Título: Notas Para Uma Definição Do
Leitor Ideal
Autor: Alberto Manguel
Tradutores: Rubia Goldoni e Sérgio
Molina
Editora: SESC
Copyright: 2020
ISBN: 978-65-86111-19-4
Gênero: Ensaios
Este é o terceiro livro de
Alberto Manguel que resenho neste blogue. Os anteriores são: A Biblioteca à
noite e O leitor como metáfora. O leitor poderá até me questionar por que,
aparentemente, gosto tanto deste autor, não sendo ele um ficcionista. Não espero
que minha resposta o convença, meu caro amigo.
Alberto Manguel diz coisas muito
pertinentes, este o meu primeiro motivo. Ele fala sobre livros e leitura com
bastante amplitude de visão, este o meu segundo. E, se houver necessidade de um
terceiro, Manguel escreve muito, muito bem; sempre aprendo alguma coisa com
ele.
Isto posto, vamos ao livro. É um
conjunto de ensaios sobre livros – reunião de ensaios proferidos em tempos e circunstâncias
diferentes. De um tempo para cá, quando vou fazendo minha leitura, com o hábito
definitivamente estabelecido de resenhá-la, vou colando post-its contendo
várias observações. Não gosto de rabiscar meus livros, nem mesmo com lápis. Por
si só, isto já evidencia meu apreço pelo objeto livro. Dou-me ao luxo de fazer
anotações a caneta, sem estragar os livros.
No presente caso, vou optar por
transcrever várias destas passagens interessantes da obra. Alberto Manguel foi
leitor de um ícone da ficção, Jorge Luís Borges. Foi diretor da Biblioteca Nacional
da Argentina.
Sem mais delongas, comecemos,
pois.
“É verdade: num desconcertante
jogo de espelhos, todas as palavras utilizadas para definir uma determinada palavra
num dicionário qualquer devem, elas mesmas, estar definidas nesse mesmo
dicionário. Se somos, conforme acredito, a língua que falamos, os dicionários
são nossas biografias.” (Elogio ao dicionário, página 33)
“Desde o tempo de Gilgamesh, os escritores sempre se queixaram da mesquinharia dos leitores e da avareza dos editores. E no entanto, todo escritor encontra, ao longo de sua carreira, alguns notáveis leitores e alguns generosos editores. ‘Vendi sete exemplares’, diz o protagonista de Nightmare Abbey, de Thomas Love Peacock. ‘Sete é um número místico, e o augúrio é excelente. Se eu encontrar os sete leitores que compraram meus sete exemplares, serão como sete candelabros de ouro com que iluminarei o mundo inteiro.” (Autor, editor, leitor, página 39)
“Se a encadernação artesanal, ainda hoje, dá a um livro uma identidade única e particular, as capas impressas, sobretudo a partir do século XIX, passam a ilusão de uma uniformidade democrática. Curiosamente, porém, essa mesma uniformidade pode dar a um livro uma nova vida. Com outra capa, com outro design, certo texto torna-se original.” (Breve história das capas, página 43)
“Até que, em 1566, Aldo Manuzio, o jovem neto do grande impressor veneziano a quem devemos a invenção do livro de bolso, definiu o ponto no seu manual da pontuação, o Interpugendi ratio. Com seu latim claro e inequívoco, Manuzio descreveu pela primeira vez seu papel e aspecto definitivo. Pensava preparar um manual para tipógrafos, não tinha como saber que estava legando a nós, futuros leitores, os dons do sentido e da música para toda a literatura posterior: Hemingway e seus staccati, Becket e seus recitativos, Proust e seus longos sostenuti.” (O ponto, página 46)
“Todo leitor se reflete em suas leituras de duas maneiras. Primeiro, porque a escolha dos títulos e a ordem em que se encontram revelam a lógica e a estética do leitor; segundo, porque as páginas obviamente lidas, marcadas com sinais e observações, apontam trechos em que esse leitor sentiu sua própria voz, suas próprias alegrias e temores, descobertos e traduzidos por palavras.” (Censura e sociedade, página 49)
“A sociedade de consumo não tolera os leitores, os verdadeiros leitores; quer apenas leitores diletantes, consumidores da papinha de bebê, pessoas convencidas de que não são suficientemente inteligentes para ler a chamada literatura séria. Essa é outra forma de censurar os livros: fazer-nos acreditar que não os merecemos.” (Censura e sociedade, página 50)
“Todo leitor, em geral, quando criança, faz uma descoberta fundamental: que o lobo que ameaça Chapeuzinho é e, ao mesmo tempo, não é um animal feroz e real, que Chapeuzinho é e, ao mesmo tempo, não é o próprio leitor que segue pela página, que o lenhador que resgata a menina é e, ao mesmo tempo, não é uma promessa de redenção. Esse entendimento duplo do mundo, essa descoberta de que a inteligência e a imaginação de cada um de nós são os instrumentos mais preciosos para desentranhar o mundo que nos rodeia, essa revelação que nos é dada através de palavras que narram uma história inventada, mas que sabemos nossa, concreta e verdadeira, isso é algo que só os livros, magicamente, podem nos dar.” (Censura e sociedade, página 55)
