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Título:
K. Autor:
B. Kucinski Editora:
Companhia das Letras/TAG Edição:
4ª Copyright:
2011 ISBN:
978-65-5921-218-7 Gênero
literário: romance Origem:
Literatura brasileira |
Bernardo Kucinski é cientista político,
jornalista e escritor, nascido em São Paulo (1937). Tem formação, ainda, em
Física, pela universidade em que leciona. É também professor da Universidade de
São Paulo, atuando na cátedra Jornalismo Internacional. É filho de imigrantes
poloneses, refugiados no Brasil.
Apenas ficando no
campo da ficção, Bernardo publicou K – Relato de Uma Busca (2011), Você
Vai Voltar Para Mim (2014), Alice Não Mais Que De Repente (2014), Pretérito
Imperfeito (2017), este objeto da resenha nº 147 deste blog – , A Nova
Ordem (2019), Júlia: Nos Campos Consagrados do Senhor (2020). O volume
de contos Você Vai Voltar Para Mim integra o mais recente volume, A Cicatriz
E Outras Histórias – uma coletânea dos contos de Kucinski, publicados em jornais.
Bernardo é
ganhador de prêmios. Prêmio Jabuti, de 1997; finalista do Prêmio São Paulo de Literatura
e do Portugal Telecom, de 2012. Em 2018, obteve o Prêmio Vladmir Herzog de
jornalismo.
Parte da família
de Kucinski que ficou na Europa foi morta pelos horrores do Holocausto, na Segunda
Guerra Mundial. Entretanto, o longo braço da tragédia veio alcançá-lo aqui
mesmo, no Brasil.
Sua irmã, Ana
Rosa Kucinski, professora de Química da USP e seu cunhado desapareceram em
abril de 1974, durante a ditadura militar que assolou o Brasil. E é exatamente
o desaparecimento da irmã que servirá de matéria narrativa deste romance
incômodo que é K.
Bernardo Kucinski
é considerado um dos mestres da chamada autoficção e da literatura brasileira
contemporânea. Este termo, autoficção, merece algumas considerações, uma
vez que vem sendo usado indistintamente, por estar na moda. Sinto-me na
obrigação de explicar este rótulo, apesar de não ser objetivo deste blogue
entrar em considerações teóricas.
Por autoficção
entende-se obra de ficção que se vale dos dados da vida real do autor. Mais que
isso, à voz do narrador funde-se a voz do autor. Os fatos, as emoções
evidentemente, são aqueles do próprio escritor. Ele fará a seleção dos fatos,
de acordo com o andamento pretendido para o romance.
Pode-se confundir
autoficção com autobiografia. Entretanto, a autobiografia se pretende
fiel à sequência dos fatos reais, quer-se documental, normalmente é escrita com
a intenção de informar, de perpetuar a memória de determinada personalidade.
Já a autoficção
destina-se a ser lida como um romance, como uma obra literária, na qual o autor
exerce suas possibilidades estéticas; a estrutura aqui utilizada é a do romance,
com seus conflitos, clímax e desenlaces. Um romance, portanto, não é
simplesmente uma sequência de fatos, mas de fatos que servem à confecção de uma
narrativa. A seleção deles só se faz por serem significativas para o andamento
da estrutura da história.
Temos, então,
Bernardo Kucinski como um autor de autoficção. Em K – Relato de Uma Busca
há um narrador que se “cola” ao próprio autor. O personagem principal é um pai
que busca, incessantemente, por sua filha desaparecida durante a ditadura
militar. Envida todos os esforços para ter o direito de encontrar a filha ou,
em último caso, poder reconhecer o cadáver dela.
“A tragédia já avançava inexorável quando, naquela manhã de domingo, K. sentiu pela primeira vez a angústia que logo o tomaria por completo. Há dez dias a filha não telefona. Depois, ele culparia a ausência dos ritos de família, ainda mais necessários em tempos difíceis, o telefonar uma vez por dia, o almoço aos domingos. A filha não afinava com sua segunda mulher.
E como não perceber o tumulto dos novos tempos, ele, escolado em política? Quem sabe teria sido diferente se, em vez dos amigos escritores do iídiche, essa língua morta que só poucos velhos ainda falam, prestasse mais atenção ao que acontecia no país naquele momento? Quem sabe? Que importa o iídiche? Nada. Uma língua-cadáver, isso sim, que eles pranteavam nessas reuniões semanais, em vez de cuidar dos vivos.” (páginas 19/20)
Um pai que busca
o paradeiro da filha, mas um pai fortemente questionado pelo seu descuido com a
família, pois dedicava sua atenção ao culto “do iídiche, essa língua morta que
só poucos velhos ainda falam”.
Só agora ele se
dá conta de algo muito grave estar acontecendo à filha:
“K rememorou cenas recentes, o nervosismo da filha, suas evasivas, isso de chegar correndo e sair correndo, do endereço só em último caso e com a recomendação de não passá-lo a ninguém.
