Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Resenha nº 221 - Sorte, de Nara Vidal

 




Título: Sorte

Autora: Nara Vidal

Editora: Faria e Silva

Edição: N/c

Copyright: 2022

ISBN: 978-65-89573-67-8

Gênero literário: Novela

Origem: Literatura brasileira

 

Nara Vidal é escritora mineira, nascida em 1974. Formada em Línguas e Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É Mestre em Artes pela London Met University. Ela conquistou o terceiro lugar no Prêmio Oceanos, de 2019, a única brasileira entre os três vencedores. Colunista do jornal Rascunho e A Tribuna de Minas, este, escrevendo no caderno de cultura. É ainda editora da Capitolina Revista – uma publicação promotora da literatura contemporânea em língua portuguesa. Reside na Inglaterra desde 2001.

Talvez seja útil, para o leitor iniciante, caracterizar um pouco melhor o que seja o gênero literário novela. É uma composição textual narrativa, portanto, conta com personagens, narrador, enredo, tempo, em que os acontecimentos narrados se dão. Em termos de tamanho, fica entre o romance e o conto – embora esta característica não seja tão delimitadora assim, principalmente quando estamos no terreno da literatura contemporânea, com forte tendência a misturar os gêneros.

Este Sorte, de Nara Vidal, talvez seja uma mostra de novela das mais convincentes: como o conto, ela possui reviravolta de enredo (plot twist) vigorosa e estruturalmente colocada próximo ao desfecho. Com isto quero dizer que, sendo um texto enxuto, a forte guinada de enredo se encaminha de imediato para o desenlace, deixando ao leitor a ligação entre informações cruciais para o entendimento da obra.

Não conhecia a autora. Estava à procura de um livro de contos contemporâneos, quando dei de cara com a coletânea Mapas Para Desaparecer, de Nara Vidal. A sinopse dizia tratar-se de onze contos sobre a temática de relacionamento humano – tema que muito me interessa.

Constatei haver outra publicação, Eva, um romance sobre o mesmo tema e, ainda, um trabalho não acadêmico, Shakespearianas, subtítulo: As Mulheres em Shakespeare. As premissas de Sorte me convenceram a comprar o livro. Pronto. Construía-se ali o elo necessário para um leitor interessado apropriar-se do texto de uma autora.

Sorte não me decepcionou. O texto de Nara Vidal é enxuto, com poucos adjetivos, os capítulos são curtos e concisos e nos contam a história da protagonista Margareth Cunningham, da Irlanda do século XIX. Sua família é composta do pai, da irmã pequena Martha, Mary – esta, com dois anos – e Monica; e como o pai desejava um filho homem, continua engravidando a mulher, até nascerem Daniel e James:

“O pai fazia filhos na mãe até uma hora sair dela um homem. Martha, Margarth, Mary e outro na barriga. Deus há de nos conceder sua graça e encher essa casa com um homem.” O pai não escondia a predileção por um filho. Não sentia particular interesse dele por mim e nem por Martha ou Mary. Éramos uma tentativa, um erro, uma rasura, algo a ser refeito, refinado, melhorado até sair um filho.” (página 22)

O capítulo I se inicia na Irlanda, em 1806:

“Sabíamos lá em casa que aquela chuva, a enchente, os móveis arruinados, os ratos que subiam do porão para escapar do afogamento, aquilo era castigo de Deus. A nossa pobreza também era punição do Senhor. Concordamos desde cedo que abrir os olhos e atravessar horas infelizes até fechar as pálpebras de novo era a nossa maior sorte.” (página 17)

A carga dramática desta obra enxuta já nos dá um murro inicial no estômago. E, naquela chuvarada, a narradora – mais precisamente, Margareth – nos descreve outra cena, desta vez, com a participação de Martha:

“A Martha, com aquelas mãos esquisitas voando como se ouvisse música, batia os pés e ria. Não era gargalhada. Era riso. Um riso nervoso. As costas para mim. Nem percebeu que fiquei parada atrás daquele corpo fino e elegante. Estiquei os olhos para ver o riso dela. Dentro da bacia velha do quintal, cheia de água da chuva, uma ratazana morria.

Presa ao horror do espetáculo, assisti à cena inteira. Os olhos feios do bicho começando a esbugalhar, de certo já inchados pela carne tomada pela imundície da água. Debatia-se incessantemente. A ratazana revirava-se só para, em seguida virar de novo, buscando um sopro de ar já escasso. Os pés e as patas fizeram meus joelhos tremerem. Agitavam-se desfiando a morte que ria dela, feito a Martha da janela.

Primeiro caiu o rabo, cansado da luta. Túrgida, roliça, a ratazana parecia estourar. A pele da barriga brilhava de tão esticada. Dentro dela, vivia a morte.” (páginas 17/18)

Um escritor competente não elabora, de cara, uma cena impactante assim, se ela não tiver nada a ver com o projeto de sua obra. A morte é um elemento muito forte nesta história, e vai acompanhar de perto as personagens desta novela.

A situação geral da Irlanda do século XIX não era boa. Apesar de ainda ligada ao Reino Unido, era um país muito pobre e não contava com investimentos ingleses. E, para piorar as coisas, houve a Grande Fome (de 1845 a 1849). Este evento não atingiu apenas a Irlanda, tendo lugar em toda a Europa. Uma praga dizimou a produção de batatas pelo continente todo. Mas, como a batata era o único alimento disponível para um terço da população irlandesa, a fome foi devastadora. Em torno de vinte a vinte e cinco por cento da população pereceu.