“A saga do boneco é a da educação de um cidadão, o velho paradoxo da pessoa que quer ser aceita na sociedade normal enquanto, ao mesmo tempo, tenta descobrir quem ela é na verdade, não como parece aos olhos dos outros, mas aos seus próprios. Pinóquio quer ser um menino de verdade, mas não um menino qualquer, não uma versão obediente e em miniatura do cidadão ideal. Pinóquio quer ser o que ele é por baixo da madeira pintada.” (Como Pinóquio aprendeu a ler, página 58)
“A linguagem pode permitir ao falante permanecer na superfície do pensamento, repetindo lemas dogmáticos e lugares-comuns em branco e preto, transmitindo mensagens em vez de significados, pondo o peso epistemológico no ouvinte (como na frase “você sabe do que estou falando”). Ou pode ajudá-lo a recriar uma experiência, dar forma a uma ideia, explorar profundamente, e não apenas na superfície, a intuição de uma revelação.” (Como Pinóquio aprendeu a ler, página 61)
“Há um feroz paradoxo no seio de todo sistema escolar. Uma sociedade deve transmitir a seus cidadãos o conhecimento dos códigos que a regem, de modo que todos possam participar ativamente dela; mas o conhecimento desses códigos, além da mera capacidade de decifrar um slogan político, um anúncio publicitário ou um manual de instruções, permite a esses mesmos cidadãos questionarem a sociedade, exporem seus males e buscarem uma mudança.” (Como Pinóquio aprendeu a ler, página 65)
“É notoriamente sabido que Cervantes afirma que sua invenção é uma tentativa de acabar com as tolices difundidas pelos livros de cavalaria, histórias, diz ele, “fingidas e desatinadas”. Não sabemos se ele atingiu esse declarado propósito: afinal, o que são Batman e o Homem-Aranha senão êmulos do Cavaleiro da Ardente Espada e de Florismarte de Hircânia? O que sabemos, sim, é que sua criação superou essa tentativa moralizante e escapou dela, o que faz de D. Quixote muito mais que uma paródia de má literatura.” (A leitura como ato fundador, página 72)
“A tarefa infinita do leitor, que é percorrer a biblioteca universal em busca de um texto que o defina e subvertê-lo, multiplica-se (se é que o infinito pode se multiplicar) quando esse leitor assume sua condição de tradutor. Então todo texto resgatado da página se desdobra numa miríade de outros, transformados nos vocabulários desse leitor, redefinidos em outros contextos, outras experiências, outras memórias ordenadas em outras estantes.” (A outra escrita, página 78)
“O reverso do mito de Babel é o reconhecimento de que viver juntos implica utilizar a linguagem para conviver, já que é uma função que exige tanto a consciência de si mesmo como a consciência do outro, entender que há um eu que transmite a informação a um tu para dizer “Este sou eu, é assim que eu te vejo, estas são as normas e os acordos que nos mantêm unidos através do espaço e acima do tempo.” (A construção da torre de Babel, página 154)
“Há três tipos de leitores: primeiro, o que desfruta sem julgar; terceiro, o que julga sem desfrutar, entre os dois, o que julga enquanto desfruta e desfruta enquanto julga. Esse último tipo recria a obra de arte de forma nova e verdadeira; não forma um grupo numeroso." (Goethe, em carta a Johann Friedrich Rochlitz, páginas 165/166)
Alberto Manguel é, ele mesmo, meu
modelo de leitor. Consegue tirar ilações usando a obra que tem em mãos, a um
tempo, extrapolando-a e respeitando-a. Afinal, como nos dizia outro autor
sensacional, o semiólogo Umberto Eco, o bom leitor respeita os limites do
texto. Em outras palavras, não serve qualquer construção de raciocínio interpretativo,
mas sim aquele que guarda o princípio de coerência.
Complexa questão que vai muito
além do que propunham os formalistas russos, para quem a interpretação deveria
estar estritamente orientada pela forma. Há o contexto. Entretanto, magicamente,
o bom leitor articula conhecimentos contextualizados, autorizados pelo texto que
lê.
Para quem considera as
complexidades do fenômeno da leitura, este Notas para uma definição do leitor
ideal, de Alberto Manguel, é mais uma pérola de reflexão sobre o ato de
ler.
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