Título
original: Sula Autora:
Toni Morrison Tradutor:
Bárbara Landsberg Editora:
Companhia das Letras/TAG Edição:
1ª Copyright:
1973; 2004 ISBN:
978-85-359-3428-1 Origem:
literatura americana Gênero
literário: romance |
Chloe Ardelia Wofford, ou, como é mais conhecida,
Toni Morrison, veio ao mundo na cidade de Lorain (Ohio), em 18/02/1931, e
faleceu em Nova York, em 05/08/2019. Escritora, editora e professora
universitária, estreou na literatura com O Olho Mais Azul (1970) –
resenha de número 149, neste blogue.
Mas a obra desta
escritora que chamou atenção sobre ela foi Song Of Solomon (1977). Sula,
aqui resenhada, é seu segundo livro, publicado em 1974. Autora também de uma
trilogia, na qual continua o relato das experiências vivenciais de mulheres afro-americanas.
É composta por Amada (1987), Jazz (1992) e Paraíso (1997).
Nossa escritora
vem de uma família profundamente afetada pela Grande Depressão, termo pelo qual
ficou conhecido o Crash da Bolsa de Nova York, em 1929, com graves repercussões
pelo mundo.
Toni era uma leitora
ávida; alguns de seus autores prediletos eram Jane Austen e o russo Liev
Tólstoi. Sua dissertação de mestrado, pela universidade de Cornell, foi sobre o
suicídio nas obras de William Faulkner e Virginia Woolf.
Por Amada
Toni Morrison levou o prestigiado prêmio Pulitzer. Este livro foi considerado
pelo jornal The New York Times a melhor obra americana em 25 anos. A
escritora, obteve, entretanto, o maior reconhecimento em 1993, com o Nobel de
Literatura. A primeira escritora negra a ganhar tal distinção.
Ainda, uma
saborosa curiosidade: de acordo com uma entrevista para o famoso jornal The
Guardian, Morrison nos relata a origem do seu “apelido literário”. É que,
segundo ela, em 1912, converteu-se ao catolicismo, tendo recebido o nome de
batismo de Anthony, de onde veio Toni. O sobrenome Morrison lhe veio do
casamento com o arquiteto jamaicano Harold Morrison, também professor.
Apesar de, em
seus romances, abordar sempre mulheres negras, fortes e determinadas em suas
batalhas de empoderamento, a autora não se considera uma feminista. Ela afirmou,
certa feita, “Não concordo com o patriarcado, e não acho que ele deve ser substituído
pelo matriarcado. É uma questão de acesso igualitário, de abrir portas para
todos os tipos de coisas”.
Neste livro Toni
Morrison nos conta a história de Nel Wright e Sula Peace, uma amizade que atravessa
o tempo, desde quando eram crianças e moravam numa cidade pequena, localizada
em Ohio. O nome era Medallion; mais precisamente, as duas residiam na parte
mais pobre de Medallion, conhecida por Fundão:
“Uma piada. Uma piada de crioulo. Foi assim que começou. Não a cidade, é claro, mas aquela parte da cidade em que os negros moravam, a parte que chamavam de Fundão apesar de ficar no alto das colinas. Só uma piada de crioulo. Do tipo que os brancos contam quando o engenho é encerrado e estão buscando um pouco de consolo em algum lugar. Do tipo que as próprias pessoas de cor contam quando a chuva não vem, ou vem por semanas a fio, e estão buscando um pouco de consolo em algum lugar.” (páginas 26/27)
A vida da
comunidade negra não era fácil. A pobreza, o preconceito dos brancos, a falta
de oportunidades para ascenção social eram terríveis. Com alta frequência, o
que restava às mulheres negras era a prostituição, como meio de sobrevivência. Um
dos prostíbulos famosos era o Sundown House, onde nascera Helene Wright, mãe de
Nel:
“De modo geral, sua vida era satisfatória, adorava sua casa e gostava de manipular a filha e o marido. Às vezes suspirava logo antes de adormecer, pensando que de fato tinha ido para bem longe de Sundown House.” (página 40)
Enquanto Nel era
mais comportada, mais sonhadora, Sula era mais atrevida e “bagunceira”. Entretanto,
as duas se combinavam, e Nel sentia verdadeiro fascínio por sua amiga, apesar
de não poder ser do mesmo jeito:
“Mas isso foi antes de conhecer Sula, a menina que via fazia cinco anos na Garfield Primary, mas com quem nunca tinha brincado, nunca tinha conhecido, pois sua mãe dizia que a mãe de Sula era retinta. A viagem, talvez, ou seu recém-descoberto senso de individualidade lhe deu forças para cultivar uma amiga apesar da mãe.” (página 50)
Portanto, o
racismo era algo endêmico naquela sociedade do Fundão. Não só brancos
discriminavam negros, os negros discriminavam os brancos, mas os próprios
negros discriminavam os “retintos” – de pele mais negra do que o “normal”.
