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quarta-feira, 31 de julho de 2024

Resenha nº 226 - Uma Casa No Fim do Mundo, de Michael Cunningham




Título original: A Home At The End Of The World

Autor: Michael Cunningham

Tradutora: Isa Mara Lando

Editora: Cia das Letras/TAG

Edição: 2ª

Copyright: 1990

ISBN: 978-85-359-3299-7

Gênero Literário: Romance

Origem: Literatura Americana

 

Michael Cunningham nasceu na cidade de Cincinnati, no estado americano de Ohio, mas cresceu em Pasadena, na Califórnia. Cursou Literatura Inglesa na Universidade de Stanford, graduando-se. Recebeu, mais tarde, o prêmio de Master of Fine Arts. Enquanto estudava, teve alguns trabalhos publicados nos periódicos Atlantic Monthly e Paris Review.

Aqui, no Brasil, foram publicados Uma casa no fim do mundo (1990), Laços de sangue (1995), As horas (1998), Dias exemplares (2005), Ao anoitecer (2010) e A rainha da neve (2015). As horas é romance que o notabilizou como autor.

Uma casa no fim do mundo traz uma história envolvendo um triângulo amoroso entre Jonathan, Bobby e Clare. Na verdade, tal triângulo é um pouco diferente do habitual, pois se, de um lado, Bobby e Clare formam realmente um casal, Jonathan se une aos dois no campo da amizade – uma espécie de amor sem sexo.

Uma terceira personagem vem compor esta história, Alice. Ela é mãe de Jonathan. O livro me pegou pela complexidade destes personagens, pela escrita extremamente bem-cuidada, de cunho psicológico do autor e pela sua habilidade em manejar quatro vozes, quatro narradores diferentes – cada um dos componentes do triângulo central e Alice. Algo que é muito difícil de se fazer, sem se perder a coerência da narrativa – o que demonstra a habilidade de Cunningham.

Ao ler, vou fazendo anotações em post-its; este é, de todos os 226 livros resenhados neste blogue, o que mais anotações minhas teve. Como gosto, apresento-lhe o parágrafo inicial, atribuído a Bobby:

“Certa vez meu pai comprou um conversível. Não me pergunte. Eu tinha cinco anos. Ele o comprou e veio dirigindo até em casa com tanta naturalidade como se estivesse trazendo um balde de cascalho da estrada. Imagine a surpresa de minha mãe. Ela guardava elásticos nas maçanetas das portas. Lavava os sacos plásticos usados e os pendurava no varal para secar, uma fileira de mesquinhas águas-vivas domésticas flutuando ao sol. Imagine ela com uma escova na mão tentando tirar o cheiro de queijo de um saco plástico que já servira pela terceira ou quarta vez quando meu pai aparece com um Chevrolet conversível – usado, mas mesmo assim – uma paisagem móvel de metal, para-choques de cromo e algo que parecia um quilômetro de prateada carne de automóvel. Ele vira o carro estacionado no centro da cidade com uma placa de Vende-se e decidira ser o tipo de homem que compra um carro por impulso. Quando ele para o carro a gente vê que aquela alegria maníaca já começou a evaporar. O carro já é um constrangimento. Ele para na entrada da casa com um sorriso congelado que combina com a grade do radiador do Chevrolet.” (página 13)

O parágrafo transcrito é grande, eu sei. Transcrevi-o por alguns elementos que já aparecem de cara: o sarcasmo (aproximação do sorriso congelado com a grade cromada do radiador); a caracterização de uma família pobre (elementos como saco plástico utilizado pela terceira ou quarta vez); um pai bastante instável (alegria maníaca, o carro já é um constrangimento).