O patriarca da família tem avaliações diretas deste inferno na Terra:

“Os gritos pela casa, quase diariamente, eram a sua admiração pelos conflitos napoleônicos. O pai sempre frustrado, já que a agitação nunca chegou na Irlanda. “Nem a guerra quer este país.” Bradava com revolta e esperanças de outro horizonte.

Qualquer um. “Até Brasil, a ilha movediça, é melhor que isso aqui. Não fosse minha perna, pegava vocês e ia pra Brasil, a ilha da fantasia.” (página 19)

Aqui devo fazer um corte. O leitor desta resenha deve estar se perguntando, como é isso? Não estou entendendo... a que Brasil se refere o pai de Margareth? Refere-se a uma lenda antiga. Esta lenda dizia que, nas costas da Irlanda, havia uma ilha chamada de Brasil, ou ainda, Hy-Brasil, ilha sempre envolta em mistérios. Movediça, porque aparecia de sete em sete anos, desvestida do nevoeiro que a encobria.

As embarcações, segundo a lenda, não conseguiam aportar à ilha. E pesava uma espécie de magia, ou maldição, se o quiserem: aquele que, por algum motivo, pisasse o solo de Hy-Brasil apresentaria um olho de cor diferente do outro, como uma marca.

As péssimas condições da Irlanda fazem o pai sonhar com Hy-Brasil, “até a ilha movediça é melhor do que aqui”.

Quem pôde, imigrou, principalmente, para os Estados Unidos e Canadá. Este acontecimento drástico – a fome – é o que moveu a família Cunningham a imigrar para o Brasil.

O Brasil (o país) facilitava o assentamento de terras aos imigrantes. Isto é o que era divulgado. A verdade, um pouco diferente: os imigrantes masculinos tinham de lutar sob as ordens brasileiras, na guerra cisplatina. Aqui, devo fazer outro corte.

Guerra cisplatina foi um conflito que envolveu Brasil e Argentina, pelo domínio da região do Rio da Prata, entre os anos de 1825 e 1828. O imperador brasileiro era Dom Pedro I, que foi muito criticado por se meter nesta aventura: o Brasil perdeu a guerra e no conflito gastou-se muito dinheiro, agravando a crise econômica brasileira.

Ainda no navio que trazia os imigrantes, Margareth engravida de um tal Orlando:

“O único que possivelmente sabia da minha gravidez era Orlando. Eu mesma me convenci do balanço tortuoso das águas dos trópicos. A mãe queria voltar. Dizia que os ares daquela quentura toda já mostravam em mim que não me fariam bem. Ela mesma padecia. O pai, um inválido, menos pelas pernas, mais pelo coração em desuso, só bradava. Mary e Monica acomodavam todas as ordens.” (página 36)

Outra personagem importante é a preta Mariava:

“Com pose de princesa, pescoço longo e fino, Mariava sabia todos os nomes de rios e cachoeiras. Tinha vindo de uma permuta em Minas Gerais, lugar de esmeraldas feito Hy-Brasil. Ela não falava o “C”. A Mary debochava dela e pedia que repetisse os nomes das cachoeiras da cidade dela em Minas.” (página 39)

Mariava e Margareth se tornam amigas. Ainda mais porque estavam grávidas, o que, de certo modo, as unia:

“Entre o azul-claro dos meus olhos e os olhos pretos da Mariava, nos reconhecemos. Era ela a minha amiga. Depois da Justine, era da Mariava que eu sentia saudades. Abracei apertado a minha preta com cheiro de pus. Tinha infecções pela pele afora. Ganhava uma surra por dia. Ordens de Don’Ana Vaz Peixoto, a mulher traída que era obrigada a ver a Mariava carregar um Vaz Peixoto bastardo dentro dela. A dona da quinta mandou que cortassem a cabeleireira de Mariava, cortassem a pele, cortassem o viço, já que para um golpe só não tinha coragem. Assim, preferiu sacrificá-la aos poucos. Da próxima vez, prometera cegar os olhos para que não pousassem em homem errado.” (páginas 91/92)

Mãe solteira era algo vergonhoso para as famílias da época. Havia a questão da honra feminina perdida. E, nestes casos, a saída usual era mandar a grávida para algum lugar longe dos olhos da sociedade “de bem”; normalmente, estas jovens eram mandadas para um convento que “piedosamente” as recebia, garantia a boa saúde delas. Em compensação, quando seus filhos nasciam, elas deixavam de ser mães: os filhos eram sequestrados e encaminhados para famílias que ajudavam a manter todo aquele esquema. Com Margareth não foi diferente.

O desfecho deste Sorte é surpreendente, mas não vou contá-lo. Hy-Brasil, a ilha movediça, é citada algumas vezes no decorrer da história. A lenda celta (este povo está na ancestralidade da Irlanda) conecta o local misterioso, a ilha da fantasia com o país Brasil. Nara Vidal aproveita a aproximação onomástica para exercer sua crítica social. E – é claro – a crítica se estende à atualidade brasileira.

Intrigado, fui à pesquisa sobre a lenda de Hy-Brasil. A lenda existe. A mitologia celta é pródiga em imaginações deste tipo. Basta lembrar a ilha encantada de Avalon, citada pela primeira vez nas Historia Regium Britanniae (História dos Reis da Bretanha), de Godofredo de Monmouth. É citada, também na quadrilogia As Brumas de Avalon, da escritora inglesa Marion Zimmer Bradley.

É o lugar onde foi forjada a Excalibur, a espada do Rei Arthur. É o lar da Senhora de Avalon, Fata Morgana, abordada na quadrilogia citada.

Recomendo fortemente a leitura deste Sorte.

Nenhum comentário: