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Título
original: A Home At The End Of The World Autor:
Michael Cunningham Tradutora:
Isa Mara Lando Editora:
Cia das Letras/TAG Edição:
2ª Copyright:
1990 ISBN:
978-85-359-3299-7 Gênero
Literário: Romance Origem:
Literatura Americana |
Michael Cunningham nasceu na cidade de
Cincinnati, no estado americano de Ohio, mas cresceu em Pasadena, na
Califórnia. Cursou Literatura Inglesa na Universidade de Stanford,
graduando-se. Recebeu, mais tarde, o prêmio de Master of Fine Arts. Enquanto
estudava, teve alguns trabalhos publicados nos periódicos Atlantic Monthly
e Paris Review.
Aqui, no Brasil,
foram publicados Uma casa no fim do mundo (1990), Laços de sangue
(1995), As horas (1998), Dias exemplares (2005), Ao anoitecer
(2010) e A rainha da neve (2015). As horas é romance que o
notabilizou como autor.
Uma casa no
fim do mundo traz uma história envolvendo um triângulo amoroso entre
Jonathan, Bobby e Clare. Na verdade, tal triângulo é um pouco diferente do
habitual, pois se, de um lado, Bobby e Clare formam realmente um casal,
Jonathan se une aos dois no campo da amizade – uma espécie de amor sem sexo.
Uma terceira
personagem vem compor esta história, Alice. Ela é mãe de Jonathan. O livro me
pegou pela complexidade destes personagens, pela escrita extremamente
bem-cuidada, de cunho psicológico do autor e pela sua habilidade em manejar
quatro vozes, quatro narradores diferentes – cada um dos componentes do
triângulo central e Alice. Algo que é muito difícil de se fazer, sem se perder
a coerência da narrativa – o que demonstra a habilidade de Cunningham.
Ao ler, vou
fazendo anotações em post-its; este é, de todos os 226 livros resenhados neste
blogue, o que mais anotações minhas teve. Como gosto, apresento-lhe o parágrafo
inicial, atribuído a Bobby:
“Certa vez meu pai comprou um conversível. Não me pergunte. Eu tinha cinco anos. Ele o comprou e veio dirigindo até em casa com tanta naturalidade como se estivesse trazendo um balde de cascalho da estrada. Imagine a surpresa de minha mãe. Ela guardava elásticos nas maçanetas das portas. Lavava os sacos plásticos usados e os pendurava no varal para secar, uma fileira de mesquinhas águas-vivas domésticas flutuando ao sol. Imagine ela com uma escova na mão tentando tirar o cheiro de queijo de um saco plástico que já servira pela terceira ou quarta vez quando meu pai aparece com um Chevrolet conversível – usado, mas mesmo assim – uma paisagem móvel de metal, para-choques de cromo e algo que parecia um quilômetro de prateada carne de automóvel. Ele vira o carro estacionado no centro da cidade com uma placa de Vende-se e decidira ser o tipo de homem que compra um carro por impulso. Quando ele para o carro a gente vê que aquela alegria maníaca já começou a evaporar. O carro já é um constrangimento. Ele para na entrada da casa com um sorriso congelado que combina com a grade do radiador do Chevrolet.” (página 13)
O parágrafo
transcrito é grande, eu sei. Transcrevi-o por alguns elementos que já aparecem
de cara: o sarcasmo (aproximação do sorriso congelado com a grade cromada do
radiador); a caracterização de uma família pobre (elementos como saco plástico
utilizado pela terceira ou quarta vez); um pai bastante instável (alegria
maníaca, o carro já é um constrangimento).
Bobby e o irmão
Carlton vivem sob a influência do famoso festival de música de Woodstock; a
filosofia hippie perpassa suas vidas. São inúmeras as referências a músicas da
época (Jimmi Hendrix, por exemplo), ouvidas insistentemente pelos personagens
Bobby, Clare e Jonathan. As referências ao uso de drogas, notadamente, o LSD
(ácido lisérgico), são frequentes:
“Tomamos um ácido aquela manhã no desjejum, com o suco de frutas. Ou melhor, Carlton tomou um ácido e eu, devido a minha pouca idade, tive permissão para tomar meio. Esse ácido se chama “para-brisa”. Está para a clareza de visão assim como o Vick Vaporub para descongestionar o nariz. Nossos pais estão trabalhando, ganhando o pão de cada dia. Saímos lá fora no frio para que a casa, quando voltarmos, nos choques com seu calor e retidão. Carlton acredita em choques.” (página 33)
Este irmão faleceu,
num acidente doméstico: ele vem correndo, bate numa porta de vidro e um dos
cacos corta sua jugular. Carlton morre na frente de todos, exangue. Não há como
ter um atendimento médico rápido numa cidadezinha do interior:
“Quando a ambulância chega, ele [Carlton] já se foi. Vimo sua vida se escoando. Quando seu rosto fica todo lasso minha mãe solta um uivo. Uma parte dela voa uivando pela casa toda, e ali continuará a uivar em fúria para todo o sempre. Sinto minha mãe passar através de mim quando sai. Ela cobre o corpo de Carlton com o seu.” (página 50)
A família de Jonathan
é diferente. O pai, Ned, é dono de um cinema claudicante, onde ele se delicia
com os filmes, em sessões quase vazias. Mesmo assim, o filho o admira: é uma
figura marcante, era “um homem de grande dignidade física”.