Onde a luta feroz
pela sobrevivência é a regra social, pouco espaço existe para delicadezas e
famílias felizes. As descobertas, neste meio, não se fazem por deduções
filosóficas ou aplicações religiosas, apenas pelas cruas experiências da vida,
como no trecho a seguir:
“Já que ambas tinham descoberto anos antes que não eram nem brancas nem do sexo masculino, e que toda liberdade e triunfo lhes eram proibidos, elas passaram a criar outra coisa para ser. O encontro foi auspicioso, pois possibilitou que uma visasse a outra para seguir crescendo. Filhas de mães distantes e pais incompreensíveis (o de Sula, porque estava morto; o de Nel porque não estava).” (página 72)
No capítulo
inicial da parte dois deste livro há uma cena muito interessante. Ela acontece
com a chegada de Sula a Medallion, após algum tempo fora:
“Acompanhada de uma praga de tordos, Sula voltou a Medallion. Os passarinhos trêmulos com peito de inhame estavam por todos os lados, estimulando as crianças pequenininhas a deixar de lado a acolhida habitual e partir para o apedrejamento cruel. Ninguém sabia por que ou de onde vinham. O que sabiam era que não se ia a lugar nenhum sem pisar na bosta perolada deles, e era difícil pendurar roupas, arrancar ervas daninhas ou simplesmente ficar sentado no alpendre havendo tordos voando e morrendo ao redor.” (página 109)
Esta descrição me
fez lembrar do filme Birds (Pássaros), de Alfred Hitchcock. Num completo
nonsense, numa cidadezinha da Inglaterra, pássaros, de repente, começam a se
juntar. Não há explicações. Hitchcock eleva o suspense; de um minuto para o
outro, os animais se tornam camicases, se atirando sobre as pessoas e prédios.
Aqui, é um pouco
diferente. Os tordos são pássaros europeus, originalmente tendo o campo como
habitat. Com a destruição do seu domínio, aprenderam a viver em parques e
jardins. Pois os tordos antecipam a chegada de Sula, como aves de mau agouro, aparecendo
aos montes, morrendo pelas mãos das crianças pequenininhas.
O mal seria,
então, algo imanente ao ser humano? Sula é uma representante do mal?
