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Título
original: Água Funda Autora:
Ruth Guimarães Editora:
TAG/Editora 34 Edição:
1ª Copyright:
2018 ISBN:
978-65-5525-178-4 Gênero
Literário: Romance Origem:
Literatura Brasileira |
Ruth Guimarães – nascida Ruth Guimarães
Botelho – veio ao mundo em 13/06/1920, na cidade de Cachoeira Paulista e
faleceu em 21/05/2014. Dos 4 aos 9 anos passou na fazenda que seu pai
administrava e lá bebeu da fonte dos causos contados pelos peões. Toda
esta gente iletrada dominava um acervo de histórias fantásticas, que
classificamos como folclore, e possuía uma imensa sabedora popular baseada na
experiência.
Há coisas neste
Brasil que a gente não entende. Como pode uma escritora do calibre desta Ruth
Guimarães ficar esquecida tanto tempo? Escritora e professora universitária, consta
que entendesse muito de mitologia grega, traduzisse do francês para o português
e fosse, nada menos, do que a primeira divulgadora da literatura de Dostoiévski
no nosso país.
Ruth escreveu
muito. Entre suas obras, constam Água Funda (sua primeira obra), 1946; Os
filhos do medo, 1950; Mulheres célebres, 1960; As mães nas lendas
e na história, 1960; Lendas e fábulas do Brasil, 1989; Crônicas
valeparaibanas, 1992; Histórias de onça, 2008 – para citar o mínimo.
Água Funda
teve sua primeira edição no mesmo ano do lançamento do gigante literário João
Guimarães Rosa, Sagarana. Ambas as obras se servem do jeito de falar e
narrar do homem simples do interior. Consta que Ruth conseguiu a tiragem de
três mil volumes – uma proeza e tanto.
Precisamos
contextualizar este Água Funda. O século XIX vira crescer o café como o
principal produto de exportação brasileira. O Vale do Paraíba, com suas amplas
fazendas do chamado “ouro negro” se enriqueceram, pela combinação de pelo menos
três fatores: o valor alto alcançado pelo principal produto brasileiro, as
terras férteis do vale, a facilidade de escoar o produto pelo porto de Santos e
a facilidade da mão-de-obra escrava.
Casarões luxuosos
foram construídos, com o que de melhor existia na época, com a máxima
tecnologia possível. Muita coisa era importada da Europa. Mas o declínio foi
também rápido: a libertação dos escravos desequilibrou o preço do café
brasileiro no mercado internacional. A par disto, a exaustiva monocultura
empobreceu a terra. O crack da bolsa, nos Estados Unidos (ocorrido em 1929)
abalou a economia do mundo e no Brasil não poderia ser diferente.
É neste ambiente,
portanto, que se constrói o romance Água Funda: na exaustão da cultura
do café, em algum local imaginário entre o Vale do Paranaíba, São Paulo, e
Maria da Fé, sul de Minas. Esta região é, também a ambientação de obras de
Monteiro Lobato, por exemplo, Cidades Mortas. Outra obra de referência literária
para esta época do declínio da cafeicultura é A Falência, de Júlia Lopes
de Almeida.
No parágrafo
inicial, o narrador onisciente nos conta:
“Se era boa? Tão boa como mel de jati. É que a Mãe de Ouro tinha enfeitiçado o homem. A Mãe de Ouro mora do outro lado da serra. Pra lá fica Juruna, no Itaparica, e é um estirão de mais de cem vezes a distância de Nossa Senhora dos Olhos D’Água a Maria da Fé. Pois ele bateu a pé, moço, bateu a pé, com o sapicuá de farinha nas costas. Água não era preciso. Água dá à toa por aí, brota do chão, e nenhum filho de Deus nega água a quem tem sede.” (página 17)
Podemos notar aí
o jeito de falar do homem simples interiorano. O uso de termos regionais
(sapicuá). A repetição de termos, tão frequente no português coloquial (Pois
ele bateu a pé, moço, bateu a pé) e a ocorrência de elemento do folclore
brasileiro (Mãe de Ouro). Mãe de Ouro seria uma figura assim como a Iara – no
livro, elemento de sedução.
