Um blogue de quem gosta de ler, para quem gosta de ler.

sábado, 6 de julho de 2024

Resenha nº 225 - O Vício dos Livros, de Afonso Cruz

 




Título: O Vício dos Livros

Autor: Afonso Cruz

Editora: Dublinense

Edição: N/C

Copyright: 2021

ISBN: 978-65-5553-123-7

Origem: Portugal

Gênero Literário: Crônicas

 

Afonso Cruz é um escritor português, nascido em 1971, na Figueira da Foz. É também ilustrador (este pequeno livro foi ilustrado por ele), músico e cineasta. Publicou mais de trinta livros, entre romances, ensaios, teatro, não ficção, novelas juvenis e, de quebra, uma “enciclopédia inventada”. Afonso colabora regularmente para jornais e revistas. Recebeu vários prêmios, e seus direitos autorais estão vendidos para mais de vinte idiomas.

Aqui, no Brasil, tem publicados, além deste O Vício dos Livros, Vamos Comprar Um Poeta, Princípio de Karenina, Para Onde Vão Os Guarda-chuvas, O Pintor Debaixo do Lava-loiças, Nem Todas As Baleias Voam, A Boneca de Kokoshka, Jesus Cristo Bebia Cerveja, Flores, A Contradição Humana...

O Vício dos Livros, em minhas mãos, é um pequeno volume. Com noventa e duas páginas, lê-se de uma sentada. Textos deliciosos para quem gosta de ler sobre livros e seus mistérios. O texto que abre o volume já é provocativo: A primeira vez que conheci um esquifobético.

Afonso conta que estava em Olinda, Brasil, sentado num banco, com um livro na mão. Um sujeito acercou-se dele, dizendo ser um esquifobético:

“Falava de seu corpo como um filósofo platónico, com um certo desdém pela matéria: chamava-lhe neve. Apontava para si e dizia “esta neve”, querendo com isso salientar o caráter transitório do corpo. Quando reparou que segurava um livro, quis ver a capa e, tirando-mo das mãos, pegou uma caneta e escreveu qualquer coisa ilegível. Perguntei-lhe o que havia escrito e ele, em voz alta, ditou a tradução da algaravia enquanto eu a anotava na página seguinte: “Tem certo tipo de pessoa que devia ter nascido daqui a cem ou duzentos anos, quando o pessoal tivesse uma criatividade mais rápida e mais bonita. Porque o coração sente e o olho conta. Life after death. Porque o original nunca se desoriginaliza. Porque nunca foi desoriginalizado.  Se algum dia ele for desoriginalizado, nunca vai existir o original. Seja louco contra a loucura. Lembre-se que foi aqui que você conheceu um esquifobético”. (página 10)

Sob o título estranho de A poesia prende poetas, acidenta carros e afunda barcos, Afonso Cruz nos fala de Dionísio I, tirano de Siracusa. Ele reuniu poetas renomados para ajudá-lo na escrita de poesia:

“Um dos casos mais curiosos da vida de Dionísio, também contado por Diodoro Sículo, terá sido quando competiu nas Olimpíadas, levando vários carros com quatro cavalos cada (bastante mais velozes do que os dos adversários) e uma caterva dos melhores atores para lerem os seus poemas e, assim, glorificá-lo no triunfo. Os versos eram tão maus que alguns carros chocaram entre si e outros despistaram-se. Do mesmo modo, o barco que levava a sua delegação olímpica de volta à Sicília naufragou perto de Tarento, em Itália, uma vez mais devido à paupérrima qualidade da poesia do tirano (que forçou a sua leitura durante a viagem), ou assim atestaram os marinheiros que sobreviveram.” (página 20)

O texto de Gatos é ótimo. O autor relaciona os escritores aos gatos, principalmente quando aqueles elaboram seus personagens:

“Se temos um personagem que tem um desejo e simplesmente o concretiza, não temos nada. Para contarmos uma história, temos de dar voltas necessárias até chegarmos ao destino, não podemos chegar lá diretamente, sem tensão, dificuldades, gozo, embelezamentos, obstáculos. Temos de escrever como os gatos caminham quando os chamamos. Não sei se os gatos gostam de escritores, mas são duas espécies claramente aparentadas: por trabalharem sós, pela contemplação e observação e curiosidade. Quando um escritor levanta a cabeça do teclado para meditar sobre uma personagem, quando para para tentar encontrar a palavra justa, quando olha pela janela para tentar desfazer um nó de enredo, tem um comportamento felino. Um gato poderá encontrar, nesse tipo de gestos, uma espécie de identificação.” (página 66)

Depois deste insight, absolutamente afonsino, eu – que não amo os gatos – devo reconsiderar minhas disposições afetivas em relação aos felinos.

E assim, seguem estes textos que bem podem funcionar como valorização do texto bem escrito, valorização da nossa possível biblioteca domiciliar (tem-se cada vez menos bibliotecas domiciliares, não?) ou, até mesmo, uma pausa entre um livro e outro.

Só para fechar esta breve, mas recomendada resenha, trago As histórias que se estragam:

“Disse Antonio Basanta, no livro Leer contra la nada: “A primeira biblioteca que conheci na minha vida foi a minha mãe (...) Cada noite, antes de dormir, visitávamos as estantes da sua memória”. Ouvi Juan Villoro dizer que as histórias não deviam começar por “era uma vez”, mas por “era uma voz”. E acrescentou: “As histórias são muito diferentes se contadas pela voz de que nos ama”. É a ouvir que damos os primeiros passos para a construção da nossa própria essência, através da partilha de histórias.” (página 87)

 

Nenhum comentário: