Autora: Madame de Villeneuve
Tradução: André Telles
Ilustrações: Walter Crane e Outros
Apresentação: Rodrigo Lacerda
Editora: Zahar (clássicos Zahar)
Edição: n/c
Copyright: 2016
ISBN: 978-85-378-1604-2
Gênero textual: Conto de Fadas
Origem: literatura francesa
Foi um autêntico prazer ler este
clássico dos contos de fadas, A Bela e A Fera. Antes, conhecia-o de
ouvir falar – há certas obras de que a gente sempre ouve falar, como Dom Quixote,
mesmo sem as ter lido – e pelos filmes da Disney. Obra várias vezes filmada,
adaptada, editada pelo mundo todo, este livro de bolso e capa dura nos brinda
com duas versões da mesma história, uma introdução muito esclarecedora e
excelentes ilustrações.
A versão considerada clássica é mais
recente, de Madame de Beaumont e data de 1756. Dela são tirados os roteiros
para as obras cinematográficas e teatrais. O texto tem mais cara de conto de
fadas. É mais curto que o anterior, mais enxuto.
A versão primeva é da autoria de
Madame de Villeneuve, datada de 1740. É mais extensa, mais cheia de nuances e
foge à estrutura consagrada dos contos desta espécie. Não sei como
classificá-la, arrisco uma noveleta. Para o meu gosto literário, é de longe, a
versão que mais me agrada. Vou falar dela, mas fique o leitor sabendo da possibilidade de levar as duas pelo preço de uma. Escolha a que melhor lhe aprouver.
Na apresentação de Rodrigo Lacerda,
temos a informação de onde vem a inspiração para a fera da história: veio de fatos. É
que, conforme nos informa Lacerda, houve certo Pedro Gonzáles, espanhol nascido
nas Ilhas Canárias, portador de rara anomalia chamada de Hipertricose. Também
conhecida como “síndrome de lobisomem”, de caráter hereditário, seu
portador apresenta o corpo inteiro coberto de pelos. Pessoas portadoras de
casos teratológicos ou anomalias como esta eram exploradas como atrações
circenses, em verdadeiros shows de aberrações.
Pedro Gonzáles foi presenteado pelo
próprio pai ao rei Carlos I da Espanha; criaturas assim faziam parte dos “acervos”
dos monarcas e eram exibidas como símbolos de status. Pois bem. O estranho ser
– para resumir – foi transferido para a posse do rei da França, Henrique II.
Objeto de curiosidade, o rei decidiu submeter a criatura a uma experiência:
conseguiria humanizar-se?
Sua majestade rebatizou-o Petrus Gonsalvus,
deu-lhe roupas nobres e providenciou-lhe esmerada educação. Pedro aprendeu a
ler, escrever, falar outras línguas e dominar as sofisticadas regras de
etiqueta francesa. Continuando com sua abstrusa experiência, Henrique II o fez
casar-se com Catarina, bela filha de uma serviçal do palácio. Com o tempo, a
repulsa inicial da jovem se transformou em uma relação amorosa e um casamento
bem-sucedido.
O texto A Bela e A Fera, de
madame de Villeneuve, se estende da página 57 à página 233. A família de Bela
vivia tranquilamente numa cidade. O pai era um comerciante; tinha seis filhas
moças e seis filhos homens – todos solteiros. Entretanto, numa reviravolta
característica de contos de fadas, quis o destino que eles perdessem tudo o que
tinham. Os navios que traziam os artigos a serem comercializados pelo pai foram
assaltados por piratas. Restou-lhe apenas uma modesta casa no campo.
Naquela nova situação, a caçula Bela,
portadora de um bom coração, foi quem se deu melhor. Longe de viver se
queixando das agruras da nova vida, arregaçou as mangas e dedicou-se com afinco
ao trabalho rude do campo. Naturalmente, tornou-se a predileta do pai e
admirada pelos irmãos homens. Espíritos mesquinhos, a inveja logo se instalou
nas suas irmãs.
“A jovem tinha muito mais encantos para brilhar em sociedade do que qualquer uma delas [das irmãs]. Uma beleza perfeita adornava sua juventude, seu humor inalterável cativava a todos. Seu coração, generoso e misericordioso, guiava todos os seus atos e palavras. Tão sensível como as irmãs às atribulações vividas por sua família, porém com uma força de vontade incomum numa adolescente, soube esconder a dor e colocar-se acima da adversidade. Tamanha determinação foi tachada de insensibilidade. Estava claro para todos, entretanto, que essa opinião era ditada pela inveja.” (página 63)
Esta história tem sido tão repetida
e filmada, que julgo não haver importância em incorrer em spoiler. Ao fazer
tentativas para melhorar a vida da família, o pai viaja para a cidade.
Entretanto, é noite e ele se perde no caminho, e em meio a uma floresta, vai
dar numa propriedade estranha, a princípio parece abandonada. Ali pernoita,
encontra comida pronta, posta em uma mesa no grande salão do castelo. Mas
comete um erro: lembra-se do pedido de Bela, de que lhe trouxesse uma rosa.
Ora, naquela propriedade havia as mais belas rosas por ele já vistas. Ao
colhê-las para a filha, aparece-lhe a Fera, dizendo-lhe que o visitante devia
pagar com a vida tal ousadia. Após choramingar muito, expondo sua vida miserável
à criatura, ela decide comutar a pena de morte:
“— Disponho-me a perdoá-lo, mas com uma condição: que me entregue uma de suas filhas. Preciso de alguém para reparar este erro.
