode me visitar. Somos proibidos de deixar a cidade, e, de qualquer forma, não temos dinheiro para o trem.” (página 15)

Um dos capítulos se inicia com um título incisivo: Língua materna e línguas inimigas. A narradora havia sido alfabetizada em húngaro, sua língua natal. Sob a repressão soviética, é obrigada a alfabetizar-se em russo, a língua imposta:

“Ninguém conhece russo. Os professores de línguas estrangeiras – alemão, inglês, francês – começam a frequentar cursos intensivos de russo durante alguns meses, mas não podemos dizer que o aprendam de fato, e acabam não tendo vontade nenhuma de ensiná-lo. De qualquer forma, os estudantes não têm vontade nenhuma de aprendê-lo.” (página 23).

Ao fugir do seu país, aos vinte e um anos, junto com a filha e o marido, Ágota terá de ser alfabetizada pela terceira vez na vida, o que levanta a questão de como será alguém se pensar e pensar o mundo numa língua estrangeira que possivelmente o limita:

“É assim como, com 21 anos, ao chegar na Suíça, e absolutamente por acaso numa cidade onde se fala francês, encaro uma língua para mim totalmente desconhecida. É aqui onde começa minha luta para conquistar essa língua, uma luta longa e acirrada, que por certo durará por toda a minha vida.” (página 23)

E, um pouco adiante, na mesma página:

“Falo francês há mais de 30 anos, o escrevo há 20, mas ainda não o conheço. Não consigo falar sem erros e só consigo escrever com a ajuda de um dicionário que consulto frequentemente.

É por esta razão que defino a língua francesa também como sendo uma língua inimiga. Mas tem outra razão, a mais grave: essa língua está matando minha língua materna.” (página 23)

A vida continua, Kristóf trabalha numa fábrica de relógios. É bem-tratada pelos suíços, “um sujeito grandalhão” a aborda no ônibus, no intuito de tranquilizá-la lhe diz que os suíços jamais deixarão os russos chegarem até ela. Não suspeita que, apesar de se sentir acolhida, persiste na estrangeira o sentimento de expatriada:

“Como explicar, sem ofendê-lo, e com as poucas palavras eu sei em francês, que seu lindo país é apenas um deserto para nós refugiados, um deserto que temos que atravessar para chegar àquela que chamam “a integração”, “a assimilação”. Naquele momento eu ainda não sei que vários entre nós não conseguiriam chegar até lá.” (página 41)

A Analfabeta é um relato lírico e, ao mesmo tempo, muito realista. São expostos aqui os sentimentos como os de nosso Gonçalves Dias, em sua Canção do Exílio:

“Minha terra tem primores

que tais não encontro eu cá;

em cismar – sozinho à noite

mais prazer encontro eu lá;

minha terra tem palmeiras

onde canta o sabiá.”

E escrever se torna uma profissão de fé. Quem sente esta segunda doença, a de escrever – a primeira, como nos disse a autora, é a de ler – pode aquilatar o significado de estar-se impedido de vazar para o papel seus registros, literários ou não:

“Primeiramente, é claro, é preciso escrever. Em seguida, é preciso continuar escrevendo. Inclusive quando não interessa a ninguém. Inclusive quando temos a impressão de que nunca interessará a ninguém. Inclusive quando os manuscritos se acumulam nas gavetas e nós os esquecemos, mesmo continuando a escrever outros.” (página 43)

Poderia continuar escrevendo sobre o pequeno volume A Analfabeta. Por identificação, além da qualidade literária de seu texto. Também sou mordido pela doença de escrever. Escrevo, reviso, reviso textos que nem sei se um dia estarão nas mãos do público. Não importa: escrever é preciso. Viver não é preciso.

Como sou igualmente leitor, tenho de decidir outro dilema: ler também é preciso. Não, talvez não haja dilema: ler e escrever, afinal, se contraídas, são doenças incuráveis. Não é, meu caro Fernando Pessoa?

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