Título em português: O Tenente Quetange
Título original
em russo: Podporútchik Kije
Autor: I. N.
Tyniánov
Tradutora:
Aurora Bernardini
Edição: s/n
Editora: Cosac
& Naify
Copyright: 2002
ISBN: 85-7503-163-5
Gênero
literário: Novela
Origem: literatura
russa
Iúri Nikoláievitch Tyniánov é muito conhecido nos meios acadêmicos da Literatura. Foi um importante componente da chamada Escola dos Formalistas Russos, também conhecida como crítica formalista. Creio que não será demais, para quem não frequente este meio, dar algumas informações pertinentes.
Os formalistas russos inauguraram
uma escola teórica. Como o nome o sugere, para eles a forma dos textos
não podia ser deixada de lado, indo contribuir poderosamente para a
interpretação textual. Não podemos reconhecer este movimento com algo coeso,
com uma proposta única.
Dois princípios orientavam estes
estudiosos: “literatura, por ela mesma, ou especialmente, as características
que a distinguem de outras atividades humanas devem constituir o objeto de
inquisição da teoria literária”; em segundo lugar, “fatos literários têm de ser
priorizados sobre os compromissos metafísicos da crítica literária (sejam
filosóficos, estéticos ou psicológicos)”.
Em suma, toda a teorização
literária deve emergir dos próprios objetos de estudo, a saber, a literatura.
Um formalista russo, portanto, olha para o texto a sua frente e tira dele as
implicações teóricas como contributo para o estudo da literatura.
Tyniánov nasceu em 06/10/1894, na
cidade de Rêzekne, e faleceu em 20/12/1943, em Moscou. Formou-se pela Universidade
de Petrograd, em 1918, e publicou seu primeiro livro, junto com outro célebre
formalista, Roman Jakobson, em 1921.
O autor publicou, além de estudos
teóricos, romances históricos, como por exemplo, La jeunesse de Pouchkine
– A juventude de Púchkin. Este O Tenente Quetange é de 1928,
inserindo-se esta mesma novela, numa das geniais categorizações dos formalistas
russos, como é o estranhamento. Aqui, devo abrir outra explicação para
este termo.
Por estranhamento
compreende-se o efeito criado na obra literária para nos distanciar do modo
comum de recepcionarmos o texto e a própria arte, pelo efeito de um
deslocamento, produzindo em nós a sensação do estranho. Não sei se ficou claro,
mas Clarice Lispector é uma escritora brasileira cuja escrita pode nos dar um
bom exemplo desta categoria. Ao lermos seus textos, muitas vezes, temos de
lê-los outra e outra vez, porque não conseguimos entender seus escritos. A
Metamorfose, de Kafka, é outro exemplo: um homem amanhecer transformado em
um inseto?! O significado deste fato não pode ser apanhado na superfície da
nossa construção de sentido. Teremos de executar um esforço e ir buscar sentido
nas camadas mais profundas do que lemos.
Isto posto, vamos ao livro,
propriamente. Assim se inicia a novela:
“O Imperador Pável estava cochilando diante de uma janela aberta. Depois do almoço, enquanto a comida travava uma demorada luta com seu corpo, era proibido qualquer tipo de perturbação. Ele cochilava sentado numa poltrona de espaldar alto, cercada atrás e nas laterais por um biombo de vidro. Pável Petróvitch sonhava sua costumeira sesta vespertina.” (página 25)
Pável I (ou Paulo I) – Czar da
Rússia – é uma pessoa real, histórica. Sobre ele, dividem-se as opiniões sobre
suas inconstâncias: ou ele era um deficiente mental, não tinha percepção do que
fazia, ou era um inconsequente, tendo consciência, mas não se importando com as
consequências dos seus atos. De qualquer forma, um problema para a então Rússia
czarista.
O enredo deste O Tenente
Quetange é mínimo, mas genial: baseia-se num erro de redação oficial. É que
certo escrivão militar erra ao transcrever o teor de uma ordem-do-dia. Melhor
deixar o narrador de Tyniánov nos contar todo o imbróglio:
“Na primeira cópia havia cometido dois erros: o Tenente Siniukháiev era dado como morto no lugar do finado Major Sokolov, cujo nome aparecia imediatamente antes, e, além disso, havia incorrido, sem querer, no seguinte absurdo: em vez de escrever a propósito de certa promoção, “a nomeação para Tenentes que tange a Stíven, Rybin e Azantchéiev foi determinada”, ele escrevera: “a nomeação para Tenentes Quetange, Stíven, Rybin e Azatchéiev foi determinada...” Enquanto escrevia a palavra “Tenentes” tinha entrado um oficial e ele se levantou imediatamente para bater continência, parando justamente aí, depois tornou a sentar-se para a ordem-do-dia, confundiu-se e escreveu: “Tenente Quetange”. (página 27/28)
Estes dois erros são cruciais
para a narrativa de O Tenente Quetange. De um lado, um vivo é
considerado morto; de outro, um ser inexistente é considerado vivo, ambos por
um simples ato normativo.
O sarcasmo do narrador de
Tyniánov reveste seu texto, seus personagens e os fatos a que alude. Quando o
ex-Tenente Siniukháiev, destituído do seu cargo, pois era considerado morto
pela ordem-do-dia, toma consciência do seu novo status, sua reação é bizarra:
“Ao ouvir a ordem-do-dia, ele a princípio ficou parado no lugar, como se não tivesse ouvido bem. Pôs-se a remoer as palavras. Daí, não teve mais dúvidas. Referiam-se a ele. E quando sua fileira moveu-se, ele começou a duvidar se estava mesmo vivo.” (página 40)
Ordens-do-dia são ordens, não se
discutem. Numa aparente lógica, se não se pode duvidar de ordens superiores,
então o fato estava posto, irremediável, concreto: Siniukháiev deveria
considerar-se morto.
Mas, sigamos. Aquele bendito
documento tinha parado, mesmo com o erro crasso nas informações, na mesa do
Imperador Pável I, que o assina, incontinenti. A partir daquele momento, com o
reforço de uma assinatura do próprio Czar, o Tenente Quetange passa a existir
na narrativa.
Antes desta trama, alguém não
identificado havia gritado “Socorro!” à janela do Imperador. Ele move seus
seguranças para identificar quem o houvera assustado. Apertados, os homens de
Pável jogam a culpa naquele Tenente Quetange, cujo paradeiro e informações
pessoais ninguém sabia.
Um ato do Czar manda dar
chibatadas no infeliz tenente e o manda para a penitenciária na Sibéria por
desacato imperial. Simplesmente, os soldados de Sua Majestade “cumprem” as
ordens, participando de um teatro do absurdo; “dão as chicotadas prescritas” e
o “conduzem” amarrado à Sibéria. Desta
forma, o nosso incontornável tenente ganha uma biografia e consistência.
Toda esta situação bizarra –
efeito de estranhamento – posto no texto, nos faz buscar o sentido na camada
mais profunda, pois na leitura superficial, não se sustenta. Como posso
entender que uma situação assim se propague, não apareça ninguém para denunciar
o erro, ninguém para desdizer a existência de tal figura, alguém para comprovar
que tal morto está vivinho da silva?
A história passa a fazer sentido,
se lida na chave da crítica, do sarcasmo ao estabelecido. E, como no famoso A
Revolução dos Bichos, de George Orwell, sob as camadas do alegórico está o
texto entremostrado.
Fico impressionado ao saber que
esta narrativa circulou livremente sob a ditadura de Stálin, nas terras russas.
A crítica a Pável I e sua corte subserviente, afinal, facilmente se estende a
Stálin e seus comandados subservientes. É, portanto, um texto altamente
subversivo, um deboche sobre o poder exercido por um homem só, sobre sobre
pessoas subservientes, burocráticas e cheias de maneirismos franceses para
arrotar uma cultura que não têm.
Na minha opinião, isto se dá
exatamente pela presença do estranhamento, a categoria anotada pelos
formalistas russos. Este já é um texto alegórico, e a característica apontada o
deixa ainda mais estranho na leitura superficial. Agora, pensem comigo: na
pressa de julgar uma montanha de textos como apropriados ou não ao consumo
popular, este O Tenente Quetange teria passado pela censura stalinista.
Coisa semelhante se deu aqui, no
Brasil, à época da ditadura militar: os compositores de várias músicas apelaram
para o significado posto em camadas mais profundas de suas letras para passarem
o recado.
Esta postagem está sendo
publicada após uma releitura. Entre a primeira e a segunda leitura, alguns
meses se passaram. E a nova degustação se fez muita mais prazerosa.
É um volume pequeno, de apenas 96
páginas, com um quase-prefácio de Bóris Schnaiderman, de onde tirei vários
dados de contextualização. É uma edição – da qual me declaro orgulhoso
proprietário – da saudosa Editora Cosac & Naify.
Encerrando esta resenha, não
poderia deixar de abordar um aspecto da tradução de Aurora Bernardini,
apontada, inclusive, por Bóris Schnaiderman. Nos outros países em que houve
esta obra vertida para a língua nacional, optou-se por traduzir o nome da obra:
O Tenente Kije. Isto porque, em russo, o termo que estabelece a confusão
na ordem-do-dia é precisamente kije – entendido como nome do militar.
A tradutora da língua portuguesa
foi além, numa criativa adaptação; ao invés de manter aquele Kije, optou
por adaptá-lo para Quetange, criando um possível sobrenome, e, ao mesmo tempo,
unindo as duas palavras que e tange (do verbo tanger, tocar,
fazer referência). Sorte nossa ter uma tradutora com tal sensibilidade
linguística.
Nenhum comentário:
Postar um comentário