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terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Resenha nº 213 - Oração Para Desaparecer, de Socorro Acioli

 




Título: Oração Para Desaparecer

Autora: Socorro Acioli

Editora: Cia. das Letras/TAG

Edição: 1ª

Copyright: 2023

ISBN: 978-85-359-3461-8

Gênero literário: Romance

Origem: literatura brasileira

 

Socorro Edite Oliveira Acioli Martins nasceu em Fortaleza, Ceará, em 24/02/1975. Iniciou-se na literatura infantil, escrevendo 16 obras. Como autora de literatura juvenil, foram mais 4 obras. É ganhadora de vários prêmios: Prêmio Jabuti 2013, Melhor Obra Inédita de Literatura Infantil da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará 2005, Selo Altamente Recomendável FNLIJ 2006, 2007 e 2008. Prêmio Ceará de Cinema e Vídeo da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará – Categoria Roteiro.

Dentro da categoria literatura adulta, ela publicou dois romances: A Cabeça de Santo (2014) e este Oração Para Desaparecer (2023).

Este livro tem algumas peculiaridades bastante interessantes. Um dos personagens, Félix Ventura, é “emprestado” do livro O Vendedor de Passados, do escritor angolano José Eduardo Agualusa – livro já resenhado neste blogue em 2015, resenha número 56. Para fazer esta apropriação, Acioli entrou em contato com o angolano, obtendo sua permissão.

A outra intertextualidade é com O Livro dos Itinerários, de José Saramago. A primeira frase deste livro é “Sempre chegamos ao sítio onde nos esperam”. Entretanto, tal livro nunca existiu, apesar de ser citado em A Viagem do Elefante, do mesmo Saramago – cuja epígrafe é a frase do livro fictício.

Os Tremembés são um povo indígena, conhecedor de práticas de caça de animais selvagens. Como está na revista da TAG, para eles “Há também a crença nos encantados e encantes. Para eles, algumas pessoas encantam-se começam a viver numa dimensão encantada, não acessível a outras.”

Estes são alguns dos ingredientes que vão compor este romance.

E acho que há necessidade de outra explicação. O livro vai tratar dos ressurrectos, isto é, pessoas que “ressuscitam” – no caso do livro, desaparecem de um lugar e aparecem em outro. Geralmente, não o fazem conservando a memória de quem foram, recuperando-a depois de certo tempo.

“Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes alguém me enterrou. Bichos alisavam minha língua, rastejavam pelos ouvidos e por outros caminhos para dentro das carnes. Debaixo do chão era uma agonia gelada, molhada, fedida. Não sentia braços e pernas no breu daquela cova. Perdi a noção do meu corpo, achei que me transformaria em um bicho morto, me desfazendo até virar pó. Ninguém sabe o que fazer na hora da morte.” (página 13)

Socorro Acioli trafega no que se convencionou chamar de “realismo mágico”. As pessoas não estranham o fato de um corpo vivo brotar do chão. O casal Florice e Fernando, portugueses, estão ali a postos para acabar de extrair a protagonista do solo.

Não há qualquer explicação de como este estranho acontecimento – e estranhamento sempre acompanha o leitor de realismo mágico –, nem porque o casal foi indicado para estar na localidade, com a missão do resgate. Apenas é dito que tal função é frequente na família dos salvadores:

“Não é qualquer morto, são os escolhidos para isso. Quem começa uma vida nova. Meu avô repetia exatamente isso quando tocávamos no assunto o que aconteceu contigo é parte da história da minha família há anos, um absurdo que nunca entendemos, quase um delírio, não contamos para ninguém, sempre foi nosso segredo.” (página 27)

Atônita, a personagem não entende o que lhe aconteceu. Florice, muito solícita, tenta explicar:

