Isabel Allende é uma escritora
peruana, já conhecida dos que frequentam este blog. Dela, já resenhei os
seguintes livros: Inés de Minha Alma,
Zorro e A cidade das Feras, motivo pelo qual dispenso repetir a biografia
da autora. Seu título de maior impacto, que a lançou para o mundo
literário, foi A Casa dos Espíritos,
obra estreante, de 1982, que se tornou filme de sucesso. Isabel reside hoje no
estado americano da Califórnia.
O Caderno de Maya é, para mim, o melhor livro de Allende que já li
(ainda não li A Casa dos Espíritos).
Facilmente, este livro é candidato à lista dos Melhores Livros Resenhados do
Ano de 2016, neste blog. Editado pela Bertrand Brasil, é bastante diferente de
outros trabalhos de Isabel Allende. Trata de um assunto bastante atual, o mundo
das drogas. A personagem principal é uma adolescente problemática, Maya Vidal.
Todo escrito em primeira pessoa, com um enredo não linear (as anotações do
caderno dela vão constituindo os flashes, as incursões ao passado). Alguns
leitores relataram dificuldades em seguir a história, exatamente pelos
deslocamentos temporais da trama.
Deixemos, entretanto, que a
própria Maya se apresente:
“Sou Maya Vidal, dezenove anos, sexo feminino, solteira, sem namorado — por falta de oportunidade, e não por frescura —, nascida em Berkeley, Califórnia, passaporte norte-americano, temporariamente refugiada numa ilha ao sul do mundo. Me chamaram de Maya porque minha Nini é fascinada pela Índia e não ocorreu outro nome a meus pais, mesmo tendo tido nove meses para pensar. Em hindi, maya significa ‘feitiço, ilusão, sonho’. Nada a ver com o meu temperamento. Átila me cairia melhor, porque onde boto os pés não nasce mais pasto.
Minha história começa no Chile com a minha avó, a minha Nini, muito antes de eu nascer, porque, se ela não tivesse imigrado, não teria se apaixonado pelo meu Popo nem teria se instalado na Califórnia, meu pai não teria conhecido minha mãe e eu não seria eu, mas uma jovem chilena muito diferente. ” (página 12, trecho reproduzido na quarta capa)
Maya Vidal se parece com sua mãe
dinamarquesa Marta Otter; seu pai é um piloto de avião comercial. Quando os
dois se separaram, logo após Maya nascer, a criança foi viver com os avós,
Nidia Vidal (a quem ela chama de “minha Nini”) e Paul Ditson II (a quem Maya
chama de “meu Popo”). Nidia é chilena de nascença e Paul é um professor afroamericano
da Universidade de Berkeley, Califórnia, do ramo da astronomia. Eles formam um
casal em relacionamento maduro, apesar de serem tão heterogêneos. Amam
profundamente a neta e a relação entre Maya e seu Popo é algo profundo,
transcendente, conforme se depreende do trecho abaixo:
“A enorme presença de meu Popo, com seu humor brincalhão, sua bondade ilimitada, sua inocência, seu colo para me ninar e sua ternura, preencheu a minha infância. Ele tinha um sorriso sonoro, que nascia nas entranhas da terra, subia pelos pés e o sacudia por inteiro. ” (página 56)
A morte deste avô muda
completamente a vida de Maya. Está completamente transtornada, sem chão, numa
depressão intensa:
“Uma dor assim, dor da alma, não se apaga com remédios, terapia ou férias; uma dor assim se sofre, simplesmente, a fundo, sem paliativos, como deve ser. Eu teria feito bem em seguir o exemplo da minha Nini, em vez de ficar negando que estava sofrendo e calando o uivo que levava atravessado no peito. No Oregon, eles me receitaram antidepressivos, que eu não tomava, porque me deixavam idiota. Vigiavam-me, mas eu podia enganá-los com chiclete escondido na boca, onde grudava o comprimido com a língua e, minutos depois, cuspia intacto. Minha tristeza era a minha companheira, não queria me curar dela como se fosse um resfriado. Também não queria compartilhar minhas lembranças com aqueles terapeutas bem-intencionados, porque qualquer coisa que dissesse a eles sobre o meu avô seria banal.” (página 84)
As péssimas companhias se tornam
uma constante. De degrau em degrau, Maya se afunda, perde a dignidade de ser
humano, passa por experiências terríveis, até chegar ao fundo do poço de sua
curta existência. Envolve-se com crápulas, bandidos, e acaba tendo de se tornar
uma refugiada numa ilha da costa chilena, Chiloé:
“Aqui não se alugam DVD’s nem videogames, e os únicos filmes são aqueles que passam uma vez por semana na escola. Para me distrair, disponho somente dos febris romances de amor de Blanca Schnake e dos livros em espanhol sobre Chiloé, muito úteis para se aprender o idioma, mas cuja leitura me cansa.” (página 39)
Ali, naquela localidade tão
distante do seu mundo, Maya conhece pessoas diversas, como a já citada Blanca
Schnake e Miguel Arias – com um passado nebuloso. Participa de um ritual de “bruxaria”
exclusivamente feminina, dedicada à deusa Pachamama, mas que funciona, na
realidade, como uma espécie de terapia de grupo.