A relação da mãe
com o pai é vista pelo menino com agudeza:
“Minha mãe se submetia às carícias dele, mas não tinha o menor prazer nelas. Eu via isso em seu rosto. Quando meu pai estava em casa, ela ficava com aquele mesmo olhar cauteloso de nossas inspeções de rua. A presença dele a deixava nervosa, como se uma parte do mundo exterior tivesse se enfiado em casa à força.” (página 20)
Jonathan é gay e
desde cedo demonstrará esta característica:
“Em pé na frente dele, pequeno, segurando a boneca envolta em fraldas, senti minha primeira humilhação. Reconheci em mim mesmo uma profunda inadequação, uma tolice. Claro que eu sabia que a boneca era só um brinquedo, e um brinquedo ligeiramente constrangedor.” (página 22)
Esta é uma
família com certas posses, mas disfuncional. Como vimos, Alice apenas suporta
Ned; não tem amor por ele. Formam um casamento em que o desgaste da relação já
é visível. E para piorar, Alice engravida pela segunda vez, contra a sua
vontade:
“Papai?”
“Sim?”
“A mamãe não quer ter bebê.”
“Claro que quer.”
“Não quer. Ela me falou.”
A criança não
nasce com vida. O cordão umbilical se enrola no pescoço do bebê e o enforca.
Quase todo o útero da mãe tem de ser retirado, tornando impossível qualquer
gestação futura.
Quando Jonathan
se muda para Nova York, depois de algum tempo, Bobby deixa Cleveland e se junta
ao amigo de infância. Acontece que ele mora junto com Clare num apartamento.
Pouco a pouco, Bobby se envolve com ela, ou melhor, ela se envolve com ele e
formam um casal.
Quando Clare
nasce a filha de Bobby e Clare, Jonathan torna-se um pai extremamente presente.
É uma família poliamorosa, como se diz modernamente. Entretanto, não é o enredo
o que mais importa neste excepcional romance. Aliás, este livro é mais um
argumento para reconhecermos que temas existem em quantidade limitada. O que
importa é o “como você conta a história”, como nos diz Noemi Jaffe, em seu
ótimo livro Escrita Em Movimento (resenha nº 224, neste blogue).
O que torna este
livro tão importante para a literatura é a profundidade psicológica destes
quatro personagens-narradores. Vejamos uma das várias e várias passagens de
análise deles:
“Bobby era capaz de retira-se da superfície da sua própria pele, e quando o fazia a gente desconfiava de que se o espetasse a agulha iria penetrar vários centímetros antes de ele gritar. Nos períodos vazios ele não dizia ou fazia nada de diferente. Sua fala e suas ações continuavam funcionando.” (página 291)
Ou esta passagem,
com observação sobre Jonathan, feita por Alice:
“Agora eu o amava de uma maneira menos terrível, a partir de um reserva mais profunda de calma, e enxergava melhor suas particularidades humanas. Entre os passageiros que desembarcavam no aeroporto ele era pálido e belo, mas parecia inacabado; à medida que amadurecia eu começava a ver que ele corria o risco de envelhecer sem adquirir uma aparência de repouso. Infantil, sem marcas, com a beleza equina de um garoto, ia adquirindo aquele ar perenemente fresco e inexperiente que às vezes faz um velho parecer uma criança antiga em estado de choque.” (página 322)
Uma casa no
fim do mundo não é um romance fácil de ler, se o leitor não estiver
acostumado com o ritmo mais lento das análises psicológicas dos personagens. E
particularmente neste livro elas são intensas. Michael Cunninghan desce a
fundo.
A estrutura
narrativa escolhida pelo autor contribui ainda mais para a excelência do que se
propõe. A história, sendo conduzida pelas análises oniscientes de cada
narrador, sobre si mesmo e sobre os outros narradores nos surpreendem – a nós,
leitores – com uma agudeza dolorosa.
Encontramos
nestes personagens os índices de nossa própria complexidade, da complexidade
constitutiva das visões de mundo que cada um de nós temos. Platão criou a
genial metáfora do Mito da Caverna. No mundo atual, poucos têm noção da
complexidade que nos são próprias, como seres portadores de uma história e de
uma cultura.
Mais que pelas
redes sociais – verdadeiras cavernas onde se reflete a realidade manipulada – somo
impactados pela filosofia do instantâneo, da reprodução automática do discurso
alheio.
Num ambiente
assim é de se esperar que a depressão e a ansiedade se constituam no mal do
nosso século. E essa incapacidade de acolher o diferente facilita a prática violenta
dos haters. É por isso que a leitura de um livro como este Uma casa
no fim do mundo é tão importante.
O mundo não é
claro, de um lado, e escuro, de outro. Nada é tão simples assim. Somos seres
portadores de zonas de sombras. Livro recomendado ao leitor que goste de personagens
densos e que gostem de serem surpreendidos com aspectos de nossa psicologia
poucas vezes acessados.