O enredo do livro
nos conta de Sinhá Carolina, herdeira orgulhosa da fazenda Nossa Senhora dos
Olhos d’Água. O casamento de Sinhá Carolina começou bem. Ela, herdeira da
fazenda, logo começou o sofrimento:
“É ditado dos antigos: casamento que começa com foguete, acaba com porrete. Esse não acabou com porrete, mas foi muito pior. Também já tinha sido mal-agourado. No dia do casamento, um guainumbi de papo branco entrou voando no quarto. No começo tudo são flores. Não é só em casamento. Os dois pombinhos, assim que vieram morar nesta casa, se davam como Deus com os anjos. Depois o Sinhô começou a se atirar em tudo quanto era farra, junto com seu Pereira. Se é verdade que a porca de sete leitões aparece perto do angico, para marido tresnoitador, Sinhô foi um que se encontrou com ela muitas vezes. Mulher, para ele, qualquer uma servia. Andava atrás de quanta saia aparecia por aí. E até disseram para a mucama, que veio com Sinhá, tinha tido um filho dele. Deus não me castigue, se não é verdade, que eu não vi. Soube por boca do povo.” (página 19/20)
Entretanto, a
Sinhá tinha casado contra a vontade dos pais, era muito soberba, de modo que
nunca reclamava nada com ninguém. Quando arranjou uma escrava angolana para os
serviços de casa, separou o casal negro e nem as intervenções da própria filha
foram capazes de abrandar-lhe o coração.
“Pesando bem as coisas, Sinhá não tinha culpa. Era bruta e ruim, mas não estava nela e os tempos eram assim. O que aconteceu depois para uns foi o castigo, para outros não foi. E não foi mesmo. Foi só ensino. Quem nunca passou miséria não sabe quanto doem certas coisas, e só aprende quando fica com o sinal na carne. O garrote mais bem marcado é aquele que levou ferro mais quente e mais fundo no couro.” (página 22)
Em outro núcleo
dramático do romance, aparecem Curiango e Joca. Vejamos como o narrador – onisciente,
mas parcial – nos descreve a beleza de Curiango, portadora deste apelido porque
é inquieta, gosta de cantar já de madrugadinha:
“Era desse tamanhinho assim e já era uma galanteza. Depois de moça então... Não é dizer que seja bonita de admirar. Nem é bem boniteza. É uma coisa que puxa os olhos da gente, que arrepia, que enleia, que aquece, e que umas mulheres têm e outras não têm.” (página 61)
Joca e Curiango
terminam por se casar.
Certo dia, Joca e
João Rosa viram uma estrela belíssima no céu. Ela fora caindo, até sumir do outro
lado da terra. Respeitoso, João Rosa reverenciou a estrela, identificando-a com
a Mãe de Ouro – personagem de nosso folclore. Joca debochou:
“João Rosa falou baixinho, meio com medo:
— A Mãe de Ouro...
— Louvado seja Deus! Sempre vi, na minha vida, essa Mãe de Ouro tão falada.
Aí, o Joca entrou no meio da conversa:
— Mãe de Ouro... Hum... Mãe de bosta, com perdão da má palavra. Aquilo é uma estrela que mudou de lugar.
— Ela escuta, Joca!
— Que escute!
— Se não acredita, não abuse...
Ele agravou a Mãe de Ouro, porque era abusante como ele só. Mas pagou. Ela escutou a praga e veio. Porque, se não fosse a praga, podia bem ser que ele escapasse.” (página 115)
Daí para frente,
Joca tem surtos. Completamente alheado do mundo, sai em busca desta Mãe de
Ouro, sem nunca encontrá-la...
O que acontecerá
com Joca? Ele se verá livre da sedução da Mãe de Ouro? E a outra personagem, a
Choquinha, assim chamada por que está sempre de cócoras? Choquinha aparece
naquele lugar assim de repente, sem passado nem futuro, vivendo numa pequena
casa cedida de favor. Qual será o passado desta personagem?
Água Funda
é constantemente comparado a duas obras de peso na literatura mundial: Pedro
Páramo, do mexicano Juan Rulfo e Cem Anos de Solidão, do colombiano
Gabriel Garcia Márquez. Esta comparação se dá pela aproximação do realismo fantástico.
Não posso dizer se esta aproximação é adequada ou não - não li, ainda, os livros em questão -, mas posso ir ao conceito
deste tal realismo fantástico e ver se a Água Funda aí se enquadra.
O conceito de
realismo fantástico é bastante fluido, mas, neste tipo de história, a realidade
(fatos, tecnologia, logicidade) convive com a superstição (sobrenatural, elementos
fantasiosos, alogicidade). Os personagens envolvidos não estranham os acontecimentos,
como se eles pertencessem à normalidade. Não é o que lemos em Água Funda.
A Mãe de Ouro,
por exemplo, permanece como uma espécie de “entidade” sobre-humana, contra a
qual nenhuma potência humana poderá resistir. Nesta contestação do nosso livro
pertencer ao movimento literário famoso na América do Sul, apoio a professora Miriam
Bevilacqua, em seu canal Biblion, no YouTube.
Cumpre-nos, por
último, chamar a atenção para o uso intenso dos ditados populares. Ditados são
generalizações de fatos observados na experiência dos dias, elevados à
categoria de verdades absolutas. Por exemplo:
Casamento que
começa com foguete termina com porrete.
O garrote mais
bem marcado é aquele que levou ferro mais quente e mais fundo no couro
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