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Título
original: Válás Budan Autor:
Sándor Márai Tradutor:
Ladislao Szabo Editora:
Companhia das Letras Edição:
s/n – 1ª reimpressão Copyright:
1993 ISBN:
85-359-0440-9 Origem:
literatura húngara Gênero
literário: romance |
O escritor
húngaro Sándor Márai (lê-se Tchándor Mároi) nasceu na cidade de Kassa (cujo
nome atual é Kosice), no atual território da Eslováquia, no ano de 1900. À
época do seu nascimento, os países da região ainda não existiam, estando todo
aquele território sob o domínio do Império Austro-Húngaro. Tal império entrou
em colapso em 1918, após derrota na Primeira Guerra Mundial (duração do conflito: de 1914 a
1918).
Autor de 46
livros – nem metade traduzida para o português, no Brasil – alcançou enorme
popularidade na Hungria, até o momento em que foi proibido pelo regime
comunista, em 1948. Neste mesmo ano, Sándor Márai vai viver nos Estados Unidos,
em exílio. Mesmo em território norte-americano, continuou a escrever em sua
língua natal, o húngaro. Morreu em 1989, na Califórnia, por suicídio.
Os direitos
autorais das obras publicadas em terras brasileiras pertencem, em grande parte,
à Companhia das Letras, a saber: As Brasas, 1999; O Legado de Eszter,
2001; Veredicto em Canudos, 2002; Divórcio em Buda, 2003; Rebeldes,
2004; Confissões de Um Burguês, 2006; De Verdade, 2008; Libertação,
2009; Jogo de Cena em Bolzano, 2017 e Brasas, em uma nova edição,
de 2021. Encontram-se disponíveis na editora apenas duas obras: Brasas
(edição de 2021) e Veredicto em Canudos (edição de 2002).
Dei de cara com o
nome deste escritor quando fiz uma pesquisa sobre a literatura do Leste
Europeu, pois, a partir da literatura russa, desejava descobrir o que mais
existia, além de alguns escritores cujas obras já conhecia, como Kafka,
Szigmond Móricz, Férenc Molnár (aquele, do clássico infantojuvenil, Os
Meninos da Rua Paulo).
Há lacunas culturais
que só se podem entender num país como o nosso, com pouco público para este
tipo de literatura, somado à dificuldade de se conseguir bons tradutores de
idiomas menos em evidência, como o húngaro e à valorização do que nos chega dos
EUA. A julgar por este Divórcio em Buda, Sándor Márai é precioso. E
dizem os entendidos, não é o melhor dele; Brasas (recebe, às vezes, o
nome de As Velas Ardem Até O Fim) é considerada, por muitos, sua
obra-prima. Não posso opinar a respeito, mas estou muito impressionado por este
pequeno volume em minhas mãos.
O título Divórcio
em Buda, para nós, brasileiros, soa meio estranho; por isso, merece
explicação. O “Buda” que figura no título não tem nada a ver com o budismo. A
capital da Hungria é Budapeste, e é uma junção da parte na margem
direita do Danúbio, Buda (Ôbuda) e Peste, na margem esquerda do
mesmo rio. Há uma ponte integrando definitivamente Buda e Peste.
Portanto, o título se refere a certo divórcio acontecido na parte antiga da
cidade, Buda.
Sándor Márai
investe muito na caracterização psicológica de seus personagens. O juiz Kristóf
Kömives tem 38 anos, é casado com Hertha e tem dois filhos pequenos. Certo dia,
vem parar em suas mãos o processo de divórcio do casal Imre Greiner e Anna Fazekas.
Acontece que Imre fora colega de sala de Kömives, nos tempos de escola.
Anna, também dos
tempos de escola, despertara, em algum momento, seu interesse amoroso. Algumas vezes
se encontraram, nas voltas da vida, mas nada aconteceu. E agora, Kristóf tem,
diante de si, o retorno do passado: precisa dar uma definição para o processo
de divórcio entre os dois antigos conhecidos.
Antes de
continuar a resenha, seria interessante abordarmos alguns aspectos. As ações de
Divórcio em Buda vão se localizar na década de 1930. Valores que seriam
classificados de “modernos” pipocavam aqui e ali, mudando costumes, hábitos,
interferindo nos relacionamentos. As pessoas descobrem que os banhos de sol são
recomendados para a saúde, o modelo de mulher passa a ser magra, bronzeada –
como Greta Garbo.
Também as tensões
começavam no campo social, financeiro e político. A quebra da bolsa de Nova
York acontecera em 1929, influenciando o mundo todo; os reflexos da Primeira
Guerra Mundial ainda estão presentes na Europa como um todo. Num mundo assim,
em ebulição, vamos localizar as questões envolvidas nesta obra.
Com o processo
diante de si, sobre a mesa, o juiz Kömives divaga:
“Agora se lembrava do preciso instante em que soube, surpreso, irritado, que Imre Greiner, aquele Imre Greiner de quem sempre se recordava com carinho na escola e mais tarde na faculdade, com quem se encontraria e conversaria com prazer, e com quem nunca soube conversar quando ocasionalmente se encontravam, casara com aquela sua conhecida, que... e aqui parou. Quem era essa Anna Fazekas? Teria significado algo mais para ele do que um conhecimento superficial, até mais do que superficial, secundário, mundano? Quando solteiro, viu-a na quadra de tênis duas ou três vezes, e com certeza encontrou-a mais tarde, depois de seu casamento, mas de passagem, superficialmente, como outras moças e mulheres casadas que até conhecia, embora delas talvez nem soubesse o nome.” (página 14)
Kristóf Kömides é
um homem arredio socialmente, não tem bom salário, pertence a uma família
tradicional, com avô e pai também juízes. Ele é uma promessa, é um bom juiz,
julga com lisura e, fatalmente, seguirá, tão logo a ascensão hierárquica o
permita, os passos de seus predecessores e será reconhecido. Kristóf é, também,
um homem que não gosta de certas modernices:
“A caminho, o juiz refletiu sobre como tudo se decompôs e se modificou naqueles últimos anos, inclusive as formas de convívio social. Ele conhecia e gostava dessa humilde classe média senhorial da qual fazia parte, sentia-a como uma única e grande família, em cujos costumes sociais percebia o mito da família, cujo gosto era o mesmo que o seu, no trabalho, e inclusive na vida particular, sentia-se responsável pelo seu bem-estar e segurança.” (página 18)
Em outro momento:
“Esse mundo contemporâneo, lamurioso, sem limites e irresponsável que manifestava excessivamente seus choros e desejos – como ele repudiava esses casamentos “modernos” e neuróticos, do qual marido e mulher fugiam com tamanha facilidade para a frente do juiz!” (página 21)
O juiz é um
burguês, conservador, defensor da sacralidade da instituição casamento. A agitação
ao redor, da qual a invasão do swing – ritmo alegre, barulhento, agitado
– talvez fosse uma boa amostragem, o incomoda.
Numa das cenas
mais dramáticas do livro, que demonstra muito bem a capacidade de Sándor Márai
de criar cenas impactantes, de arranhar nossos sentimentos de leitores, eis a
descrição da cena da morte do pai de Kömives:
“Ficou meses na cama, doente; só perdeu a paciência na última semana, e então, algumas horas antes da batalha final, ergue-se penosamente num momento em que ninguém o vigiava, arrastou-se até o escritório, tirou de uma gaveta um velho revólver e tentou dar um fim a tudo aquilo. Caiu com o revólver na mão e ficou estirado no chão do escritório, imóvel, paralisado sob os quadros que retratavam os membros da família; foi encontrado nessa posição, inconsciente. Horas mais tarde, entrou em agonia. O revólver com o qual procurou apressar seu fim, sem contudo ter dado o golpe de misericórdia, e alguns retratos da família foi tudo que Kristóf manteve do legado de seu pai.” (página 36)
A família,
portanto, é a um tempo, uma instituição que acolhe o indivíduo e que pesa sobre ele. Que perpetua valores morais e sociais, dá segurança, mas que
se constitui numa força de retenção do indivíduo. Este aspecto se torna mais
dramático num mundo em transformação, para o bem ou para o mal.
Kristóf foi
enviado para um internato. Lá, conhece a figura do Padre Norbert, uma
construção de personagem muito bem-feita pelo escritor húngaro. Ele será uma
espécie de pai substituto:
“O padre Norbert lhe deu aquilo que, na maioria das vezes, nem as mães são capazes de dar, nem a família, nem os irmãos: com tato e visão, o gênio pedagógico do padre Norbert colocou-o sob a proteção de uma comunidade humana. Lá onde cada indivíduo sentia pertencer a algo, a um lugar, isso era tudo. Mais tarde, Kristóf Kömides muitas vezes se perguntou se conseguia passar aos próprios filhos esse sentimento de proteção, se sabia construir dentro da família esse refúgio. Não tinha uma grande opinião sobre as modernas teorias de educação. Com o passar dos anos, conheceu pessoas, vislumbrou destinos e percebeu que aqueles que mantêm o equilíbrio, os que resistem, não necessariamente provêm de circunstâncias familiares felizes – vinham da pobreza, de famílias muito numerosas, onde o dinheiro, o ciúme, as paixões fizeram seu trabalho destrutivo na alma de seus componentes, sem ter demolido a fundação espiritual da estrutura familiar – por quê? De que reserva se alimentavam essas almas?” (página 41)
Este padre
Norbert será a influência decisiva na religiosidade do juiz Kömives, uma
religiosidade “natural, não aprendida em livros”.
Hertha Wiesmeyer é
a esposa de Kristóf. Ela é o eixo de equilíbrio do esposo; serena, conhecedora
de sua importância na construção familiar, eis como ela é descrita:
“Hertha Wiesmeyer era bonita. Sua beleza se afirmou com o passar do tempo, sua face fina e longilínea, de testa alta, irradiava uma harmonia simples e tranquila. Não era uma beleza arrogante, mas apenas consciente de si mesma, sem ser provocante ou encantadora – as pessoas não conseguiam desviar-se dos efeitos do seu rosto, olhavam-na seriamente, com uma comoção involuntária.” (página 57)
Aquele clima de
insegurança, provocado pelas forças ainda subjacentes, vívidas, de um
horror mundial remanescente (a Primeira Guerra Mundial) e as apenas intuídas, de outro conflito que se avizinha, repercutem na alma das
pessoas, ainda que sob a forma de um “mal-estar generalizado”, disfarçado sob
momentos de alegria compartilhada:
“Surpresa verdadeira, pensou, só existe uma na vida: quando descobrimos que nós também, pessoalmente, somos mortais. Essa descoberta foi feita por Kristóf aos trinta e oito anos. Aquela sensação física de origem puramente nervosa, por sorte passageira, quando por um segundo sentimos que algo pode acontecer também conosco... o quê? (página 74)
E mais:
“Agora entende: a guerra começa quando as pessoas, em todos os lugares do mundo, estão sentadas e falam de seus problemas e desejos do dia-a-dia e, de repente, alguém pronuncia a palavra “guerra” – e então elas não se calam, não olham para o chão caladas e assustadas, mas respondem de todas as maneiras, em tom natural: ‘guerra” – e se perguntam se é possível, quando e em que medida. É assim que começa.” (página 90)
Tarde da noite,
na véspera do julgamento do processo de divórcio, a criada dos Kömives anuncia ao
patrão uma visita. O juiz está contrariado, ele não recebe casos jurídicos em
andamento em casa, preservando sua vida particular. A criada insiste; é alguém
que diz ser conhecido do juiz e, por isto ele o atende. É Imre Greiner quem se
insinua. Devo apenas entremostrar o que se segue, sob risco de spoiler,
meu caro leitor.