Sula se
transforma numa mulher adulta que se recusa a ser domada. E, como o freio mais
ostensivo sobre as mulheres se dá exatamente no sexo – aos homens, tudo é
permitido, às mulheres, nada – é também (ou principalmente) nesta área que Sula
afronta a todos:
“Era uma pária, então, e sabia disso. Sabia que a desprezavam e acreditava que eles enquadravam o ódio como asco pelo jeito fácil com que se deitava com os homens. O que era verdade. Ela ia para a cama com homens na maior frequência possível. Era o único lugar onde achava o que procurava: sofrimento e capacidade de sentir profunda tristeza. Nem sempre teve consciência de que era a tristeza o que almejava. Fazer amor lhe parecia, a princípio, a criação de um tipo especial de alegria. Julgava gostar da fuliginosidade do sexo e de sua comédia; ria bastante durante os começos ruidosos e rejeitava os amantes que consideravam sexo saudável ou lindo. A estética sexual a entediava.” (página 140/141)
Parece-me,
entretanto, que esta liberdade a que se atirava Sula era enganosa. Muitas
vezes nós, seres humanos, sociais, nos sentimos sufocados pelas forças de
contenção, de normatização advindas da sociedade. E, muitas vezes, nos lançamos
a confrontá-las, a transgredi-las como ato externo, sem analisarmos se tais
confrontos realmente constroem algo em nossa alma.
Tal se dá com a
personagem Sula, pois
“Quando o parceiro se desprendia, ela erguia os olhos com espanto, tentando lembrar do nome dele; e ele olhava para ela de cima, sorrindo com a compreensão terna do estado de gratidão lacrimosa ao qual acreditava tê-la levado. Esperava com impaciência que ele virasse as costas e se acomodasse em uma espuma molhada de satisfação e leve asco, deixando-a na privacidade pós-coito em que ela se encontrava, se acolhia e se juntava a si em uma harmonia inigualável.” (página 142)
Amor ou posse? Fragmentar-se,
dar-se como forma de reunir os próprios fragmentos e, na ilusão da doação, a
posse? A Literatura é absolutamente admirável porque nos leva a mundos
interpretativos equidistantes e possíveis. Já se disse, Toni Morrison vai, muitas
vezes, por construções complexas e psicanalíticas de enredo e personagens. Tanto
Sula quanto Nel poderiam estar num divã freudiano.
As duas haviam
contratado um silêncio sobre um fato terrível acontecido no passado. A morte, a
destruição, o desaparecimento, a mudança são algumas das angústias deste
romance excelente:
“A Sula estava enganada. O inferno não é as coisas durarem para sempre. O inferno é a mudança. Não só os homens iam embora e filhos cresciam e morriam, mas nem a tristeza era duradoura. Um dia não teria nem isso. Esse mesmo sofrimento que a fazia se contorcer era uma curva no chão e a esfolava passaria. Perderia também isso.” (página 127)
Não sei dizer se
isto é consciente em Toni Morrison, mas sua expressão artística filia-se àquela
teoria de que a Literatura deve nos incomodar, tirar nosso chão, sacudir-nos,
para melhor nos analisarmos.
Termino de ler Sula
com inquietação. Não porque seja daqueles leitores que, à vista do pessimismo
de um autor, o repudiam. Aprecio alguns autores que são bastante pessimistas; a
outros, ditos otimistas, também aprecio. Sula não é uma leitura simples
e não se pode ficar na superfície deste texto, sob pena de se perder o
essencial.
Que tal deixar
Toni Morrison finalizar esta resenha, com um dos trechos mais impactantes,
dramático-filosófico, de que mais gostei? O narrador vê aqueles personagens do
Fundão da seguinte maneira:
“Não acreditavam que a morte fosse acidental – a vida podia até ser, mas a morte era proposital. Não acreditavam que a natureza pudesse ser torta – apenas inconveniente. Pragas e secas eram tão “naturais” quanto a primavera. Se o leite podia coalhar, Deus sabia que tordos podiam cair. O sentido do mal era sobreviver a ele e decidiram (sem nunca saber que agiam deliberadamente) sobreviver a inundações, aos brancos, à tuberculose, à fome, à ignorância. Conheciam bem a raiva, mas não o desespero, e não apedrejavam pecadores pela mesma razão que não cometiam suicídio – estava aquém deles.” (página 110)
Sula, de
Toni Morrison. Não, redefino o que afirmei. Não é apenas um excelente romance. É
um romance soberbo. Provavelmente, não para todos os leitores. Eu assumo, tenho
de relê-lo, várias vezes.
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