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segunda-feira, 3 de junho de 2024

Resenha nº 223 - A Filha Perdida, de Elena Ferrante




Título Original: La Figlia Oscura

Título em português: A Filha Perdida

Autora: Elena Ferrante

Tradutor: Marcello Lino

Copyright: 2006

ISBN: 978-85-510-0032-8

Gênero literário: romance

Origem: Itália

 

Elena Ferrante é uma escritora italiana. Esta informação é quase tudo o que sabemos sobre a autora. Ah, sabemos mais um pouco: o nome dela é apenas um pseudônimo literário. Pronto. Esgotou-se a biografia conhecida desta senhora, que insiste em se manter desconhecida do seu grande público.

Em 1991, Elena apareceu com o seu primeiro romance, Um amor incômodo. 2002 chegou, e ela publicou seu segundo romance, Dias de Abandono. Em 2003, ela publicou um livro de não ficção, Frantumagliacaminhos de uma escritora, um volume de entrevista com Ferrante.

Este A Filha Perdida é de 2006; nele, entramos em contato com a história de Leda, uma professora universitária divorciada, que tem duas filhas. Leda está de férias em uma praia no sul da Itália.

Em 2007, saiu o único livro voltado para o público infantil, com o título de Uma Noite na Praia. Em 2011, a escritora começou o que seria seu maior sucesso editorial até agora: a tetralogia de Nápoles, como ficaram conhecidas as sequências de Uma Amiga Genial: História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica, História da Menina Perdida.

Com a sequência de Nápoles, Elena Ferrante ganhou vários prêmios, sendo um sucesso de público e de crítica. Podemos seguir aqui a história de Lenu, caracterizada como “brilhante, intensa, boa aluna na escola” e sua melhor/pior amiga, igualmente individualizada como “brilhante como Lenu”, mas de um brilhantismo anárquico e autodidata.

Se considerarmos os quatro volumes como um todo, quase podemos dizer que se trata de um romance de formação, ou bildungsroman.

Cheguei ao volume A Filha Perdida, de Elena Ferrante, conduzido pelo filme homônimo ao livro, Uma Filha Perdida, produção da Netflix, com Olivia Colman, Jessie Buckley, Dakota Johnson no elenco e direção/roteiro de Maggie Gyllenhaal. O engraçado é que gostei do filme, mas não muito.

A despeito do desempenho do elenco, o filme é um pouco arrastado; o “não gostei muito”, aqui, vai mais para a escolha da diretora e roteirista. Transpor uma história complexa, com várias camadas interpretativas, com vários trechos digressivos ou filosóficos é uma opção arriscada, quando se trata de um filme, na minha opinião modesta. Mas o meu negócio é o livro.

Pois é. Cheguei ao volume e... gostei muito. A história é realmente complexa e sensível – como se diz hoje – sobre as agruras da maternidade. Mas não só, como disse acima. Subtemas perpassam o texto, para deleite do leitor atento.

Deixemos o parágrafo inicial do livro falar:

“Eu estava dirigindo havia menos de uma hora quando comecei a passar mal. A queimação na lateral do corpo reapareceu, mas de início decidi não dar importância àquele sinal. Só me preocupei quando percebi que não tinha mais forças para segurar o volante. Em poucos minutos, minha cabeça ficou pesada, os faróis me pareceram cada vez mais fracos e logo esqueci até que estava dirigindo. Em vez disso, tive a impressão de que estava no mar, em pleno dia. A praia estava vazia, e a água, calma, mas em um mastro a poucos metros da orla tremulava a andeira vermelha.” (página 5)

Aí está uma das características da escritora Elena Ferrante: ela sabe muito bem usar o “mostrar e não dizer”, isto é, ao invés de simplesmente dizer que Leda teve um desmaio ao volante do carro, ela mostra a cena. Esta escolha acertada de técnica narrativa mexe com as emoções do leitor, que as vai construindo à medida que é conduzido pelo texto.

Leda é uma professora universitária, divorciada e mãe de duas filhas já grandes.

“Quando minhas filhas se mudaram para Toronto, onde o pai vivia e trabalhava havia anos, descobri, com um deslumbre constrangedor, que eu não sentia tristeza alguma – pelo contrário, estava leve, como se só então as tivesse definitivamente posto no mundo. Pela primeira vez em quase vinte e cinco anos, não senti mais aquela ansiedade por ter que tomar conta delas. A casa estava arrumada, como se ninguém morasse ali, eu não precisava mais me preocupar o tempo todo em fazer compras ou lavar a roupa suja, a mulher que havia anos me ajudava nas tarefas domésticas conseguiu um trabalho mais rentável, não senti necessidade de substituí-la.” (capítulo 2, página 7)

Esta vai ser a tônica durante a trama: uma mãe que, ora se sente feliz por não ter mais de cuidar das filhas, ora se sente cobrada por não ter sido uma boa mãe. A narrativa fica mais intrincada quando, já na praia do sul da Itália, Leda encontra uma família de napolitanos – especialmente uma mulher jovem, Nina, casada e com uma filha pequena, Elena.

“Elas também faziam parte da família grande e barulhenta, mas a jovem mãe, vista assim à distância, com seu corpo esbelto, o maiô escolhido com muito bom gosto, o pescoço esguio, a cabeça graciosa e os cabelos longos e ondulados de um negro brilhante, o rosto indiano com as maçãs salientes, as sobrancelhas marcadas e os olhos oblíquos, pareceu-me uma anomalia naquele grupo, um organismo que misteriosamente fugira à regra, a vítima, agora conformada, de um sequestro ou de uma troca de bebês.” (página 18)

O foco da observação silenciosa da professora universitária recai sobre a relação da pequena Elena e sua mãe. Mirando-se na relação das duas, Leda faz incursões de memória, avalia sua relação com as próprias filhas:

“Queria que minhas filhas fossem amadas, não suportava que não fossem, a possível infelicidade delas me aterrorizava. Mas as lufadas sensuais que sopravam delas era violentas, vorazes, e eu sentia que o corpo delas tinha como que roubado o poder de atração do meu.” (página 64)

A realidade vai, aos poucos, se impondo. Elena perde uma boneca na praia e agora está inconsolável. Com a pequena no colo – ela se recusa a descer ao chão – Nina reage, sob os olhos perscrutadores de Leda:

“Onde estava o idílio que eu havia presenciado na praia? Reconheci o constrangimento de estar sob o olhar de estranhos naquelas condições. Evidentemente fazia horas que ela tentava acalmar a menina sem sucesso e se sentia esgotada. Ao sair de casa, tinha tentado travestir a fúria da filha com um vestido bonito.” (página 81)

À certa altura, a narrativa retorna ao passado e vemos Leda participando de um congresso internacional sobre o escritor E. M. Foster:

“Havia uma palestra muito esperada, a do professor Hardy, um estudioso muito admirado, de uma universidade prestigiosa. Meu professor sequer me cumprimentou, estava com outras pessoas. Encontrei um lugar no fundo da sala, abri diligentemente meu caderno de anotações. Hardy apareceu: um homem de uns cinquenta anos, baixinho, magro, com um rosto agradável e olhos extraordinariamente azuis. Ele falava em um tom de voz baixo e envolvente, e depois de algum tempo surpreendi a mim mesma, me perguntando se gostaria que ele me tocasse, acariciasse, beijasse. Falou dez minutos e, de repente, como se a voz viesse de dentro da minha alucinação erótica e não do microfone ao qual ele estava falando, eu o ouvi pronunciar meu nome, depois meu sobrenome.” (página 118)

Para a sua satisfação, o nome e sobrenome de Leda foram citados em voz alta, como referência para o trabalho do professor Hardy. Mais à frente, outro trecho muito elucidativo para a tese do livro. Quando Leda retorna para casa, Gianni, seu marido, a repreende:

“Gianni, quando voltei, me repreendeu por ter ligado apenas duas vezes em quatro dias, quando Marta estava doente. Eu respondi: estive muito ocupada. Disse também que, depois do que havia acontecido, precisaria trabalhar muito para estar à altura da situação.” (página 12)

Um dos temas do livro A Filha Perdida é, portanto, sobre as dificuldades pelas quais as mulheres passam, ao serem mães. A sinopse, na quarta capa do livro, me parece certeira, por isto transcrevo um trecho:

“Aliviada depois de as filhas já crescidas se mudarem para o Canadá com o pai, Leda decide tirar férias no litoral sul da Itália. Logo nos primeiros dias na praia, ela volta a atenção para uma grande família napolitana, barulhenta e grosseira, semelhante a sua própria família de origem, da qual conseguiu escapar aos dezoito anos para estudar em Florença. Sentindo por eles uma mistura de repulsa e fascínio, Leda se identifica em especial com Nina, uma jovem mãe, e Elena, sua filha pequena, e se envolve cada vez mais com as duas e com o objeto de afeto da menina, uma boneca. Nina inicialmente parece ser a mãe perfeita e faz Leda se lembrar de si mesma quando jovem e cheia de expectativas. A aproximação das duas, porém, desencadeia em Leda uma enxurrada de lembranças, da infância infeliz a segredos da vida adulta que ela nunca conseguiu revelar a ninguém.”

Sim, não é spoiler, Leda tinha achado a boneca e a conservou consigo o tempo todo, só a devolvendo ao final. Como se ela necessitasse que aquela família – com quem tivera uma relação ambígua – a considerasse uma péssima pessoa, embora Nina quase a tenha elegido à categoria de modelo.

A Filha Perdida trabalha um feminismo sem afetações, focando na realidade dura das mães modernas, que têm de trabalhar, lutar para manter seu emprego, seus filhos, sua casa e, ainda, marido.

Há outros temas: o que é permitido aos homens e é vedado às mulheres; a herança de infelicidade entre mães e filhas; o lugar da mulher no mundo, principalmente no mundo de hoje; o casamento socialmente tido como única forma de realização da mulher; a assexualização da figura materna...

Como escreve nossa autora, “uma mãe não é nada além de uma filha que brinca”... 

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