Direi, apenas,
que o próprio juiz será obrigado a encarar o significado de certos fatos do seu
passado. Terá de responder, a si mesmo, aquela pergunta feita lá na página 14, “quem
era essa Anna Fazekas? Teria significado algo mais para ele do que um
conhecimento superficial, até mais do que superficial, secundário, mundano?”
Literatura não é
psicologia, este resenhista não é psicólogo de formação. Entretanto, ocorre-me
o livro Em busca de sentido, de Viktor E. Frankl (resenhado neste
blogue) e sua logoterapia. Ele defende, naquela obra, que os homens temos de
buscar um sentido para a vida, para nos equilibrarmos neste mundo. Ele mesmo,
Viktor, um sobrevivente dos campos de extermínio nazista, conseguiu manter sua
sanidade, apesar dos horrores espreitados, encontrando algum sentido para sua
vida.
Aquele mundo, localizado
no ambiente de pós-guerra mundial, o Império Austro-Húngaro destruído, mas –
calculo – se esforçando inutilmente por sobreviver, sob aquela camada feérica
de alegria fabricada, o que ele poderia oferecer às pessoas? Que questionamentos, que inquietações imporia às mentes?
A alma pressente
as graves modificações, embora não a tragamos ao nível consciente. Uma outra
Guerra Mundial, muito mais devastadora, pouco a pouco se anuncia. A respeito do
mal-estar civilizatório, deixemos falar quem entende do assunto, num excerto do
Professor de Antropologia da PUC-SP, Edgard de Assis Carvalho:
“Hans Jonas, em Para uma ética do futuro (1998), afirmou serem necessárias duas tarefas preliminares a ser levadas a cabo por todos os humanos que investem energia libidinal na boa utopia de um mundo menos antropocêntrico e mais ecocêntrico: a primeira, a maximização do conhecimento das consequências de todos os nossos agires, dada a agonia planetária que acomete a todos nós; a segunda, a elaboração de uma forma de conhecimento transdisciplinar, que fosse capaz de conjugar saberes fatuais e saberes axiomáticos.
Para isso, a fabricação do real teria de se pautar pela combinação do intelecto com a emoção, do necessário e do contingente, da harmonia e do caos. Essa modalidade renovada de consciência coletiva, destituída de qualquer intenção prometeica, seria saturada de complexus, ou seja, de agires e fazeres que rejuntariam tudo aquilo que a disjunção cartesiana se incumbiu de separar no plano físico, metafísico e metapolítico. Qualquer sistema vivo passaria, então, a ser entendido como um sistema incompleto, indeterminado, irreversível, sempre marcado pela auto-organização que combina, descombina e recombina a ordem, a desordem, a reorganização.” (in Mal-estar civilizatório e ética da compreensão, acessado em 20/02/2022, < https://www.scielo.br/j/spp/a/f5jBZbXgjFSSwkjhvf75V9H/?lang=pt>)
Nada mais a
dizer. Nada mais a considerar.
Apenas uma
constatação: pode não ser o melhor de Sándor Márai. Entretanto, este Divórcio
em Buda é magnífico. Acima da média. Tenho como certo, suas reverberações
serão muito frequentes e poderosas na minha memória de leitor. Assumo o
compromisso comigo mesmo e com o leitor: vou fazer deste autor um projeto de
leitura.
Concordo, existem
leitores para os mais diversos tipos de livros, para as mais diferentes
propostas. Esta obra não é exceção. Não agradará a todos, aliás, não existem
livros que agradem a todos. Para apreciá-lo, você deverá gostar de enredos que não
se focam em ação. História de fundo psicológico, de análise de personagens
requerem leitores com estas predisposições.
Não há demérito
em se gostar de outras propostas. Que seria do amarelo, se todos gostassem do
vermelho?
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