“Não perceber o que te aconteceu é devastador, mas outros chegaram quase sempre mudos, soltando grunhidos que ninguém entende, latem, miam, um festival de horrores. As palavras vieram, isso é muito bom, mas tem paciência. É como reconstruir uma cidade depois de um terramoto. Tu te desfizeste, foi uma categoria de morte, mas não daquelas que encerram a via. É uma ressurreição, entendes?” (página 26)

A protagonista, ainda sem ser nomeada, tem confusas recordações sobre o soterramento de uma igrejinha. Florice lhe apresenta um caderno de anotações, chamado de O Livro das Visões e a orientou para que escrevesse suas progressivas recordações:

“Na segunda página comecei:

 Saí de um buraco na terra da Almofala, em Portugal. Estava nua e careca, só usava um colar de búzios. Não sei o meu nome. Fui salva por um casal de idosos. Tenho cortes e marcas de violência no corpo. Sou brasileira. Consigo ver os mortos. Não me lembro de nada. Acredito em Deus.” (página 34)

Aqui, outra informação interessante. Almofala nomeia várias cidades; são seis aldeias em Portugal e uma no Brasil, no distrito de Itarema, Ceará. Há uma igrejinha lá que sofreu o processo de soterramento (1897-1898), conhecido como erosão eólica, ou seja, o vento move as dunas de areia contra um obstáculo. A construção foi posteriormente recuperada.

Como a protagonista não se lembra do seu nome, é batizada de Aparecida por Fernando.

“Aceitei ser Cida, por puro cansaço. Fiz que sim, sorri de leve. Levaria a marca deles dois comigo, já que fizeram meu parto na cova. Não tinha por que recusar o nome novo, não me restava nada além de aceitar que as coisas teriam de seguir de alguma forma. Cida era um nome neutro, pois vinha do modo absurdo como cheguei aqui, no sentido deles, evocava milagre.” (página 40)

Félix Ventura aparece lá pelas páginas do capítulo 9. É contratado para fazer o que faz no livro do Agualusa, O Vendedor de Passados; afinal, ele é o único com esta profissão no mundo: constrói passados coerentes para pessoas que, por algum motivo, desejam viver nova vida. Aparecida é assim, não se lembra do seu próprio passado; então, é preciso criar-lhe um novinho.

Ventura conhece Cida. Para a criação de um passado eficiente, mister é conhecer a pessoa, entrevistá-la. E ele pede à protagonista que o mantenha informado, o que ela fará pelo menos uma vez por ano.

Cida e Jorge formam um casal. É ele quem vai ajudá-la a desvendar sua origem e os acontecimentos que antecederam seu parto na cova da Almofala portuguesa. Ligam-se as duas cidades do mesmo nome.

O parágrafo inicial do livro, transcrito acima, me fez lembrar da famosa epígrafe machadiana “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas”. Cida sente os bichos alisarem sua língua, rastejarem pelos seus ouvidos; isto, além de ela ser não uma defunta autora, mas uma estranha quase-defunta personagem, ressurrecta, tornou-me a associação inevitável. Vale anotar, Oração Para Desaparecer não tem a ironia genial de Machado – e nem é este o propósito.

Caro leitor, se você gosta de Jorge Luís borges, Bioy Casares, Silvina Ocampo, Gabriel Garcia Marques, deve se deleitar com este livro. Quero dizer, se você aprecia o realismo mágico, este livro será um prato feito.

Oração Para Desaparecer é uma das minhas melhores leituras do mês de dezembro do ano passado. Vejo como enorme satisfação mulheres produzindo literatura brasileira de qualidade. Conta o motivo de serem mulheres; mas é fundamental que suas produções sejam boas.

domingo, 28 de janeiro de 2024

Resenha Nº 212 - O Castelo de Gelo, de Tarjei Vesaas

 




Título original: Is-slottet

Autor: Tarjei Vesaas

Tradutor: Leonardo Pinto Silva

Edição: 1ª

Editora: Todavia

Copyright: 1963

ISBN: 978-65-5692-384-0

Gênero literário: romance

Origem: Noruega

 

Tarjei Vesaas é um escritor norueguês, nascido em 20/08/1897 e falecido em 15/03/1970. Filho de Olav Vesaas (fazendeiro) e Signe Øygarden, uma professora, ele veio ao mundo na cidade de Vinje, Telemark e morreu em Oslo.

