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Título:
Esfinge Autor:
Coelho Neto Editora:
Legatus Edição:
1ª Copyright:2020 ISBN:
978-1-8380473-5-1 Origem:
literatura brasileira Gênero
literário: Romance de Ficção Científica |
Henrique Maximiano Coelho Neto nasceu em
21/02/1864, em Caxias (Maranhão) e faleceu no Rio de Janeiro, em 28/11/1934.
Era filho do português Antônio da Fonseca Coelho e da índia Ana Silvestre
Coelho. Coelho Neto, como ficou conhecido, fez seus primeiros estudos no
Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, para onde sua família havia se mudado. Ele
contava com seis anos de idade neste evento.
Tentou estudar
medicina, mas acabou desistindo do curso. Em 1883, iniciou seus estudos
superiores na Faculdade de Direito de São Paulo. De espírito inconformado com
muitos fatos, viu-se envolvido em um movimento de protesto contra um professor.
Diante da possibilidade de represálias, transferiu-se para o Recife, cidade na
qual começou o primeiro ano de Direito, sob o comando de Tobias Barreto.
De ideais
republicanos e abolicionistas, Coelho Neto tornou-se companheiro assíduo de
José do Patrocínio, participando da campanha contra a escravidão no Brasil.
Ingressou no jornal Gazeta da Tarde e depois no A Cidade do Rio,
onde obteve o cargo de secretário. Data desta época a publicação de seus
primeiros trabalhos.
Escreveu 120
obras, abrangendo os gêneros romances, contos, crônicas e teatro. Utilizou
vários pseudônimos, tais como Anselmo Ribas, Caliban, Ariel, Amador Santelmo,
Blanco Canabarro, Charles Rouget, Democ, N. Puck, Tartarin, Fur-Fur, Manês. Entre
sua vasta obra literária, A Conquista (1899), Turbilhão (1906), Esfinge
(1908) e Fogo Fátuo (1928).
Num concurso,
promovido pelo famoso jornal O Malho, nosso autor foi reconhecido como
“o príncipe dos prosadores brasileiros”. Foi um dos escritores mais lidos de
sua época. Entretanto, por seu preciosismo textual, os autores modernistas (a
Semana de Arte Moderna é de 1922) declararam guerra ao nosso autor. O
beletrismo de Coelho era tudo o que o vendaval modernista abominava. Resultado,
o autor caiu no ostracismo.
Como venho
fazendo sempre que abordo uma obra com mais anos de existência, passo à
contextualização. Este livro foi publicado em 1908, quando o Rio de Janeiro
vivia a Belle Époque – nome francês para designar o período agitado
que vai do final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial. No Brasil, durou
até a Semana de Arte Moderna. Por todo lado, vivia-se a euforia, pois o futuro
anunciado era esperançoso. Houve uma explosão de inventos que mudariam,
realmente, a sociedade como as pessoas a conheciam. Invenção do avião, do
automóvel, do telégrafo e telefone, da lâmpada elétrica. A ciência anunciava um
mundo de bem-estar e era o centro das aspirações.
Nem tudo,
entretanto, eram flores. Também ocorreu o êxodo rural para as cidades, a
exploração da mão de obra trabalhadora. As nações europeias disputavam entre si
a primazia no campo das artes, cultura e ciência; teve início a corrida
armamentista – citada como um dos fatores decisivos para a Primeira Guerra Mundial.
O Brasil mantinha
intenso intercâmbio com a França. A elite brasileira viajava a Paris, a fim de
se informar a respeito da última moda, dos artistas mais prestigiados. A Belle
Époque se fez presente, em nosso território, nas regiões mais adiantadas
economicamente, como as do ciclo da borracha (Amazonas e Pará), as do ciclo
cafeeiro (São Paulo e Minas Gerais). As três cidades principais de origem
colonial (Rio de Janeiro, Recife e Salvador) também foram tocadas por esta
verdadeira febre.
O estilo
arquitetônico característico do período é o Art Noveau. Como exemplos
desta tendência, temos o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o Theatro
Amazonas, a Confeitaria Colombo (Rio), a Estação da Luz (São Paulo), o Castelinho
da Floresta e a casa de Afonso Pena Júnior (Belo Horizonte).
Esfinge é
um livro de leitura difícil. Parte de sua dificuldade vem exatamente da
linguagem empregada pelo autor. Coelho Neto é um beletrista. Isto quer dizer
que ele escolhe palavras pouco comuns, usa frases caudalosas, dotando o texto,
a meu ver, de afetação desnecessária, artificial. Talvez, mais fácil do que
explicar, para o entendimento de quem me lê seja trazer um trecho:
“Os hóspedes tratavam-se com intimidade, só o inglês do segundo andar, o apolíneo James Marian, retraía-se a todo o convívio, sempre sorumbático, calado, aparecendo raramente à mesa às horas das refeições, tomando-as só ou no quarto, quando não as fazia no jardim, a uma pequena mesa de ferro, à sombra das acácias, com champanhe a refrescar em um balde, ouvindo os passarinhos.” (página 49)
O trecho
selecionado acima mostra bem o bordado dos termos escolhidos. Observe a o longo
período subordinado, cheios de vírgulas. Para o leitor moderno, desacostumado
deste jeito de escrever, a percepção do que o autor deseja comunicar é difícil.
A pensão de Miss
Barkley tinha boa reputação na cidade do Rio de Janeiro. Ali, viviam pessoas de
cor branca, representantes da classe média em ascenção na sociedade carioca. A
maternal Miss Barkey, inglesa de origem e dona da pensão; Miss Fanny, também
inglesa, jovem e professora; o próprio narrador (do qual não saberemos o nome);
Frederico Brandt, professor de piano, crítico musical e compositor; o
comendador Bernaz, o mais antigo morador. Ainda, Décio, estudante de medicina e
admirador da poesia francesa (citando, nominalmente, Baudelaire) e inglesa;
Alfredo Penalva, estudante de medicina; Péricles de Sá, viúvo, empreiteiro de
obras e fotógrafo ocasional; Basílio, guarda-livros. Completam o “time”, Chispim,
estudante de Direito; Carlos e Eduardo, irmãos de origem inglesa, empregados em
uma casa importadora. E, por fim, o protagonista, o inglês James Marian.
O “apolíneo”
(belo) James Marian é, dentre todos, o mais excêntrico e misterioso. Dono de um
rosto de beleza feminina, tem um corpo viril, musculoso. Por esta dualidade,
causa estranheza por onde passa. Veste-se com apuro, um dândi (creio que o
termo mais atual, que corresponde a esta palavra fora de moda, seria mauricinho).
Não é preciso ser expert para deduzir que, num ambiente de intimidade forçada,
como o da pensão, as fofocas, o assunto de todos os dias, não poderia ser outro
além daquele estranho inglês.
Quando Brandt
executa suas músicas ao piano, com maestria, duas pessoas sempre vêm ao jardim
da pensão, a fim de escutar melhor a execução: James Marian e Fanny. Pouco a
pouco, chegamos à revelação de que a professora Fanny se apaixonou por James.
Entretanto, este não corresponde aos seus anseios femininos.
Marian é uma alma
atormentada. Sofre de acessos episódicos, em que se debate, de olhos arregalados,
como se visse fantasmas, forçando a gola da camisa como se lhe faltasse ar.
Depois, volta ao normal.
James Marian
demonstra amizade ao narrador. Isto leva o protagonista a solicitar-lhe a tradução
de um manuscrito que carrega. É a história de sua vida. Por este artifício, o
autor nos leva ao conhecimento da história de Marian. E que história, meus
caros leitores! Pois James Marian era um híbrido, um corpo masculino sobre o
qual havia sido implantada uma cabeça feminina.
Coelho Neto tomou
emprestada esta ideia do Frankenstein, de Mary Shelley, adaptando-a. Certo
Arhat – misto de cientista, orientalista, alquimista – conhecedor profundo de
uma tal Ciência Magna, havia conseguido unir o que restava de um corpo
masculino, ainda com vida, com uma cabeça feminina de uma jovem cujo corpo
estava destroçado. O autor não nos explica o que seria tal ciência.
Engana-se quem
pensar que Arhat era só um cientista e que, à moda do Frankenstein,
abandona sua criatura e mesmo a abomina. Ele tem amor paternal por James:
“Na mesma noite em que consegui realizar a conjunção dos dois corpos, que eram da Morte e que reintegrei na Vida, cedendo à terra o tributo que lhe cabia, porque os tassalhos foram sepultados pelo meu servo fiel, deixei a casa, vindo habitar este antigo castelo onde, à custa da minha própria essência, com prejuízo da minha energia, fui alimentando a vida que hoje tens, dando-te o meu fluido com o mesmo amoroso desinteresse com que a ave maternal encrava as garras no peito, esborcina a chaga a bicadas, fazendo rebentar o sangue com que ciba o ninho.
És verdadeiramente o filho da minha alma.” (página 159)
Temos, portanto,
a “realidade” de James Marion. Um ser ambíguo em sua (re)criação; uma cabeça
que pensa em chave feminina, num corpo masculino – por quem se apaixonara
Fanny. O feminino em James Marion jamais poderia liberar o masculino nele para corresponder
ao amor manifestado pela professora.
O protagonista
corre o mundo em busca de um sentido para sua vida. Muitos anos depois, após a
Segunda Guerra Mundial, o psicoterapeuta Viktor Emil Frankl elabora a sua
psicologia denominada Logoterapia. Ele defendia que o impulso mais forte
a mover um ser humano é encontrar um sentido para a sua vida. A função do
logoterapeuta, portanto, é ajudar o paciente a encontrar o seu sentido de
vida, para ser pleno.