Bobby e o irmão Carlton vivem sob a influência do famoso festival de música de Woodstock; a filosofia hippie perpassa suas vidas. São inúmeras as referências a músicas da época (Jimmi Hendrix, por exemplo), ouvidas insistentemente pelos personagens Bobby, Clare e Jonathan. As referências ao uso de drogas, notadamente, o LSD (ácido lisérgico), são frequentes:

“Tomamos um ácido aquela manhã no desjejum, com o suco de frutas. Ou melhor, Carlton tomou um ácido e eu, devido a minha pouca idade, tive permissão para tomar meio. Esse ácido se chama “para-brisa”. Está para a clareza de visão assim como o Vick Vaporub para descongestionar o nariz. Nossos pais estão trabalhando, ganhando o pão de cada dia. Saímos lá fora no frio para que a casa, quando voltarmos, nos choques com seu calor e retidão. Carlton acredita em choques.” (página 33)

Este irmão faleceu, num acidente doméstico: ele vem correndo, bate numa porta de vidro e um dos cacos corta sua jugular. Carlton morre na frente de todos, exangue. Não há como ter um atendimento médico rápido numa cidadezinha do interior:

“Quando a ambulância chega, ele [Carlton] já se foi. Vimo sua vida se escoando. Quando seu rosto fica todo lasso minha mãe solta um uivo. Uma parte dela voa uivando pela casa toda, e ali continuará a uivar em fúria para todo o sempre. Sinto minha mãe passar através de mim quando sai. Ela cobre o corpo de Carlton com o seu.” (página 50)

A família de Jonathan é diferente. O pai, Ned, é dono de um cinema claudicante, onde ele se delicia com os filmes, em sessões quase vazias. Mesmo assim, o filho o admira: é uma figura marcante, era “um homem de grande dignidade física”.

A relação da mãe com o pai é vista pelo menino com agudeza:

“Minha mãe se submetia às carícias dele, mas não tinha o menor prazer nelas. Eu via isso em seu rosto. Quando meu pai estava em casa, ela ficava com aquele mesmo olhar cauteloso de nossas inspeções de rua. A presença dele a deixava nervosa, como se uma parte do mundo exterior tivesse se enfiado em casa à força.” (página 20)

Jonathan é gay e desde cedo demonstrará esta característica:

“Em pé na frente dele, pequeno, segurando a boneca envolta em fraldas, senti minha primeira humilhação. Reconheci em mim mesmo uma profunda inadequação, uma tolice. Claro que eu sabia que a boneca era só um brinquedo, e um brinquedo ligeiramente constrangedor.” (página 22)

Esta é uma família com certas posses, mas disfuncional. Como vimos, Alice apenas suporta Ned; não tem amor por ele. Formam um casamento em que o desgaste da relação já é visível. E para piorar, Alice engravida pela segunda vez, contra a sua vontade:

“Papai?”

“Sim?”

“A mamãe não quer ter bebê.”

“Claro que quer.”

“Não quer. Ela me falou.”

A criança não nasce com vida. O cordão umbilical se enrola no pescoço do bebê e o enforca. Quase todo o útero da mãe tem de ser retirado, tornando impossível qualquer gestação futura.

Quando Jonathan se muda para Nova York, depois de algum tempo, Bobby deixa Cleveland e se junta ao amigo de infância. Acontece que ele mora junto com Clare num apartamento. Pouco a pouco, Bobby se envolve com ela, ou melhor, ela se envolve com ele e formam um casal.

Quando Clare nasce a filha de Bobby e Clare, Jonathan torna-se um pai extremamente presente. É uma família poliamorosa, como se diz modernamente. Entretanto, não é o enredo o que mais importa neste excepcional romance. Aliás, este livro é mais um argumento para reconhecermos que temas existem em quantidade limitada. O que importa é o “como você conta a história”, como nos diz Noemi Jaffe, em seu ótimo livro Escrita Em Movimento (resenha nº 224, neste blogue).

O que torna este livro tão importante para a literatura é a profundidade psicológica destes quatro personagens-narradores. Vejamos uma das várias e várias passagens de análise deles:

“Bobby era capaz de retira-se da superfície da sua própria pele, e quando o fazia a gente desconfiava de que se o espetasse a agulha iria penetrar vários centímetros antes de ele gritar. Nos períodos vazios ele não dizia ou fazia nada de diferente. Sua fala e suas ações continuavam funcionando.” (página 291)

Ou esta passagem, com observação sobre Jonathan, feita por Alice:

“Agora eu o amava de uma maneira menos terrível, a partir de um reserva mais profunda de calma, e enxergava melhor suas particularidades humanas. Entre os passageiros que desembarcavam no aeroporto ele era pálido e belo, mas parecia inacabado; à medida que amadurecia eu começava a ver que ele corria o risco de envelhecer sem adquirir uma aparência de repouso. Infantil, sem marcas, com a beleza equina de um garoto, ia adquirindo aquele ar perenemente fresco e inexperiente que às vezes faz um velho parecer uma criança antiga em estado de choque.” (página 322)

Uma casa no fim do mundo não é um romance fácil de ler, se o leitor não estiver acostumado com o ritmo mais lento das análises psicológicas dos personagens. E particularmente neste livro elas são intensas. Michael Cunninghan desce a fundo.

A estrutura narrativa escolhida pelo autor contribui ainda mais para a excelência do que se propõe. A história, sendo conduzida pelas análises oniscientes de cada narrador, sobre si mesmo e sobre os outros narradores nos surpreendem – a nós, leitores – com uma agudeza dolorosa.

Encontramos nestes personagens os índices de nossa própria complexidade, da complexidade constitutiva das visões de mundo que cada um de nós temos. Platão criou a genial metáfora do Mito da Caverna. No mundo atual, poucos têm noção da complexidade que nos são próprias, como seres portadores de uma história e de uma cultura.

Mais que pelas redes sociais – verdadeiras cavernas onde se reflete a realidade manipulada – somo impactados pela filosofia do instantâneo, da reprodução automática do discurso alheio.

Num ambiente assim é de se esperar que a depressão e a ansiedade se constituam no mal do nosso século. E essa incapacidade de acolher o diferente facilita a prática violenta dos haters. É por isso que a leitura de um livro como este Uma casa no fim do mundo é tão importante.

O mundo não é claro, de um lado, e escuro, de outro. Nada é tão simples assim. Somos seres portadores de zonas de sombras. Livro recomendado ao leitor que goste de personagens densos e que gostem de serem surpreendidos com aspectos de nossa psicologia poucas vezes acessados.

  

sábado, 6 de julho de 2024

Resenha nº 225 - O Vício dos Livros, de Afonso Cruz

 




Título: O Vício dos Livros

Autor: Afonso Cruz

Editora: Dublinense

Edição: N/C

Copyright: 2021

ISBN: 978-65-5553-123-7

Origem: Portugal

Gênero Literário: Crônicas

 

Afonso Cruz é um escritor português, nascido em 1971, na Figueira da Foz. É também ilustrador (este pequeno livro foi ilustrado por ele), músico e cineasta. Publicou mais de trinta livros, entre romances, ensaios, teatro, não ficção, novelas juvenis e, de quebra, uma “enciclopédia inventada”. Afonso colabora regularmente para jornais e revistas. Recebeu vários prêmios, e seus direitos autorais estão vendidos para mais de vinte idiomas.

Aqui, no Brasil, tem publicados, além deste O Vício dos Livros, Vamos Comprar Um Poeta, Princípio de Karenina, Para Onde Vão Os Guarda-chuvas, O Pintor Debaixo do Lava-loiças, Nem Todas As Baleias Voam, A Boneca de Kokoshka, Jesus Cristo Bebia Cerveja, Flores, A Contradição Humana...

O Vício dos Livros, em minhas mãos, é um pequeno volume. Com noventa e duas páginas, lê-se de uma sentada. Textos deliciosos para quem gosta de ler sobre livros e seus mistérios. O texto que abre o volume já é provocativo: A primeira vez que conheci um esquifobético.

Afonso conta que estava em Olinda, Brasil, sentado num banco, com um livro na mão. Um sujeito acercou-se dele, dizendo ser um esquifobético:

“Falava de seu corpo como um filósofo platónico, com um certo desdém pela matéria: chamava-lhe neve. Apontava para si e dizia “esta neve”, querendo com isso salientar o caráter transitório do corpo. Quando reparou que segurava um livro, quis ver a capa e, tirando-mo das mãos, pegou uma caneta e escreveu qualquer coisa ilegível. Perguntei-lhe o que havia escrito e ele, em voz alta, ditou a tradução da algaravia enquanto eu a anotava na página seguinte: “Tem certo tipo de pessoa que devia ter nascido daqui a cem ou duzentos anos, quando o pessoal tivesse uma criatividade mais rápida e mais bonita. Porque o coração sente e o olho conta. Life after death. Porque o original nunca se desoriginaliza. Porque nunca foi desoriginalizado.  Se algum dia ele for desoriginalizado, nunca vai existir o original. Seja louco contra a loucura. Lembre-se que foi aqui que você conheceu um esquifobético”. (página 10)

Sob o título estranho de A poesia prende poetas, acidenta carros e afunda barcos, Afonso Cruz nos fala de Dionísio I, tirano de Siracusa. Ele reuniu poetas renomados para ajudá-lo na escrita de poesia:

“Um dos casos mais curiosos da vida de Dionísio, também contado por Diodoro Sículo, terá sido quando competiu nas Olimpíadas, levando vários carros com quatro cavalos cada (bastante mais velozes do que os dos adversários) e uma caterva dos melhores atores para lerem os seus poemas e, assim, glorificá-lo no triunfo. Os versos eram tão maus que alguns carros chocaram entre si e outros despistaram-se. Do mesmo modo, o barco que levava a sua delegação olímpica de volta à Sicília naufragou perto de Tarento, em Itália, uma vez mais devido à paupérrima qualidade da poesia do tirano (que forçou a sua leitura durante a viagem), ou assim atestaram os marinheiros que sobreviveram.” (página 20)

O texto de Gatos é ótimo. O autor relaciona os escritores aos gatos, principalmente quando aqueles elaboram seus personagens:

“Se temos um personagem que tem um desejo e simplesmente o concretiza, não temos nada. Para contarmos uma história, temos de dar voltas necessárias até chegarmos ao destino, não podemos chegar lá diretamente, sem tensão, dificuldades, gozo, embelezamentos, obstáculos. Temos de escrever como os gatos caminham quando os chamamos. Não sei se os gatos gostam de escritores, mas são duas espécies claramente aparentadas: por trabalharem sós, pela contemplação e observação e curiosidade. Quando um escritor levanta a cabeça do teclado para meditar sobre uma personagem, quando para para tentar encontrar a palavra justa, quando olha pela janela para tentar desfazer um nó de enredo, tem um comportamento felino. Um gato poderá encontrar, nesse tipo de gestos, uma espécie de identificação.” (página 66)

Depois deste insight, absolutamente afonsino, eu – que não amo os gatos – devo reconsiderar minhas disposições afetivas em relação aos felinos.

E assim, seguem estes textos que bem podem funcionar como valorização do texto bem escrito, valorização da nossa possível biblioteca domiciliar (tem-se cada vez menos bibliotecas domiciliares, não?) ou, até mesmo, uma pausa entre um livro e outro.

Só para fechar esta breve, mas recomendada resenha, trago As histórias que se estragam:

“Disse Antonio Basanta, no livro Leer contra la nada: “A primeira biblioteca que conheci na minha vida foi a minha mãe (...) Cada noite, antes de dormir, visitávamos as estantes da sua memória”. Ouvi Juan Villoro dizer que as histórias não deviam começar por “era uma vez”, mas por “era uma voz”. E acrescentou: “As histórias são muito diferentes se contadas pela voz de que nos ama”. É a ouvir que damos os primeiros passos para a construção da nossa própria essência, através da partilha de histórias.” (página 87)