Tradutor (do inglês): Luciano Vieira
Machado
Copyright: 2016
Edição: 1ª
Editora: TAG/Cia. das Letras
ISBN: 978-85-359-3407-6
Gênero: romance
Origem: literatura turca
Ferit Orhan Pamuk nasceu em
07/06/1952, na importante cidade de Istambul (antiga Constantinopla), Turquia.
Sua família era abastada, mas em declínio – experiência que ele descreve em
alguns dos seus livros, mais especialmente em Istambul: Memórias e a Cidade.
Passou pelo Robert College da Turquia e iniciou o curso superior de Arquitetura
na Universidade Técnica de Istambul. Entretanto, largou-o três anos após ter
começado os estudos. Graduou-se em jornalismo pelo Instituto de Jornalismo da
Universidade do mesmo local.
Em 01/03/1982, casou-se com a
historiadora Aylin Turegen. De 1985 a 1988, enquanto ela se graduava na
Universidade de Colúmbia, EUA, Pamuk conseguiu visitar aquela instituição de
ensino superior e utilizou este tempo para escrever seu romance, O Livro
Negro.
Algumas obras deste autor: A
Casa do Silêncio, O Castelo Branco, O Meu Nome É Vermelho, Neve,
Istambul, A Maleta do Meu Pai, O Livro Negro, Outras
Cores, O Museu da Inocência, O Romancista Ingênuo e O Sentimental,
Uma Sensação Estranha e este A Mulher Ruiva. Todos estes volumes
são encontrados em língua portuguesa, com edições da Companhia das Letras.
Não sou muito adepto de traduções
indiretas, isto é, tradução de uma tradução. Entretanto, reconheço, encontrar
tradutores do turco para o português não é uma tarefa fácil. Por isto, acolho
esta tradução do inglês. Ademais, hoje, as traduções contam já com um aparato
teórico que as oriente, para que não aconteçam malversações, como nas antigas
obras de Dostoiévski. Vertidas do russo para o francês, houve interferência dos tradutores nos
textos do autor, no sentido de evitar certas incoerências
do autor, e “embelezamento” dos trabalhos.
Orhan Pamuk é o autor, de longe,
mais conhecido fora da Turquia; ganhou o prestigioso Prêmio Nobel de Literatura
em 2006. Em A Mulher Ruiva, trata-se de um autor maduro, com evidente
domínio do fazer literário e já há um tempo eu desejava ler algo dele. Nada melhor
do que começar deste livro.
É a história de Cem Çelik, que é
o narrador em primeira pessoa na maior parte do romance; na última,
entretanto, apesar da manutenção da voz narrativa em primeira pessoa, muda o
narrador. Quem assume o posto é Gülcihan, a mulher ruiva do título. O livro tem características
de um Bildungsroman – romance de formação – acompanhando Cem dos 16
anos até a idade madura.
A primeira coisa que aguçou minha
curiosidade, antes mesmo de iniciar a leitura, foi o nome: por que A Mulher
Ruiva? Não sendo spoiler, a resposta pode ser publicada. Esta personagem,
importantíssima para o romance de Pamuk, causa desconforto na sociedade turca. Seja
pelo seu cabelo ruivo artificial, estranhável por ser raro entre os turcos, seja
por ela ser alguém vinculado ao teatro, cujas artistas femininas não eram bem-vistas
pela sociedade conservadora.
Cem vai para a cidade de Öngören,
onde arranja um trabalho de ajudante de cavador de poços do Mestre Mahmut. Cavar
poços fora uma atividade muito requisitada na Turquia, pois não havia qualquer
tipo de saneamento básico. O terreno era árido e encontrar água no subsolo
possibilitava valorização da terra e o empreendimento de negócios.
Mestre Mahmut torna-se quase como
um pai para o jovem. Çelik fora criado pela mãe, sem saber o paradeiro da
figura paterna. Mestre Mahmut lhe conta histórias antigas, lendas de apreensão
oral. Portanto, uma importante voz da cultura oriental – é fundamental que
você, leitor, tenha em mente que a Turquia é um país de cultura muçulmana –,
numa Istambul que se ocidentaliza febrilmente. Ele é um dos poucos cavadores
de poços que existem.
Eis como nossa história principia:
“Eu queria ser escritor. Mas depois dos acontecimentos que passarei a narrar, estudei geologia e me tornei empreiteiro. Mas os leitores não devem concluir, pelo fato de eu contar a minha história, que agora tudo é coisa do passado, que deixei tudo para trás. Quanto mais penso nela, mais fundo mergulho. Talvez vocês também sigam esse caminho, seduzidos pelo enigma de pais e filhos.” (página 11)
A última frase deste parágrafo de
abertura é o alicerce. O caminho apontado pelo narrador, o enigma de pais e
filhos, orienta A Mulher Ruiva. Duas referências literárias, nomeadas no
correr da narrativa, são basilares: Édipo Rei, clássico de Sófocles, e Shahnameh,
outro clássico da cultura da Pérsia, de autoria de Ferdowsi.
Adiantemos um pouco as páginas do
livro, a propósito destas duas obras, e transcrevamos um trecho:
“Ler reler a mesma coisa como uma prece me tranquilizava, mas a certa altura percebi que minha mente não reagia da mesma maneira a cada uma das cenas. Ambos os livros eram fundamentais para as culturas que lhes deram origem – de um lado, a Grécia ou o Ocidente, de outro, a Pérsia ou o Oriente –, mas, embora eu os relesse muitas vezes, só conseguia me preocupar com os muitos problemas que seus protagonistas viviam ou com as grandes questões éticas e existenciais que afloravam.” (página 173)
Édipo Rei é uma tragédia
grega que trata do destino implacável do jovem Édipo. Há uma profecia, segundo
a qual, ele irá matar seu próprio pai e se casará com a própria mãe; como numa
boa tragédia, tal destino se cumpre, mesmo sem a intenção do moço. Portanto,
é um caso de parricídio.
Shahnameh é uma epopeia
pré-islâmica que, entre outras coisas, trata do destino igualmente implacável
do valoroso rei-guerreiro Rostam que, por acidente (manobrado pelo destino)
acaba matando o jovem Sohrab, numa batalha. Descobre, depois, que o jovem morto
era seu filho. Portanto, é um caso de filicídio.
Vimos, então, que Édipo Rei
representa a força do Ocidente, enquanto Shahnameh liga-se à força do Oriente.
No caso específico da Turquia abordada por Orhan Pamuk, o épico oriental
(também é chamado de Épica dos Reis) representa a cultura conservadora,
que tenta se manter viva. A tragédia grega representa a força estrangeira e
avassaladora do Ocidente. E é esta uma das camadas interpretativas desta obra:
Cem Çelik, jovem, empreendedor, reveste-se do novo que chega, enquanto o Mestre
Mahmut é a energia da permanência, a voz do passado.
Tanto é verdade que Mahmut representa
a cultura conservadora, quanto isto se torna mais evidente no trecho transcrito:
“Onde existe civilização, onde existem cidades e aldeias, tem de haver poços. Não pode haver civilização sem poços, nem poços sem o cavador de poços. E não pode haver aprendiz de cavador de poços que não cumpra as ordens do mestre. Quando descobrirmos água, estaremos ricos. Entendeu?” (página 119)
Dissemos que a mulher ruiva tem
papel relevante nesta história. Seu grupo de teatro está em Öngören e,
pouco a pouco, o jovem Cem Çelik se apaixona por esta mulher enigmática para
ele. Diferente, livre, é assim que ele descreve o que acontece entre os dois:
“Naquela noite, dormi com uma mulher pela primeira vez na vida. Foi importante e foi divino. Minha percepção da vida, das mulheres e de mim mesmo – tudo mudou instantaneamente. A Mulher Ruiva me mostrou quem eu era e o que era a felicidade.
Soube que ela tinha trinta e três
anos, portanto tinha vivido quase duas vezes mais do que eu, mas poderia ser
dez vezes mais. Naquele dia, não pensei muito em diferenças de idade – ponto que
seria de grande interesse e admiração entre meus amigos da escola e da
vizinhança. Mas, mesmo enquanto vivia aqueles momentos, já sabia que nunca
faria um relato completo deles para ninguém. Mesmo agora, não vou me deter nos
detalhes, os quais, ainda que os tivesse revelado, meus amigos teriam
descartado como apenas “mentiras.” (página 110)
Cem monta uma empresa imobiliária,
com o mesmo nome do personagem morto da Shahnameh, Sohrab; tem
informações privilegiadas de amigos e adquire terrenos a serem muito
valorizados pela urbanização galopante. Constrói prédios com várias unidades
habitacionais e ganha muito dinheiro. Casa-se com Ayse. Formam um casal quase
feliz. O que lhes falta para serem plenamente felizes? Um filho. Ayse é
estéril.
Outro dado importante, a certa
altura do romance, Çelik próspero e casado, recebe uma notícia-bomba: ele tem
um filho.
“Sr. Cem,
Gostaria de poder respeitá-lo; o senhor é meu pai.
A Sohrab passou dos limites em Öngören.
Sendo seu filho, quis adverti-lo.
Escreva para mim neste endereço, que vou explicar tudo.
Não tenha medo de seu filho.
Enver.” (página 212)
Fruto de uma única relação, numa
noite dentro de sua memória, ele descobre ter tido um filho de nome Enver. Sim,
Gülcihan, a Mulher Ruiva, é a mãe do seu filho. O passado se intromete
poderosamente no presente. O destino implacável move suas teias e se completa.
“A vida imita o mito!”, disse, em tom apaixonado. “Você não concorda?”
“Concordo”, disse Ayse, educadamente.” (página 287)
Este diálogo entre Gülcihan e
Ayse, eu deixo como uma pimenta para aguçar sua vontade ler este magnífico
romance, meu caro leitor. Não posso dizer mais do que isto, estragaria sua
leitura e é exatamente o não desejado.
Ok, sei da sua disposição de ler
o livro; por isso, dou-lhe de presente outra citação. Uma interpretação
diferente da usual, do que desencadeia Édipo Rei e Shahnameh:
“Visto que ambos agiram num acesso de raiva, será que Édipo, que matou o pai, e Rostam, que matou o filho, podiam ser considerados inocentes? Os antigos gregos que assistiam à peça de Sófocles decerto acreditavam que o maior crime de Édipo não fora matar o pai, mas rebelar-se contra o destino que Deus lhe reservara – exatamente como mestre Mahmut dissera tantos anos atrás. Da mesma forma, o verdadeiro pecado de Rostam não foi o filicídio, mas gerar um filho numa noite de paixão e deixar de cumprir seus deveres paternos.” (página 168)
Desta forma, desloca-se Édipo
Rei da compulsão de matar o pai e desloca-se Shahnameh da compulsão
de matar o filho e unem-se, ambas as obras, a um único gatilho: a punição pela
rebeldia, pelo não cumprimento dos papéis atribuídos.
Sensacional este A Mulher Ruiva. Lamento muito não poder comentar a história toda. Estou em grande expectativa para continuar lendo Orhan Pamuk. A próxima obra será Neve.
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