— Misericórdia! O que me pede? – não acreditava o comerciante. – Como prometer uma coisa assim? Quem poderia ser tão desumano a ponto de sacrificar a própria filha para salvar a pele, que pretexto eu alegaria para trazê-la aqui?
— Não deve haver pretexto – decretou a Fera. – A filha que porventura o acompanhe terá de vir espontaneamente, caso contrário não quero. Verifique se alguma delas é suficientemente corajosa, e o ama bastante, para sacrificar a vida em troca da sua.” (página 80)
Mesmo se não se conhecer a história,
não será difícil concluir que, fatalmente, Bela se oferecerá para o sacrifício.
Acreditando estar indo para uma morte inexorável, a jovem pouco se importa com
a descrição do pai, sobre a fera horrenda. Se vai morrer, pouco lhe importa se seu
executor seja bonito ou feio.
Entretanto, tudo se modifica e a
Fera se apaixona pela moça, quase assim que a vê. Apesar do seu aspecto
repulsivo, a criatura tem, no fundo, um bom coração e cobre Bela de agrados.
Este esforço vai vencendo, pouco a pouco, a resistência da filha do
comerciante.
Na segunda parte desta história,
Bela passa a ter sonhos frequentes em que um jovem, muito bonito, vem estar com
ela. Diz-lhe palavras de amor e ela acaba por desenvolver uma espécie de amor
platônico pelo personagem dos seus sonhos. Entretanto, outro sonho se interpõe:
se ela se demorasse na visita que tinha sido autorizada a fazer à família mais
do que o prazo dado pelo seu algoz, a Fera morreria. E, com o drama de
consciência de tornar-se responsável por uma morte, Bela gira um anel mágico no dedo e retorna ao castelo.
Ao retornar, encontra a Fera quase
morta. Ausculta-lhe o coração e o sente bater debilmente; é tomada por um
grande sentimento de perda:
“Animando-a com a voz, fez-lhe tantos afagos que ela aos poucos se recuperou:
— Quanta preocupação – Bela lhe disse polidamente –, eu não imaginava gostar tanto de você: o medo de perdê-lo me revelou que algo mais forte que os laços da gratidão me prendiam à sua pessoa. Juro que só pensava em morrer, se não conseguisse lhe salvar a vida.
Ao ouvir essas palavras carinhosas, a Fera, sentindo-se plenamente restabelecida, respondeu-lhe com a voz ainda fraca:
— Quanta generosidade sua, Bela, em ter apreço por um monstro, mas faz bem: amo-a mais que a minha vida. Achei que a senhorita não voltaria. Eu teria morrido. Uma vez que gosta de mim, quero viver. Vá descansar e esteja certa de que será feliz como seu generoso coração merece.” (páginas 148/149)
Bela e a Fera se tornam marido e
mulher. Em uma noite, ao acordar, a jovem tem uma surpresa, pois deitado ao
lado dela na cama, está o príncipe dos seus sonhos. Os indícios a levam a ligar
uma coisa à outra e ela tem certeza de a Fera e o príncipe serem uma única
pessoa. O príncipe não acorda, está mergulhado num sono letárgico, indicativo
de um forte feitiço agindo ali.
Aqui, o conto de fadas se torna
extremamente interessante. Ao invés de caminhar para o final feliz sem mais
delongas, Madame de Villeneuve contraria a estrutura destes contos e faz
entrarem em cena a mãe do príncipe e uma fada. A chegada destas duas tem a
força de tirar o príncipe do feitiço a que estava submetido. Ele acorda.
Conta a história da sua vida, até
ali. Contos de fadas não abrem espaço para os príncipes transformados em
monstros se explicarem ou explicarem o que lhes havia acontecido. Vários
segredos são revelados (não, não quero, definitivamente, dar spoilers, afinal).
A Fada revela aos dois e à mãe do
príncipe, que ela tinha estado sempre protegendo quanto possível o rapaz.
Entretanto, mesmo as fadas não podem tudo, ela estava presa às leis de certa Ilha
Bem-Aventurada, onde habitava. Um feitiço assim como o que envolvia o caso, somente poderia
ser desmanchado por fadas hierarquicamente superiores a ela, ou por alguma
fada que houvesse sido cobra alguma vez. Há descrição de um intrincado jogo de
regras que regulam as ações das fadas, quer sejam elas boas ou más.
Desavenças do passado haviam
resultado nos encantamentos e desastres do presente. Mas, como nos outros
tantos contos de fadas circulantes, as terríveis tramas foram deslindadas. E o
final desta surpreendente história chega a seu termo, em termos bem diferentes
daqueles a que estamos acostumados:
“A rainha e a Fada, sua irmã, foram igualmente generosas com Bela, seu esposo, a Rainha sua sogra, o velho e a família dele, de maneira que nunca houve humanos tão longevos. Querendo transmiti-la à posteridade, a Rainha, mãe do Príncipe, não se esqueceu de mandar incluir essa história maravilhosa nos anais de seu império e nos da Ilha Bem-Aventurada. Cópias foram distribuídas por todo o Universo, a fim de que se falasse eternamente das prodigiosas aventuras da Bela e da Fera.” (página 233)
Bem diferente do desenho da Disney,
não, amigo leitor? Entretanto, não desprezo o desenho, penso ser ele um
clássico da animação, com sua vertente diversa da mesma história. E parece que
este conto de fadas nasceu para fornecer diferentes versões. Há uma realização
fílmica muito boa, em branco e preto, dirigida sabe por quem? Ninguém menos que
o habilidoso e genial Jean Cocteau, multiartista inquieto francês.
Verdadeiro prazer de ler. Um motivo a mais para ler outras tantas vezes.
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