É ganhador de vários prêmios: Gyldendarl’s Endowment (1943), Melsom Prize (1946), Dobloug Prize (1957), Nordic Coucil’s Literature Prize (1964) e Norwegian Bookseller’s Prize (1967). É considerado o autor norueguês mais importante do século XX.

Autor prolífico, como cita a enciclopédia livre, Wikepedia. Entre suas obras selecionadas – todas relacionadas com seus títulos em inglês ou norueguês – seguem-se: Dei svarte hestane, romance de 1928; The great cycle, romance, 1924; Women call home, romance, 1935; The seed, romance, 1940; The house in the dark, romance, 1945; The winds, contos, 1952; Land of Hidden fires, poesia, 1953; Spring night, romance, 1954; The Birds, romance, 1957; The ice palace, romance, 1963; The bridges, romance, 1966; The boat in the Evening, romance, 1968 e, finalmente, Through Naked branches, poemas selecionados, 2000. Destas, sua única obra traduzida aqui, no Brasil, é The ice palace, O palácio de gelo.

Muito bem, não sabemos muitas coisas sobre este autor norueguês. Além de percebermos que ele foi um autor muito premiado em seu país, sabemos mais duas particularidades de Vesaas. Ele era um apreciador de longas caminhadas. Escreveu em nynorsk (?).

Franqueando o resultado de uma pequena pesquisa na internet: “o nynorsk, que antes de 1929 era chamado de landsmål, é uma das duas línguas escritas oficiais da Noruega e foi adotada pela decisão de igualdade linguística realizada em 12 de maio de 1885. Ela é usada na escrita por volta de 13% da população.” (obtido em https://cursodenoruegues.com.br)

Respiremos.

Vamos a O Castelo de Gelo. Como já é costume meu, acessemos os parágrafos iniciais:

“Um rosto jovem e alvo a luzir na escuridão. Uma menina de onze anos. Siss.

Na verdade era ainda tardinha, mas já estava escuro. A agonia de um outono congelante. Estrelas, mas sem lua no firmamento, e nada de neve para refletir a luz – a escuridão, apesar delas, era total. De ambos os lados, a floresta morta e silente encerrava tudo o que bem poderia estar vivo e congelando naquele exato instante.

Siss remoía muitas coisas à medida que caminhava envolta pela neblina. Pela primeira vez estava indo à casa de Unn, uma garota que mal conhecia, desbravar algo incerto, e por isso mesmo tão excitante.” (página 7)

Temos aí a base deste belo e melancólico romance: as duas garotas de onze anos se iniciam uma amizade. Enquanto Siss é extrovertida, alegre, líder de turma, Unn é seu oposto. Recolhida, taciturna e de poucas palavras, tinha chegado recentemente à localidade para morar com uma tia. Entretanto, Siss se sente atraída pela colega de mesma sala, na escola:

“Siss sentia um formigamento pelo corpo. Uma sensação tão prazerosa que não se dava o trabalho de esconder. Ela fingia que não era nada de mais, mas era uma sensação diferente e até reconfortante. Não era um olhar invasivo, nem enciumado, havia desejo naqueles olhos – ela logo percebeu ao fitá-los também. Havia expectativa. Unn afetava indiferença assim que saíam da sala, evitava se aproximar. Mas uma certeza Siss tinha ao sentir aquele formigamento se espalhando pelo corpo inteiro: Unn está sentada logo ali, de olhos postos em mim.” (página 12)

Tateante, a amizade entre as duas aos poucos se solidifica. Siss vai pela estrada coberta de gelo, à noite, visitar Unn, na casa da tia:

“Era isso e nada mais o que Siss sabia sobre Unn – e agora estava a caminho de encontrá-la, depois de ter passado em casa e avisado os pais.