Mesmo quando se envolvera com
bandidos como Brandon Leeman, Joe Martin e o Chinês, ainda encontrou pessoas
boas, como o menino Freddy, que terá um papel muito importante para Maya. Lentamente,
nossa personagem emerge de sua agonia existencial, não retornando exatamente à
mesma configuração mental de antes, pois quem passa por experiências tão
dramáticas dificilmente o conseguiria, mas alguém mais madura, mais curtida
pela vida e por suas próprias escolhas.
A galeria de mulheres fortes de
Isabel Allende está presente também nesse livro. Nidia Vidal se assemelha muito
àquela Kate Cold de A Cidade das Feras,
meio amalucada, mística, uma senhora pouco convencional. Sobre Maya, Isabel
Allende mesma declara:
“Esta Maya me fez sofrer mais do que qualquer outro de meus personagens. Em alguns momentos, eu teria lhe dado uns tapas para fazê-la voltar à razão; em outros, eu a teria envolvido num abraço apertado para protegê-la do mundo e de seu coração imprudente.”
Ao utilizar Maya Vidal como
narradora-personagem, contando sua vida em primeira pessoa, Isabel Allende pode
deixar fluir seu romantismo de maneira bem intensa, pois isso é inteiramente
coerente com uma adolescente que, mesmo passando por terríveis situações, ainda
conserva um coração capaz de apaixonar-se perdidamente por alguém. E sentimos
imediata simpatia por essa jovem, pela ousada coragem de existir, atravessando
tantas dificuldades, para se reerguer. É a função catártica da tragédia, tão a
gosto dos antigos gregos, sabedores disto e de muitas outras coisas
importantes.
Várias reviravoltas acontecem
durante a leitura da obra. Isabel sabe misturar muito bem reflexões sobre a
vida, personagens fortes e bem construídas com altas doses de aventuras – algo rocambolescas,
diriam muitos. E, acrescentaria eu, com notas fortes de espiritualismo primitivo. Primitivo aqui não é depreciativo, mas está por “natural”, ligado às
crenças das pessoas simples, em conexão com a natureza. A ilha de Chiloé tem sua própria mitologia, seu
folclore próprio.
Perguntas importantes vão tendo
respostas no decorrer do trabalho: exatamente por que Maya tem de se refugiar
num lugar tão improvável? Que passado misterioso viveu Miguel Arias, dadas as
suas características estranhas, atualmente? Por que Miguel Arias, apesar de ter gênio tão difícil, mostra-se tão solícito com Maya? Há alguma relação entre
Nidia Vidal e Miguel Arias? Quem, realmente, é o policial Arana? Quem foi
Felipe Vidal e que importância poderia ter tido? O que Maya foi fazer na Villa
Grimaldi?
Pitadas da história, muitas vezes de acentuado viés político do Chile, como já é uma característica de Allende, também são fornecidas neste livro. A ação se passa quando aquele país andino estava sob o governo de Michelle Bachelet.
O Caderno de Maya nos traz momentos de leitura muito prazerosa. Como
nos diz Yuval Harari, em outro livro anteriormente resenhado aqui neste blog, Sapiens – uma breve história da humanidade
–, o homo sapiens dominou as outras espécies porque aprendeu a contar histórias
e compartilhá-las com seus semelhantes. Isabel Allende faz isso muito bem;
conduz suas narrativas com mãos seguras e experientes. E a escola americana
sabe como poucas criar enredos viciantes, uma forte influência, penso eu, dos
roteiros para cinema hollywoodianos.
Leitura altamente recomendável!
ALLENDE, Isabel. O Caderno de Maya. Editora Bertrand
Brasil, 2ª edição. Rio de Janeiro, RJ: 2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário