Autor:
Richard Flanagan
Editora:
Globo/Biblioteca Azul
Tradução:
Celso Mauro Paciornik/Augusto Pacheco Calil
1ª Edição:
2015; 1ª reimpressão: 2016
ISBN:
978-85-250-5917-8
Prêmio Man
Booker Prize
430 páginas
TAG –
Experiências Literárias
Richard Flanagan é um escritor da Tasmânia, Austrália, nascido em
1961. Muito prestigiado – ele ganhou o prêmio literário Man Booker Prize de 2014
– é autor de seis livros. Tem trabalhos traduzidos para vinte e seis países, o que atesta bem seu sucesso
de crítica e de público. Aqui, no Brasil, também podemos encontrar O livro dos peixes de Gould, de sua
autoria, ganhador do prêmio Commonwealth Writer’s Prize. O pai do nosso
escritor foi um sobrevivente da construção da estrada de ferro Thai-Burma, mais
conhecida como “Ferrovia da Morte”. Flanagan usou parte das memórias paternas
para compor a história de O caminho
estreito para os confins do norte, que, aparentemente, vai falar de guerra,
somente.
Nada mais enganoso, porém. Esse é um texto excelente de um autor
talentoso. Não é fundamentalmente uma história sobre qualquer episódio da
Segunda Guerra Mundial, mas um mergulho na condição humana e em suas relações
de cultura e de poder.
Richard Flanagan mistura uma poesia seca com uma prosa objetiva, sem
muitos floreios, o que já transparece nas páginas 29/30, em um diálogo com Lynette
Maison:
“Serei um monstro carniceiro, ele sussurrou na concha coralina da orelha dela, um órgão das mulheres que ele considerava indescritivelmente comovente com seu vórtice macio, espiralado, e que sempre lhe parecera um convite à aventura. E beijou com extrema suavidade o lobo da orelha da moça.
Você devia dizer o que pensa com suas próprias palavras, disse Lynette Maison. Palavras de Dorrigo Evans.
Ela tinha cinquenta e dois anos, estava além da idade de procriar, mas não de cometer loucuras, e se desprezava pelo domínio que o velho tinha sobre ela. Sabia que ele tinha não somente uma esposa, mas outra mulher. E, suspeitava, uma ou duas outras. Faltava-lhe até a glória sensual de ser sua única amante. [...]
Com ele, ela sentia a segurança inexpugnável de ser amada. Mas sabia, contudo, que uma parte dele – a parte que ela mais desejava, a parte que era luz nele – continuava elusiva e desconhecida. Em seus sonhos Dorrigo estava sempre levitando algumas polegadas acima dela. Em mais um dia ela se entregara à raiva, acusações, ameaças e frieza no trato com ele. Tarde da noite, porém, deitada ao seu lado, ela não desejava mais ninguém.”
Dorrigo Evans é um cirurgião militar e, junto com vários homens, é
capturado e levado para o Japão, onde deverão atuar – esses australianos – na construção
quase impossível da Ferrovia da Morte, ou Estrada de Ferro Thai-Burma. Centenas
de soldados terão, capitaneados por Dorrigo, de patente mais alta, de construir
tal via férrea vencendo uma intrincada floresta, por um caminho acidentado e
difícil.
Instala-se um laboratório de horrores, sob a atuação de homens como
Tomokawa, Fukuhara, Nakamura. Não há condições mínimas de preservação de saúde,
de alimentação. Os homens começam a morrer como moscas, vítimas de tinha (um tipo de micose também
conhecido como pé-de-atleta), carrapatos, exaustão física. Um pequeno trecho, extraído da página 124
pode nos dar ideia de como era infernal aquele ambiente:
“Fiquei de pé atrás do prisioneiro, procurei meu equilíbrio, examinei cuidadosamente o seu pescoço – descarnado e velho com sujeira nas pregas; jamais esqueci aquele pescoço. Mal a coisa começava, ela já terminava, e eu fiquei pensando por que havia pequenos glóbulos de gordura na minha espada que não sairiam quando eu a esfregasse com o papel que eles me entregaram. Isso era tudo que eu pensava: de onde vinha aquela gordura num pescoço tão esquelético de um homem tão magricela. O pescoço dele estava sujo, cinzento, como terra onde você urina. Mas depois que eu o abri com o corte, as cores eram tão vívidas, tão vivas – o vermelho do seu sangue, o branco do seu osso, o rosado da sua carne, o amarelo daquela gordura. Vida! Essas cores eram a própria vida.”
O caminho estreito para os
confins do norte não é uma leitura fácil. E isso em grande parte pela sua
estrutura narrativa. O enredo é do tipo não linear, isto é, as cenas e os fatos
narrados não seguem uma sequência cronológica, mas vão ao presente e retornam
ao passado. Não existe qualquer marcação para esses deslocamentos temporais;
não há títulos nos capítulos que possam dar uma pista ao leitor. Então, somente
na leitura quem lê o livro pode estabelecer em qual faixa de tempo aquilo que
se narra acontece.
Uma das propostas mais interessantes do livro, em termos de
ponto-de-vista do narrador, é a elaboração de uma visão relativista a respeito
dos japoneses. Explico-me: normalmente, em histórias passadas em guerras, o
inimigo é geralmente retratado como o vilão, o monstro sem alma nem
sentimentos. Flanagan, pelo contrário, instaura seu narrador que vê a frieza
com a qual os nipônicos tratam seus prisioneiros, levando-os à morte pela
exaustão física ou por doenças variadas como uma questão fundamental para os
japoneses.
Criados numa cultura de absoluta submissão às ordens do seu imperador,
a ferrovia simplesmente tem de ser
construída, porque assim lhes foi ordenado. É a vontade emanada de um poder
absoluto – inclusive, com poder sobre suas próprias precárias vidas. As falhas
têm de ser punidas porque exatamente os nativos estão imersos nessa cultura. Não
é demais lembrar que o fracasso, pelo menos no Japão daquela época, era visto
como uma desonra punível com o suicídio ritualístico. Dentro dessa visão, por
exemplo, a atuação dos kamikazes – pilotos-suicidas – perdiam suas vidas
jogando seus aviões sobre os navios inimigos simplesmente estavam cumprindo
ordens indiscutíveis.
Dorrigo Evans é um ser extremamente deslocado, no passado ou no
presente. Não gosta de admitir, mas sente falta da guerra, onde – pelo menos em
sua visão – fazia algo de útil, tentava salvar a vida de seus homens em
condições completamente adversas. Por essa disposição, Dorrigo foi apelidado
por seus comandados como “O Amigão”. Terminada a guerra, Evans se casa com
Ella, mas se lembra o tempo todo de Amy.
Dessa forma, concluo eu em minha modesta opinião, o tema que perpassa
todo o livro é o da perda e seus desdobramentos – principalmente a solidão. Amy
é solitária, Evans é solitário, Ella é solitária. É o “solitário andar por
entre as gentes”.
O caminho estreito para os
confins do norte é daquelas leituras positivamente perturbadoras. Romance que
– pelo menos, para mim – não se lê de uma sentada. Puxa reflexões, constrói
novas interpretações sobre a convencionada realidade.
Pelo magnífico texto de Richard Flanagan perpassam haicais do poeta
Bashô e Issa. Haicais são poemas característicos da cultura japonesa,
caracterizados (geralmente) por conterem três versos, com esquema de sílabas 6-7-5.
Bashô é considerado o maior “haicaísta” japonês. Essa forma poética é
extremamente difícil de se elaborar, apresentando forte síntese de ideias.
Referências a livros vão pontuar a narrativa de Richard, informação com
que a TAG – Experiências Literárias – teve a preocupação de nos brindar na
revista anexa ao livro, ressaltando-nos tal importância, por meio de um texto e
da indicação do livro resenhado anteriormente aqui nesse blog, Quando os livros foram à guerra.
O título – O caminho estreito
para os confins do norte – é uma homenagem à obra de Bashô, de mesmo título
– mas, sobretudo, uma apropriação extremamente significativa dentro da
contextualização do livro do tasmaniano.
FLANAGAN, Richard. O caminho
estreito para os confins do norte. 1ª Edição. Editora Globo S. A. São
Paulo, SP: 2015
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