O frio penetrava suas roupas. O chão rangia sob os pés, e o gelo estalava ao longe.

Então despontou no horizonte a casinha onde Unn e a tia moravam. A luz bruxuleava por entre as folhas das bétulas. O coração acelerou de alegria e ansiedade.” (página 15)

O encontro entre as duas meninas será algo estranho. Não pela tia de Unn, que recebe Siss carinhosamente. Mas porque Unn é reservada demais, tem um comportamento como se o mundo pesasse, apesar de ser tão nova, sobre seus pequenos e frágeis ombros.:

“Elas se aproximaram. Sem desviar o olhar, como se estivessem examinando uma à outra. Medindo-se. Não era algo trivial – por alguma razão inconsciente. Havia um incômodo por estarem se sentindo assim, acanhadas, frente a frente. Seus olhares se encontravam, transmitiam uma espécie de nostalgia afetuosa, e mesmo assim as duas se sentiam profundamente envergonhadas.” (página 18)

Unn também gostava de longas caminhadas solitárias. É assim que ela descobre, um dia, o “castelo de gelo” de que trata o título desta obra. Ele fica perto de uma cachoeira e a temperatura ambiente é tão baixa que as águas, ao caírem, vão formando galerias, estrutura labiríntica de um castelo:

“Somente quando estava no sopé da encosta ela pôde apreciar aquilo tudo comparado à garotinha que era, e, se ainda restava algum peso em sua consciência, ele desapareceu completamente. Não podia haver coisa mais certa a fazer do que ter ido ali, agora tinha certeza. O imenso castelo de gelo era sete vezes maior e mais imponente daquela perspectiva.” (página 49)

Percebe-se tratar-se de uma obra delicada, com referências em que as coisas não se definem por inteiro. Por exemplo, o que poderia pesar tanto na consciência de Unn – uma garotinha de onze anos? Qual era a natureza da amizade entre as duas meninas, tão sensória?

Tarjei Vesaas usa, para sugerir, para compor seu romance as paisagens de gelo e neve da Noruega. Há uma melancolia – acho bonita esta palavra da língua portuguesa – uma tristeza contida, muito mais configurada em Unn do que em Siss.

Talvez seja exagero meu, mas noto algumas influências do simbolismo neste O Castelo de Gelo. As paisagens são um tanto... diáfanas, para usar uma palavra poética. O romance suscita, poderosamente, em minha tela imaginativa, aquele frio tão frio que do solo exala uma névoa, que congela tudo o que toca.

É um romance psicológico. O tempo, o enredo se prendem às sequências do que pensam as duas amigas. De início, pensa-se – talvez – que o castelo de gelo enorme, dominante, seja uma criação mental da pequena Unn. Mas não. Ele é visto por outras pessoas também. Galerias e mais galerias, transparentes, mas as imagens aparecem ali destorcidas, aumentadas, como se as paredes do castelo fossem lentes de aumento.

A obra aborda o fim da infância, o peso enorme representado por este final; o inevitável contato com o nosso eu que amadurece e nos traz o fim da inocência. Sem cometer spoilers, Siss terá de lidar com um fato terrível para ela:

“Siss desmoronou assim que chegou àquela conclusão. O pensamento que se recusava terminantemente a considerar a ideia que nem sequer mencionava para si mesma, mas que a rondava o tempo todo se insinuando – e provavelmente todos em vota já a teriam repetido abertamente muitas vezes – não era mais possível evitar.” (página 124)

Aqui, portanto, tangencia o romance um outro subtema, mais abrangente: a constatação de que, todos nós, adultos que somos, temos de nos vergar às adversidades da vida. Nunca somos fortes o bastante para nos sobrepormos a tudo.

E o próprio castelo de gelo, tão bem estruturado, em suas misteriosas galerias, enorme, cujo brilho do gelo se impõe, vai se derreter quando o tempo mais quente chegar. O gelo se transformará em água, será incorporada à água do rio e se escoará para o mar.

Na quarta capa deste excepcional, sensível e sintético romance há dois depoimentos. Não os considero, de modo algum, exagerados:

“Como é simples este romance. Como é sutil. Como é potente. Como é diferente de qualquer outro. É único. É inesquecível. É extraordinário” (Doris Lessing)

“Me surpreende o fato de este não ser o livro mais famoso do mundo.” (Max porter, autor de Grief is the Thing with Feathers)

Se você, meu caríssimo leitor, gosta de literatura da mais fina concepção, reflexiva, recorrente, não deixe de ler este O Castelo de Gelo.

Não posso encerrar sem fazer outro elogio: como é bela esta capa de autoria de Júlia Custódio. Tem tudo a ver com a construção literária do livro. Tanto assim, que – obra em mãos – quedei-me longo tempo admirando a composição da capa, com a linha de horizonte alta, a maior parte branca como o gelo e somente a fotografia dos fiordes noruegueses no alto. Belíssima.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Resenha nº 211 - A Cidade de Vapor, de Carlos Ruiz Zafón

 




Título original: La Ciudad de Vapor

Autor: Carlos Ruiz Zafón

Tradutores: Ari Roitman e Paulina Wacht

Editora: Suma

Edição: 1ª – 1ª reimpressão

Copyright: 2020

ISBN: 978-85-5651-131-7

Gênero literário: Contos

Origem: Espanha

 

Carlos Ruiz Zafón nasceu em Barcelona, em 25/12/1964, e faleceu em 19/06/202 em Los Angeles, EUA. Tornou-se uma das maiores revelações literárias dos últimos tempos com A Sombra do Vento, finalista dos prêmios literários Fernando Lara 2001 e Llibreter 2002. Suas obras foram traduzidas para onze idiomas. O autor colaborou nos jornais La Vanguardia e El País.

Seguindo-se ao livro citado acima, veio O Jogo do Anjo (2008), e vendeu mais de um milhão de exemplares só na Espanha. Em 2011, chegou-nos O Prisioneiro do Céu e, fechando a tetralogia, O Labirinto dos Espíritos (2016).

Esta publicação engloba todos os contos produzidos por Zafón, incluindo aí: Rosa de Fogo (2012), Two-Minutes Apocalypse (2015). Funciona, portanto, como uma homenagem póstuma a Carlos Ruiz Zafón.

Publicou, também, uma trilogia juvenil, O Príncipe da Névoa (1993), O Palácio da Meia-Noite (1994) e As Luzes de Setembro (1995). Marina, de 1999, é a última produção de Zafón antes do seu sucesso A Sombra do Vento – a quarta resenha deste blogue, em 2012.

Sei que muita gente torce o nariz quando se fala de livros tidos como sucessos comerciais – bestsellers –, mas não me importo nem um pouquinho com tal posição. Muitas vezes, não estou com disposição para mergulhar num Dostoiévski ou num Thomas Mann e estes exemplares de leitura ligeira cumprem bem sua função.

A Cidade de Vapor reúne onze contos: Blanca e o adeus, Sem nome, Uma senhorita de Barcelona, Rosa de fogo, O príncipe do Parnaso, Lenda de Natal, Alicia, ao amanhecer, Homens cinzentos, A mulher de vapor, Gaudí em Manhattan, Apocalipse em dois minutos.

Creio oportuno reproduzir um trecho da “nota do editor”, que acompanha o livro:

“De Blanca e o adeus”, o conto que inaugura o livro, a “Apocalipse em dois minutos”, que funciona como despedida, as histórias vão se entrelaçando por meio da voz narrativa, da cronologia ou dos detalhes, para nos desenhar um mundo que se ergue pletórico ante os nossos olhos, por mais que seja um mundo de ficção, um universo de vapor.

Também em relação aos gêneros literários, A cidade de vapor nos mostra a habilidade com que Carlos Ruiz Zafón se serve deles para constituir uma literatura própria e inconfundível, na qual identificamos elementos do romance de iniciação, do romance histórico, do gótico, do thriller, do romântico, sem faltar o toque magistral do relato dentro do relato.” (página 8)

De verdade, é um prazer ler Carlos Ruiz Zafón. Por outro motivo não fosse – abstraindo sua evidente qualidade literária e criatividade – pela homenagem que presta à própria literatura, na interessante referência ao Cemitério dos Livros Esquecidos localizado numa gótica Barcelona. Em A cidade de vapor, o escritor espanhol nos brinda, a nós, leitores deliciados de A Sombra do Vento, com incursões sobre o mundo da literatura. Das páginas destes contos reunidos saltam, vivíssimos, Miguel de Cervantes e Antoní Gaudí, o louco sonhador que projetou a desconcertante e bela Igreja da Sagrada Família.

Em Branca e o adeus, o título é quase um spoiler, sinal de que o autor não considerava o desfecho como uma surpresa a ser preservada para o final. Realmente, o interessante é o que acontece no desenrolar da história:

“Blanca era uns dois anos mais velha que eu. Conheci-a num dia de abril, em frente ao portão da minha casa: ela vinha segurando a mão de uma criada que fora buscar livros numa pequena livraria de antiguidades em frente ao auditório em obras. Quis o destino que nesse dia a livraria só abrisse ao meio-dia e que a criada tivesse ido às onze e meia, criando uma lacuna de trinta minutos de espera durante os quais, sem que eu sequer desconfiasse, o meu destino seria selado. Por minha própria conta, eu jamais me atreveria a trocar uma palavra com ela. Sua indumentária, o seu cheiro e seu jeito patrício de menina rica, blindada de sedas e tules, não deixavam a menor dúvida de que aquela criatura não pertencia ao meu mundo, e muito menos eu ao dela.” (página 16)

Sem Nome é um conto de enredo mínimo, mas nem por isso menos impactante. Apresenta um narrador que se esconde em primeira pessoa, para só se revelar na frase que fecha o texto. Em ritmo de recordações e pressupostos, ele nos conta sobre uma garota que anda pelas ruas de Barcelona, numa ambientação gótica:

“A garota olhou a bateria de gárgulas que arrematava as cornijas e supurava colunas de vapor que exalavam um perfume amargo de tinta e papel. Sentindo que a dor inflamava de novo suas vísceras, apressou os passos até a grande entrada principal e bateu a aldrava. Ouviu-se o eco amortecido de um sino atrás de um portão de ferro forjado. A garota olhou para trás e constatou que em poucos instantes o rastro de suas pegadas já estava revestido outra vez pela neve. Um vento gélido e afiado a encurralava contra o portão. Bateu de novo a aldrava com força, duas ou três vezes, mas não teve resposta. A tênue claridade que a envolvia parecia se desvanecer em alguns momentos, com as sombras se estendendo rapidamente aos seus pés. Sabendo que não tinha muito tempo, recuou alguns passos e se afastou do portão para examinar as janelas da fachada principal. Havia uma silhueta recortada em uma das vidraças enfumadas, imóvel como uma aranha no meio de sua teia.” (página 37)

Em Uma senhorita de Barcelona, um narrador nos fala a respeito de certo fotógrafo de gente morta. Cumpre-nos explicar que tal atividade era corriqueira tempos atrás. Eduardo Sentís, fotógrafo das trevas, é um dia chamado a fotografar Margarita Pons, infanta de cinco anos. Era filha de abastado casal e morrera de febres.