Filosofias,
religiões diversas não deram conta do conflito interno, da transexualidade de
Marion. Então, recorre ao Brasil na tentativa de encontrar aqui, junto à
exuberância da natureza, o apaziguamento, o sentido para a vida. Tentativa
inútil. E como não encontra a paz, deve partir, ir buscá-la ainda em outro
lugar.
Mas, haverá algum
lugar, alguma filosofia, alguma religião, ou mesmo alguma psicologia a resolver
tal impasse? Não é só a transexualidade conflituosa; a ela, soma-se a questão
ambígua da sua re(criação). Marion é e não é humano. É humano, se se considerar
que Arhat usou sua ciência para juntar duas partes humanas. Não é humano, pois
o alquimista interferiu no ciclo de vida-morte e criou um híbrido por meio de
uma intervenção não natural.
Não se enquadra
na discussão atual de gênero versus sexo. James não é, simplesmente, um homem
com psicologia feminina e muito menos, uma mulher com psicologia masculina; são
duas peças distintas, em irremediável conflito, como lhe assevera o próprio
Arhat:
“Se em ti predominar o feminino que transluz na beleza do teu rosto, o rosto de tua irmã, serás um monstro: se vencer o espírito do homem, como faz acreditar o vigor dos teus músculos, serás como um ímã de lascívia: mas infeliz serás como ainda não houve outro no mundo se as duas almas que pairavam sobre a carne rediviva lograram insinuar-se nela.
O Linga-sharira, ou corpo astral, “aura” ambiente, que circula, em auréola, em torno da cabeça, é o último princípio que abandona o corpo e a tua cabeça é feminina. Será o coração viril?” (página 161)
Trata-se, como
está explícito na passagem, de duas almas que tentam conviver no mesmo corpo e
isto não é simbólico. É validado pelo raciocínio de que, se o corpo astral de
característica feminina circula ao redor da cabeça, o corpo astral masculino,
por semelhança, circula ao redor do resto do corpo.
Coelho Neto, como
grande construtor de narrativas que é, não deixa pontas soltas. Uma delas, o
que será feito de Fanny; está lá, leitor; só não vou contar para você o que
acontece. Haveria algo mais que o relato do narrador, que dê ao livro um
fechamento mais verossímil? Claro que há, mas também não o adianto. Sugiro que
você se aventure a ler o livro.
Parte da citação
acima, relativa à página 161, nos dá ideia da complexidade dos componentes sob
a superfície do texto. Coelho Neto faz uma mistura de orientalismo, conceitos
teosóficos e espiritismo. Não soa falso porque o personagem Arhat é instaurado
como um sábio, versado na Magna Ciência. Desta expressão, conclui-se tratar-se
de uma ciência maior, além do conhecimento comum. Uma mistura entre o
experimentalismo científico e o conhecimento ocultista, que resultaria numa
ciência dos deuses (grifo nosso). A época privilegiou muita especulação de
cunho ocultista, teosófico, espírita. Para se ter ideia do ambiente do Rio de
Janeiro, Marcelo Spalding (in Digestivo Cultural) cita trecho de As
Religiões do Rio, do cronista João do Rio (1904):
“Nós dependemos do feitiço. Não é um paradoxo, é a verdade de uma observação longa e dolorosa. Há no Rio magos estranhos que conhecem a alquimia e os filtros encantados, como nas mágicas de teatro, há espíritos que incomodam as almas para fazer os maridos incorrigíveis voltarem ao tálamo conjugal, há bruxas que abalam o invisível só pelo prazer de ligar dois corpos apaixonados, mas nenhum desses homens, nenhuma dessas horrendas mulheres tem para este povo o indiscutível valor do feitiço, do misterioso preparado dos negros.”
Vou ser honesto
com você: eu, com a experiência de quem já leu muita coisa e coisas variadas,
tive dificuldade em completar a leitura. Somente com disciplina venci alguns
capítulos intermediários, usando a intuição leitora de que o restante do livro compensaria
a dedicação. Confiei no talento de Coelho Neto, já detectado nos capítulos
iniciais, e segui adiante. Não me decepcionei.
Tenho com este Esfinge
sentimentos confusos. É uma obra “fora da curva”, estranha, leitura cheia de
camadas. Não tenho muito costume com literatura gótica e talvez daí venham tais
sentimentos confusos. Vale lembrar, o teórico das histórias de fantasia,
Tzvetan Todorov, nos alerta de que um dos elementos do fantástico é, exatamente,
o estranhamento.
Foram
importantíssimos para esta tentativa de resenha os dois textos de apoio que
acompanham esta bela edição da Editora Legatus. Um prefácio do professor
Alexander Meireles da Silva e um posfácio, de autoria da professora Mary
Elizabeth Ginway. Sem eles, a leitura teria sido menos proveitosa.
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