Atarantado, deu-se conta da enormidade do autoengano em que vivera, ludibriado pela própria filha, talvez metida em aventuras perigosíssimas sem ele desconfiar, distraído que fora pela devoção ao iídiche, pelo encanto fácil das sessões literárias.” (página 23)
O romance se inicia por uma situação, no
mínimo, estapafúrdia:
“De tempos em tempos, o correio entrega no meu antigo endereço uma carta de banco a ela destinada; sempre a oferta sedutora de um produto ou serviço financeiro. A mais recente apresentava um novo cartão de crédito, válido em todos os continentes, ideal para reservar hotéis e passagens aéreas; tudo o que ela hoje mereceria, se sua vida não tivesse sido interrompida. Basta assinar e devolver no envelope já selado, dizia essa última carta.” (página 15)
Estapafúrdia, mas
comum. Fico pensando como tal situação se repete, por este mundo afora, no qual
um sistema imbecil e insensível dispara mensagens de felicitações de aniversário,
desejo de feliz natal a pessoas que já morreram.
Em sua busca
incessante, K. descobre que a filha era casada. A descoberta o impacta mais
ainda, pois
“A filha confiara na outra família, não nele. Para a outra família o casamento não fora secreto, apenas discreto. Havia nisso um significado maior, terá ela sinalizado uma troca de famílias? Esse pensamento o machucava. Teria sido uma resposta ao seu segundo casamento com aquela alemã que a filha detestava? Ou à sua devoção tão intensa à língua iídiche? Uma língua que nem ela nem os irmãos sabiam falar, aliás, por culpa dele, que não se preocupou em os ensinar.” (página 51)
Tentativas aqui,
tentativas ali e K. não sabe mais sobre sua filha do que incialmente sabia. Aciona
amigos que, por sua vez, acionam outros contatos a fim de conseguir elucidar o
que acontecera à filha. Comparece à igreja católica do bairro onde mora, na
qual o sacerdote rebelde tenta minorar o sofrimento de várias famílias. Ele usa
seus conhecimentos para obter informações sobre os desparecidos, mas muito
pouco obtém de palpável. A máquina montada para fazer desaparecer, calar vozes
dissidentes é muito bem azeitada.
Em K – Relato de
Uma Busca não há risco de spoilers. A ausência, a inevitabilidade de se encontrar
sequer os corpos daqueles sequestrados pelo regime, entre eles, o da irmã do
narrador, é anunciado desde o começo.
Nas leituras de
apoio que acompanham o livro é dito que
“De tudo, a única coisa que ele deixa transparecer é a referência a Kafka, padroeiro e assombração de quase todo escritor judeu. A primeira referência está clara no nome de seu personagem e no eco entre a trama de K. e a de O Processo. Em ambas, protagonista navega por uma burocracia torturante na tentativa de esclarecer um processo judiciário opaco” (página 9 da revista da TAG, Isadora Sinay)
Concordo. Natural
que seja assim. Há uma relação biunívoca entre o nonsense kafkiano e o nonsense
vivido pelos judeus no Holocausto. E o nonsense vivido pela família
Kucinski aqui, no Brasil.
Não há cadáver,
não há o fechamento natural de uma morte; um desparecimento é como uma
suspensão, mas, como em música, uma suspensão cria uma tensão no ouvinte, a
expectativa de outra nota que virá. No caso do desaparecimento, a nota
restauradora não vem.
Ao leitor desconhecedor
dos desdobramentos do Holocausto, talvez estranhe muito tamanha dedicação de K.
ao culto do iídiche. Ainda utilizando os esclarecimentos de Isadora Sinay, à
página 10 da revista de apoio da TAG:
“De tudo que se perdeu no Holocausto, nada é mais representativo do que o iídiche, a língua que desapareceu com os judeus da Europa. De língua materna de milhões de pessoas, o iídiche é hoje uma língua de avós, de palavras pronunciadas com carinho ou uma maldade íntima. Uma língua que, em seu desaparecimento, foi deixando sem lar aqueles como K., exilados de uma Europa impossível e que havia encontrado na literatura da língua uma extensão da comunidade judaica que tinham sido forçados a abandonar.”
Ou seja, mata-se
uma língua materna, mata-se uma cultura, neste esforço de apagamento de seres.
Do ponto de vista
estrutural, o romance K., de B. Kucinski pode ser enquadrado como um
romance fix up. Este termo inglês, significando “gambiarra”, “arranjo”, “conserto”,
caracteriza aqueles romances que são compostos por contos cujos personagens
recorrentes, ou às vezes, a ambientação em comum formam um contínuo. Um bom
exemplo disto é Eu, Robô, de Isaac Asimov. O termo é mais comumente aplicado
aos livros de ficção científica, mas não creio exceder-me nesta qualificação. O
livro se compõe de contos, como o atesta o próprio autor, ao comentar como elaborou
a obra. Um tênue fio conduz o enredo até o fim, o do pai procurando a filha.
Este é um livro
que mexe com minhas memórias e, portanto, me afeta emocionalmente. Eu era
estudante universitário na parte final da ditadura militar. Embora não tenha
sido afetado diretamente pelas ações dela, tive colegas que simplesmente
desaparecerem, como Ana Rosa Kucinski. E corria, entre nós, os alunos, avisos
para tomarmos cuidado com fulano, gente tão fina, pois eram dedos-duros da
famigerada ditadura.
E, por isso, me
irrito quando se esforçam para me convencer de que não houve ditadura, alegando
“você não foi molestado”. Por este nefando raciocínio, o que não acontece a
mim, não me importa. Poderia aliviar, “mas esta é outra história”. Não, não é
verdade: é a mesma história.
K – Relato de
Uma Busca: um livraço, uma transfiguração da dor em literatura. A generosidade
de uma vivência individual em partilha. Obrigado, Bernardo Kucinski.
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