Dada a urgência e não tendo com quem deixar Laia, sua própria filha, leva-a à casa abastada e lhe recomenda ficar fora do aposento onde jaz a defunta. Dona Eulália, mãe da morta, estava no quarto e, alucinada de dor, beija a testa da filha. E a cena que se segue é a seguinte:

“— Meu anjo fala comigo – disse [a mãe] a Sentís. – Não está ouvindo?

 Sentís fez que sim e continuou com seus preparativos. Quanto mais cedo saísse dali, melhor. Quando já estava tudo pronto para começar a fazer as primeiras imagens, o fotógrafo pediu à mãe que se retirasse por uns instantes do campo de visão da câmera. Ela beijou a testa do cadáver e se colocou atrás dele.

 Sentís estava tão absorto em seu trabalho que não percebeu que Laia havia entrado no quarto e estava em pé ao seu lado, olhando congelada a menina morta estendida na cama. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, a senhora Pons foi até Laia e se ajoelhou à sua frente. “Olá, meu bem. Você é o meu anjo?”, perguntou. A dona da casa pegou a filha de Sentís nos braços e apertou-a contra o peito”. (página 47)

Rosa de fogo é, para mim, um dos melhores contos desta excelente coletânea. Possui referência à famosa Scherezade das Mil e Uma Noites, como também Raimundo de Sempere – uma autorreferência ao Cemitério dos Livros Esquecidos (A Sombra do Vento).

Um navio chegara a Barcelona, trazendo uma horrenda carga: vários sarcófagos flutuavam entre os escombros da embarcação. Ao leme, o único sobrevivente – meio morto, meio vivo – Edmond de Luna, o construtor de labirintos.

O inquisidor da cidade, homem religioso, mas tocado pelo verme da ambição desmedida, requisitou um caderno que encontraram com Edmond. Ninguém o podia entender – nem mesmo o inquisidor, pois estava escrito em persa. Esta ambição o põe a perder e quase põe a perder a cidade de Barcelona. Sobre aquele caso, pesava insuspeitada maldição:

“Com os olhos envenenados de cobiça, o Inquisidor pegou o frasco escarlate, subiu ao alar para benzê-lo e, agradecendo a Deus e ao inferno por aquela dádiva, ingeriu todo o conteúdo. Passaram-se alguns segundos sem que nada acontecesse. Depois, o Inquisidor começou a rir. Os soldados se entreolharam, desconcertados, perguntando-se se Jorge de León não teria perdido o juízo. Para a maioria deles, foi o último pensamento de suas vidas. Viram o Inquisidor cair de joelhos e uma lufada de vento gelado varrer a catedral, arrastando os bancos de madeira, derrubando imagens e círios acesos.

Depois, ouviram sua pele e seus membros se partirem, e a voz de Jorge de León se perder, entre uivos de agonia, no rugido da besta-fera que emergia de suas carnes, crescendo rapidamente em uma massa ensanguentada de escamas, garras e asas.” (página 73)

Como não será possível reescrever trechos de todos os contos do livro, fiquemos por aqui. O leitor já terá um gostinho do que o espera ao ler este livro. Inventividade, imaginação e uma escrita contagiante – as mesmas que consagraram nosso escritor estão presentes. Referências a Cervantes, a Antoní Gaudí o aguardam.

Prefiro deixar falar, novamente, o editor Émile de Rosiers Castellaine:

A Cidade de vapor é uma ampliação do mundo literário do Cemitério dos Livros Esquecidos, seja pelo desenvolvimento de aspectos desconhecidos de alguns personagens, seja pelo aprofundamento da história da construção da mítica biblioteca, ou porque a temática, os motivos e a atmosfera que envolve esses relatos parecerão familiares aos leitores da saga. Escritores malditos, arquitetos visionários, identidades fraudadas, edifícios fantasmagóricos, uma plasticidade descritiva irresistível, a mestria no diálogo... e principalmente a promessa de que o relato, o conto e o próprio fato de narrar nos levarão a um território novo e fascinante.” (página 8)

Nada a acrescentar.