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Título
original: A Pál utcai fiúk Autor:
Ferenc Molnár Tradutor:
Edith Elek Editora:
Nova Fronteira Copyright:
2023 ISBN:
978-6556-40651-0 Gênero
literário: romance de formação Origem:
literatura húngara |
Ferenc Molnár é destes escritores dos
quais pouco se sabe aqui no Brasil. Nasceu em Budapeste, capital da Hungria, em
12/01/1878 e faleceu em Nova Iorque, EUA, em 01/04/1952. Imigrou para os Estados
Unidos fugindo da perseguição nazista aos judeus do seu país de origem.
Ele nasceu Ferenc
Neumann, numa família judia de classe média; teve seu sobrenome traduzido para
o idioma magiar (húngaro). Assim, foi rebatizado para Molnár, palavra que, em
húngaro, significa “moleiro”. Esta exigência era regra geral na Hungria, pertencente, na época, ao Império
Austro-Húngaro: todos os judeus eram obrigados a receberem nomes húngaros.
Entre suas obras –
cujas referências são escassas nesta terra brasilis – constam a peça Lilion
(1909), O Poste de Vapor, resenhado aqui neste blogue em 2016, sob o número 84, e
o seu livro mais famoso, o clássico infanto-juvenil Os Meninos da Rua Paulo (1907).
Falar sobre este Os
Meninos da Rua Paulo é voltar à minha formação como leitor. Uma viagem
emocional. Lembro-me de ter compulsado um livro de bolso, com capa amarela e título
com grandes letras vermelhas, editado pela Edições de Ouro. Os nomes de Boka,
Nemescek e Geréb fazem parte da minha memória afetiva, constituindo-se eles
poderosas chaves a abrirem referências à literatura húngara.
Pois bem. Desta caprichada
edição da Nova Fronteira, que tenho em mãos, seleciono parte do parágrafo:
“Às quinze para uma, naquele exato momento, quando na sala de ciências naturais, sobre a mesa principal, após longas e inconclusivas experiências, finalmente, a muito custo, atingimos algum resultado, depois de uma longa e ansiosa espera, com a explosão de um lindo feixe verde-esmeralda na chama incolor do bico de Bunsen, demonstrando que com aquela mistura, com a qual o professor queria provar que pintaria a chama de verde, e ele de fato pintou a chama de verde, como eu disse: justo às quinze para uma, naquele triunfante momento, no quintal da casa vizinha, soou uma pianola e com isso toda a seriedade simplesmente se rompeu. As janelas estavam escancaradas naquele dia quente de março e, nas asas do ar fresco primaveril, a música voou para dentro da sala de aula. Eram algumas notas alegres de uma canção húngara, que lembravam uma abertura garbosa, ressoando como qualquer coisa vienense, e a classe toda desejou sorrir, aliás, teve quem de fato sorrisse.” (página13)
Interessante notar
algumas coisas neste parágrafo introdutório. Primeiro, no tocante ao estilo do
autor, a abundância de períodos subordinados, o que exige destreza na
organização do que se quer dizer, sob risco de o pensamento se perder entre tantas vírgulas
e encadeamentos de ideias. Segundo, a música que voou para dentro da sala de
aula, portadora de uma abertura garbosa, com notas alegre de uma canção
húngara ressoando como qualquer coisa vienense é uma referência ao Império
Austro-Húngaro.
Este Império
Austro-Húngaro tinha dois centros, como o nome deixa entrever: na Áustria e na
Hungria. Mais especificamente, na Viena imperial e em Budapeste. A abertura
garbosa, possivelmente ufanista, dizia respeito à bravura húngara. Mas as
notas, soando como qualquer coisa vienense são referências à Viena – à Viena do
importantíssimo legado musical das valsas ligeiras de Johann Strauss, por
exemplo.
Os personagens
desta história vão sendo apresentados, um a um: Geréb, Boka, Csónakos, Csele,
Nemecsek e, ainda os adversários, os irmãos Pásztor. Formam dois grupos,
portanto: os meninos da rua Paulo, capitaneados por Boka e outro grupo, liderado
pelos irmãos Pásztor.
Os da rua Paulo
utilizavam o grund – o território deles, localizado numa madeireira, e
que deveria ser defendido com unhas e dentes. A outra turma montara sua base no
Parque Municipal da cidade. Entretanto, logo o Parque se revela não apropriado
para os meninos jogarem bola. Este conflito que se avizinha será o ponto
crucial desta história. Uma guerra entre bandos de garotos por um território.
O azedume entre as
duas “facções” é apontado desde cedo:
“— Ontem fizeram einstand no museu de novo!
— Quem?
— Os Pásztor. Os dois irmãos Pásztor.
Um grande silêncio se sucedeu.
Para isso, é preciso explicar o que é einstand, algo que toda criança de Budapeste do começo do século XX sabia. Quando um dos meninos mais fortes queria brincar com bolas de gude, por exemplo, ou outros jogos que exigiam equipamentos especiais que ele não tinha, mas via nas mãos de garotos mais fracos, decidia tomá-los, então dizia bem alto: einstand. Essa horrível palavra alemã significa que o mais fraco deve ceder o jogo ao mais forte, e quem ousar recusar será dominado pela força. É, portanto, um grito de guerra. Ao mesmo tempo, é o caminho mais curto para o estado de emergência do recurso da força, da lei do mais forte e de atos de pirataria, o próprio motivo da declaração.” (páginas 23/24)
Deste pequeno trecho
podemos fazer algumas ilações. O Império Austro-Húngaro já vinha perdendo força,
tendo sido o assassinato do imperador Francisco Fernando, na Sérvia, como o
motivo da Primeira Guerra Mundial. Os austro-húngaros (ao qual se vincularam os
Habsburgos) se esfacela ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Por esta
digressão, aproximamos Os Meninos da Rua Paulo das tensões presentes no
ambiente de pré-primeira guerra – o livro é de 1907 – iniciada em 1914. Sopram ventos
do conflito vindouro nas páginas deste excelente livro.
Boka e sua turma
representam os pacifistas e os arruaceiros irmãos Pásztor são os mais fortes, os
detentores do poder (dado pela força física). Boka e sua turma devem usar a sua
imaginação para a defesa do que consideravam seu território:
“No grund, ninguém sabia que esse pedacinho de terra não seria mais deles. Esse pequeno pedaço de chão sem nenhum cultivo, acidentado, em Budapeste, essa várzea espremida entre duas casas que para suas almas de meninos representava o infinito, a liberdade, que, no período da manhã, era as planícies americanas e, de noite, a Transilvânia, quando chovia era o mar e, no inverno, o Polo Norte; era sempre a sua terra amiga, que se transformava no que eles queriam, só para a sua diversão.” (página 102)
Os Meninos da
Rua Paulo continua um livro a ser lido. A história pode ser vista como uma
singela narrativa sobre os valores da vida, a coragem de todo o grupo ao combater
os mais fortes, na defesa de seus ideais; o respeito às regras criadas pelo próprio grupo, também. Sobretudo, a questão da dignidade e da dedicação a uma causa
considerada válida, exemplificada pelo lourinho franzino Nemecsek.
“Sim, Boka se sentia agora como um grande comandante antes da batalha final. Pensou no grande Napoleão ... E se perdeu no futuro. Como seria? O que seria? O que resultaria disso tudo? Será que seu futuro seria o exército? De verdade, com uniforme oficial, comandando algum dia, em algum lugar distante, em campo de batalha real – não em um pequeno pedaço de terra, como esse grund, mas, sim, por aquele grande pedaço de terra amada, que chamamos de pátria? Ou seria médico, que esgrima com as doenças todos os dias, batalhas grandes, sérias e corajosas?” (página 133)
Aqui, Boka já não
é mais um simples adolescente de quatorze anos. Aqui, ele é capaz de fazer
projeções para um futuro – visto, é certo, como nebuloso em suas possibilidades
– , sonha, pressente um conflito mais denso, mais real que aquele para o qual
se prepara agora, na defesa do grund. Sente o chamamento para a defesa de algo maior
– a própria pátria. Aquela pitada de angústia diante do desafio visto como
importante.
E, neste caso, a
defesa do grund se transforma num rito de passagem, em que certas provas
acontecem para provar o valor ou ascenção de determinado indivíduo a uma nova
categoria validada pela sociedade.
E, ao acompanhar
estes personagens – notadamente Boka e Nemecsek – na perda da inocência de um mundo
infantil, Os Meninos da Rua Paulo se caracteriza no que se convencionou
chamar romance de formação, cujo exemplar fundador é Os Anos de
Aprendizado de Wilhelm Meister, do mestre alemão Goethe.
Nestes muitos
anos que separam a minha primeira leitura deste clássico infanto-juvenil e
esta, os olhos maduros perceberam muito mais coisas; fizeram muito mais
contextualizações. Ser um clássico destinado à leitura de jovens não invalida o
reencontro com o livro. Muito pelo contrário, o leitor maduro tem muito mais
condições de ver no livro os valores que ele tem e no valor que tem um escritor
como Ferenc Molnár.
Os Meninos da
Rua Paulo continua um romance a mexer com as minhas emoções de leitor.
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