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Título:
Oração Para Desaparecer Autora:
Socorro Acioli Editora:
Cia. das Letras/TAG Edição:
1ª Copyright:
2023 ISBN:
978-85-359-3461-8 Gênero
literário: Romance Origem:
literatura brasileira |
Socorro Edite Oliveira Acioli Martins nasceu em Fortaleza, Ceará, em 24/02/1975. Iniciou-se na literatura infantil, escrevendo
16 obras. Como autora de literatura juvenil, foram mais 4 obras. É ganhadora de
vários prêmios: Prêmio Jabuti 2013, Melhor Obra Inédita de Literatura Infantil
da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará 2005, Selo Altamente Recomendável
FNLIJ 2006, 2007 e 2008. Prêmio Ceará de Cinema e Vídeo da Secretaria de
Cultura do Estado do Ceará – Categoria Roteiro.
Dentro da
categoria literatura adulta, ela publicou dois romances: A Cabeça de Santo
(2014) e este Oração Para Desaparecer (2023).
Este livro tem
algumas peculiaridades bastante interessantes. Um dos personagens, Félix
Ventura, é “emprestado” do livro O Vendedor de Passados, do escritor
angolano José Eduardo Agualusa – livro já resenhado neste blogue em 2015,
resenha número 56. Para fazer esta apropriação, Acioli entrou em contato com o
angolano, obtendo sua permissão.
A outra
intertextualidade é com O Livro dos Itinerários, de José Saramago. A
primeira frase deste livro é “Sempre chegamos ao sítio onde nos esperam”. Entretanto,
tal livro nunca existiu, apesar de ser citado em A Viagem do Elefante,
do mesmo Saramago – cuja epígrafe é a frase do livro fictício.
Os Tremembés são
um povo indígena, conhecedor de práticas de caça de animais selvagens. Como está
na revista da TAG, para eles “Há também a crença nos encantados e encantes.
Para eles, algumas pessoas encantam-se começam a viver numa dimensão encantada,
não acessível a outras.”
Estes são alguns
dos ingredientes que vão compor este romance.
E acho que há
necessidade de outra explicação. O livro vai tratar dos ressurrectos, isto é,
pessoas que “ressuscitam” – no caso do livro, desaparecem de um lugar e
aparecem em outro. Geralmente, não o fazem conservando a memória de quem foram,
recuperando-a depois de certo tempo.
“Acordei com os olhos grudados de lama, o nariz entupido de terra e a boca cheia de areia estralando nos dentes alguém me enterrou. Bichos alisavam minha língua, rastejavam pelos ouvidos e por outros caminhos para dentro das carnes. Debaixo do chão era uma agonia gelada, molhada, fedida. Não sentia braços e pernas no breu daquela cova. Perdi a noção do meu corpo, achei que me transformaria em um bicho morto, me desfazendo até virar pó. Ninguém sabe o que fazer na hora da morte.” (página 13)
Socorro Acioli trafega
no que se convencionou chamar de “realismo mágico”. As pessoas não estranham o
fato de um corpo vivo brotar do chão. O casal Florice e Fernando,
portugueses, estão ali a postos para acabar de extrair a protagonista do solo.
Não há qualquer
explicação de como este estranho acontecimento – e estranhamento sempre
acompanha o leitor de realismo mágico –, nem porque o casal foi indicado para
estar na localidade, com a missão do resgate. Apenas é dito que tal função é
frequente na família dos salvadores:
“Não é qualquer morto, são os escolhidos para isso. Quem começa uma vida nova. Meu avô repetia exatamente isso quando tocávamos no assunto o que aconteceu contigo é parte da história da minha família há anos, um absurdo que nunca entendemos, quase um delírio, não contamos para ninguém, sempre foi nosso segredo.” (página 27)
Atônita, a
personagem não entende o que lhe aconteceu. Florice, muito solícita, tenta
explicar:
“Não perceber o que te aconteceu é devastador, mas outros chegaram quase sempre mudos, soltando grunhidos que ninguém entende, latem, miam, um festival de horrores. As palavras vieram, isso é muito bom, mas tem paciência. É como reconstruir uma cidade depois de um terramoto. Tu te desfizeste, foi uma categoria de morte, mas não daquelas que encerram a via. É uma ressurreição, entendes?” (página 26)
A protagonista,
ainda sem ser nomeada, tem confusas recordações sobre o soterramento de uma
igrejinha. Florice lhe apresenta um caderno de anotações, chamado de O Livro
das Visões e a orientou para que escrevesse suas progressivas recordações:
“Na segunda
página comecei:
Saí de um buraco na terra da Almofala, em Portugal.
Estava nua e careca, só usava um colar de búzios. Não sei o meu nome. Fui salva
por um casal de idosos. Tenho cortes e marcas de violência no corpo. Sou brasileira.
Consigo ver os mortos. Não me lembro de nada. Acredito em Deus.” (página 34)
Aqui, outra
informação interessante. Almofala nomeia várias cidades; são seis aldeias em
Portugal e uma no Brasil, no distrito de Itarema, Ceará. Há uma igrejinha lá
que sofreu o processo de soterramento (1897-1898), conhecido como erosão eólica,
ou seja, o vento move as dunas de areia contra um obstáculo. A construção foi
posteriormente recuperada.
Como a
protagonista não se lembra do seu nome, é batizada de Aparecida por Fernando.
“Aceitei ser Cida, por puro cansaço. Fiz que sim, sorri de leve. Levaria a marca deles dois comigo, já que fizeram meu parto na cova. Não tinha por que recusar o nome novo, não me restava nada além de aceitar que as coisas teriam de seguir de alguma forma. Cida era um nome neutro, pois vinha do modo absurdo como cheguei aqui, no sentido deles, evocava milagre.” (página 40)
Félix Ventura aparece
lá pelas páginas do capítulo 9. É contratado para fazer o que faz no livro do
Agualusa, O Vendedor de Passados; afinal, ele é o único com esta
profissão no mundo: constrói passados coerentes para pessoas que, por algum
motivo, desejam viver nova vida. Aparecida é assim, não se lembra do seu
próprio passado; então, é preciso criar-lhe um novinho.
Ventura conhece
Cida. Para a criação de um passado eficiente, mister é conhecer a pessoa, entrevistá-la.
E ele pede à protagonista que o mantenha informado, o que ela fará pelo menos
uma vez por ano.
Cida e Jorge
formam um casal. É ele quem vai ajudá-la a desvendar sua origem e os
acontecimentos que antecederam seu parto na cova da Almofala portuguesa. Ligam-se
as duas cidades do mesmo nome.
O parágrafo
inicial do livro, transcrito acima, me fez lembrar da famosa epígrafe
machadiana “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico
com saudosa lembrança estas memórias póstumas”. Cida sente os bichos alisarem
sua língua, rastejarem pelos seus ouvidos; isto, além de ela ser não uma
defunta autora, mas uma estranha quase-defunta personagem, ressurrecta, tornou-me
a associação inevitável. Vale anotar, Oração Para Desaparecer não tem a
ironia genial de Machado – e nem é este o propósito.
Caro leitor, se
você gosta de Jorge Luís borges, Bioy Casares, Silvina Ocampo, Gabriel Garcia
Marques, deve se deleitar com este livro. Quero dizer, se você aprecia o
realismo mágico, este livro será um prato feito.
Oração Para
Desaparecer é uma das minhas melhores leituras do mês de dezembro do ano
passado. Vejo como enorme satisfação mulheres produzindo literatura brasileira
de qualidade. Conta o motivo de serem mulheres; mas é fundamental que suas
produções sejam boas.
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