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Título original: La Peste Autor:
Albert Camus Tradutora:
Valerie Rumjanek Editora:
Record Edição:18ª Copyright:1947 ISBN:978-85-01-01487-0 Gênero
literário: romance Origem:
Literatura francesa |
Albert Camus é um
escritor argelino de nacionalidade francesa. Nasceu em 07/11/1913, em Mondovi,
Argélia, e faleceu em 04/01/1960, em Villeblevin, França. Um homem de vários
talentos: romancista, ensaísta, jornalista, dramaturgo e filósofo. Na sua terra
natal, viveu sob o guante da fome, da guerra, da miséria e do sol. Tais
referências vão aparecer em toda a sua obra.
Camus foi agraciado com
o Prêmio Nobel de 1957, pelo conjunto da obra. Ele era tuberculoso e esta
condição, à época uma ameaça real de morte, lhe trouxe a dimensão da
falibilidade do ser humano. Como filósofo, Albert integra a corrente
existencialista; como escritor, vincula-se ao que se convencionou chamar
“estética do absurdo”. Camus sempre defendeu que o melhor modo de filosofar é
através da literatura. E o romance, como gênero literário, é o campo mais
favorável para tal intento. Como precedentes, dentro da mesma proposta
estética, temos Dostoiévski e Franz Kafka; como filiados posteriores, Samuel
Beckett e Eugène Ionesco.
Este é a segunda
obra de Albert Camus resenhada neste blogue; O Estrangeiro conta com a
postagem de número 105. Pretendo ler, em breve, A Queda. Como vê o
leitor, este argelino está se tornando um queridinho deste leitor entusiasmado.
A Peste é
de 1947, quando a Segunda Guerra Mundial tinha terminado. Os ecos deste
conflito, sobretudo na Europa, marcavam forte presença. Como é dito na orelha
do livro, edição da Record, que tenho em mãos,
“Com A Peste (1947), Albert Camus tenta a demonstração de um novo cogito cartesiano: ‘Eu me revolto, portanto, nós somos.
Pois a revolta (individual) contra o absurdo é também revolta (coletiva) a favor dos valores que a própria revolta revela.”
Toda a narrativa
tem lugar na cidade de Oran, tomada pela epidemia. Clara alegoria da condição
humana, pela semelhança desta cidade envolta em peste e a França ocupada da
Segunda Guerra Mundial, A Peste nos diz mais do que uma leitura de
superfície pode nos dar. Certos traços narrativos, algumas digressões postas na
boca de alguns personagens nos levam a estabelecer termos de comparação com a
infecção do Nazismo.
Em apenas dois
parágrafos iniciais, Camus nos pinta uma cidade em tons neutros, absolutamente
normais – cenário da insuspeitada chegada da peste bubônica – exatamente como
acontecera na Idade Média:
“Os curiosos acontecimentos que são o objeto desta crônica ocorreram em 194... em Oran. Segundo a opinião geral, estavam deslocados, já que saíam um pouco comum. À primeira vista, Oran é, na verdade, uma cidade comum e não passa de uma prefeitura francesa na costa argelina.
“A própria cidade, vamos admiti-lo, é feia. Com o seu aspecto tranquilo, é preciso algum tempo para se perceber o que a torna diferente de tantas outras cidades comerciais em todas as latitudes. Como imaginar, por exemplo, uma cidade sem pombos, sem árvores e sem jardins, onde não se encontra o rumor de asas, nem o sussurro de folhas? Em resumo: um lugar neutro. Apenas no céu se lê a mudança das estações. A primavera só se anuncia pela qualidade do ar ou pelas cestas das flores que os pequenos vendedores trazem dos subúrbios: é uma primavera que se vende nos mercados. Durante o verão, o sol incendeia as casas muito secas e cobre as paredes de uma poeira cinzenta; então, só é possível viver à sombra das persianas fechadas. No outono, pelo contrário, é um dilúvio de lama. Os dias bonitos só chegam no inverno.” (página 9)
O quadro da
cidade, fornecido pelo narrador, me traz à lembrança a modorrenta tranquilidade
daquela cidadezinha do filme Os Pássaros, de Alfred Hitchcock, tranquilidade
esta que será drasticamente alterada pelo bizarro ataque dos pássaros. Lá, eram
pássaros; aqui, são ratos.
Neste cenário se
movimenta o Dr. Bernard Rieux. Aliás, este protagonista-narrador merecerá
comentários à parte, nesta resenha.
Como tudo começa:
“Na manhã do dia 16 de abril, o doutor Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o bicho sem prestar atenção e desceu a escada. Ao chegar, porém, veio-lhe a ideia de que esse rato não estava no lugar devido e voltou para avisar o porteiro. Diante da reação do velho Michel, sentiu melhor o que sua descoberta tinha de insólito. A presença deste rato morto parecera-lhe apenas estranha, enquanto para o porteiro constituía um escândalo. A posição deste último era aliás categórica: não havia ratos na casa. Por mais que o médico lhe garantisse que havia um no patamar do primeiro andar, provavelmente morto, a convicção de Michel permanecia firme. Não havia ratos na casa e era necessário que tivessem trazido este de fora. Em resumo, tratava-se de uma brincadeira.” (página 13)
De fato, o negacionismo
tem por base a ignorância.
Como bom escritor
que é, Camus só constrói personagens que sejam importantes para sua narrativa. São
vários, mas quero destacar dois: o jornalista Raymond Rambert e Jean Tarrou. Ambos
acompanharão o protagonista quase até o fim da história e têm, cada um a seu
jeito, o que contribuir para o enredo.
Como jornalista,
Rambert traz um tom investigativo à narração. Ele está ali para fazer uma
matéria sobre a condição de vida dos árabes, enviado por um grande jornal de
Paris. Jean Tarrou é um homem introspectivo, “encarregado” de portar os comentários
filosóficos do livro.
O narrador nos apresenta
Rambert da seguinte forma:
“Na tarde do mesmo dia, Rieux, no início de suas consultas, atendeu um rapaz que lhe disseram ser jornalista e que já viera de manhã. Chamava-se Raymond Rambert. Baixo de estatura, ombros largos, rosto decidido, olhos claros e inteligentes, Rambert vestia roupa esporte e parecia à vontade na vida. Foi direto ao assunto.” (página 16)
Jean Tarrou nos
causa outra impressão:
“Às cinco horas, ao sair para novas visitas, o médico encontrou na escada um homem ainda novo, de aspecto pesado, de rosto maciço e cansado, riscado por sobrancelhas espessas. Tinha-o encontrado algumas vezes na casa dos bailarinos espanhóis que moravam no último andar do seu prédio. Jean Tarrou fumava com empenho um cigarro e contemplava as últimas convulsões de um rato que morria.” (página 17)
Pouco a pouco,
vão aparecendo ratos mortos em lugares imprevistos. Breve, não são apenas os
ratos que morrem; a peste bubônica começa a matar também os habitantes de Oran.
Nenhuma categoria, nenhuma classe social é poupada. O Dr. Rieux quase nada pode
fazer; as pessoas apresentam nódulos purulentos pelo corpo, notadamente nas
virilhas. A febre sobrevém, a secura, a falta de ar. A peste promove verdadeira
mudança na disposição dos seres humanos:
“Homens que se julgavam volúveis no amor redescobriram-se constantes. Filho que tinha vivido junto da mãe, mal olhando para ela, depositavam toda a preocupação e angústia numa ruga de seu rosto que lhes povoava a lembrança dessa presença, ainda próxima e já tão distante, que ocupava agora os nossos dias. Na verdade, sofríamos duas vezes: o nosso sofrimento, em primeiro lugar; e em seguida aquele que atribuíamos aos ausentes – filho, esposa ou amante.” (página 66)
Outro personagem
absolutamente importante nestes relatos é o padre Paneloux:
“No entanto, onde uns viam a abstração, outros viam a verdade. De fato, o fim do primeiro mês de peste foi obscurecido por recrudescência acentuada da epidemia e um sermão veemente do Padre Paneloux, o jesuíta que assistira o velho Michel no princípio da doença. O padre Paneloux já se havia distinguido por colaborações frequentes no boletim da Sociedade de Geografia de Oran, onde suas reconstituições epigráficas constituíam autoridade. Mas conquistara um auditório mais vasto que o de um especialista ao fazer uma série de conferências sobre o individualismo moderno. Mostrara-se, então, defensor ardoroso de um cristianismo exigente, igualmente distanciado da libertinagem moderna e do obscurantismo dos séculos passados. Nessa ocasião, não poupara duras verdades ao seu auditório. Daí sua reputação.” (página 84)
A Peste
segue com sua história sobre a infecção de Oran, pontuando, aqui e ali, discussões
muito instigantes entre o padre Paneloux, o próprio narrador Rieux e Tarrou a
respeito de questões éticas e religiosas:
“A contradição, aliás, não o assustava, pois tinha dito pouco depois a Tarrou que, certamente, Deus não existia, já que, de outro modo, os padres seriam inúteis. No entanto, por certas reflexões que se seguiram, Tarrou compreendeu que esta filosofia estava estreitamente ligada ao estado de espírito que lhe davam os peditórios frequentes de sua paróquia.” (página 106)
A meu ver, Rieux é
um ateu, típico homem da ciência; Tarrou questiona a ideia e a atuação de Deus,
de um ponto de vista filosófico. O padre Paneloux, um homem religioso, um
sacerdote, que também atua na área da ciência – haja vista sua participação na
Sociedade Geográfica de Oran. É portanto, uma tentativa de síntese entre a
Religião e a Ciência, sem o “obscurantismo dos séculos passados”.
Como não há bem
que sempre dure, nem mal que nunca se acabe, a partir de certo momento a
epidemia vai perdendo força. Não conto como acaba tudo, embora o como acabe
não seja importante num romance como este, que ouso chamar de um romance de
tese. Isto é, uma obra literária montada para discutir ideias e ideais. No caso,
o quão absurda é a existência humana.
Linhas acima,
disse que o narrador de Camus mereceria comentários à parte.
De fato, um dos
elementos a serem descobertos, durante a história, é quem é o narrador. Sim,
porque ele se esconde, nega-se a dar evidências de si. Usa, estrategicamente, a
terceira pessoa. Chama a si mesmo de “narrador”:
“Aliás, o narrador, que se revelará no momento oportuno, não disporia de meios para lançar-se nem empreendimento deste gênero se o acaso não o tivesse posto em condições de recolher um certo número de depoimentos e se a força das circunstâncias não o tivesse envolvido em tudo o que pretende relatar. É isso que o autoriza a agir como historiador. É claro que um historiador, mesmo que não passe de um amador, tem sempre documentos. O narrador desta história tem portanto os seus: em primeiro lugar, o seu testemunho; em seguida, o dos outros, já que, pelo seu papel, foi levado a recolher as confidências de todos os personagens desta crônica; e, finalmente, os textos que acabaram caindo em suas mãos. Pretende servir-se deles quando lhe parecer útil e utilizá-los como lhe aprouver.” (página 12)
Este narrador
assim constituído, vale-se realmente das anotações de Rambert, o jornalista,
mas, principalmente, das observações escritas no caderno de Tarrou.
E por que o
narrador de A Peste é instituído desta forma, um narrador confiável, tão
ao avesso daquele outro narrador famoso, nada confiável, do nosso Machado de
Assis, em Dom Casmurro?
Haverá, sim, um
motivo:
“Esta crônica chega ao fim. É tempo de o doutor Bernard Rieux confessar que é o seu autor. Mas, antes de narrar os últimos acontecimentos, ele gostaria, ao menos, de justificar a sua intervenção e fazer compreender por que quis assumir o tom de testemunha objetiva. Ao longo de toda a duração da peste, sua profissão o colocou em condições de ver a maior parte dos seus concidadãos e de recolher os seus sentimentos. Estava, pois, em boa posição para narrar o que tinha visto e ouvido.” (página 263)
Para arrematar,
apenas mais uma questão.
A partir de que
elementos poderíamos aproximar a epidemia relatada neste livro à invasão
nazista da França? Bom, em primeiro lugar, pelo contexto – o livro foi escrito
em 1947, sob fortes impressões da Segunda Guerra; o autor já ensaiara em outros
livros a sua “estética do absurdo”, um ponto de vista segundo o
qual o mundo dos humanos é absurdo.
Mas, há mais. Um trecho
que, na minha opinião “cola” fortes imagens dos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau
está transcrito abaixo:
“Um pouco depois, contudo, foi preciso procurar outro lugar, tomar outras medidas. Um decreto da prefeitura expropriou os jazigos perpétuos e todos os restos exumados foram encaminhados ao forno crematório. Em breve, tornou-se necessário conduzir os próprios mortos da peste para a cremação. Mas, então, foi preciso utilizar o antigo forno de incineração que se encontrava a leste da cidade, fora das portas. Afastou-se para mais longe o piquete da guarda e um empregado da prefeitura facilitou muito a tarefa das autoridades ao aconselhar o uso dos bondes que antigamente serviam à orla marítima e que se encontravam desativados. Para esse fim, arrumou-se o interior dos veículos retirando os assentos e desviou-se a linha para o forno, que se tornou, assim, uma estação final.” (páginas 157/158)
Não é demais
lembrar aqui, os judeus eram constantemente caricaturizados, pelos nazistas,
como ratos – raça impura e eliminável. Como acontece, também, na magnífica obra
em quadrinhos, ganhadora do Prêmio Pulitzer, Maus (Rato, em alemão).
A Peste é
um clássico. Talvez não seja uma obra para leitores iniciantes ou de leitura desatenta.
Simplesmente – e aqui vou me apropriar do bordão do resenhista do blog “Bons
Livros Para Ler”, Luiz Guilherme de Beaurepaire,
“Um livro que merece destaque na sua estante.”
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