Autor: Haruki Murakami
Tradutor: Rita Kohl
Edição: 1ª
Editora: TAG/Alfaguara
Copyright: 1992
ISBN: 978-85-5652-106-4
Gênero Literário: Romance
Origem: literatura japonesa
Impressões ao ler:
A gente não sabe, previamente, se um livro vai nos
apaixonar ou não. São muitos os elementos e uma capa bonita, uma edição bem
cuidada são apenas dois dos ingredientes para conquistar o público. À medida
que lia as primeiras páginas deste Sul da Fronteira, Oeste do Sol, foi ficando
claro que estava diante de um texto que, irremissivelmente, não me largaria. A história
meio misteriosa de Shimamoto e de Hajime foi decisiva, naturalmente; entretanto,
o que conduziu minha leitura foi a abordagem psicológica do protagonista. Num texto
que não chega a ser lento, mas que está longe do apressado, Murakami conseguiu
o feito de dotá-lo da respiração adequada para o fim proposto: Hajime é o narrador-personagem
que, se não se mostra todo, mostra o necessário para entendermos o fundamental
de seu funcionamento psíquico. Livro candidato a leituras recorrentes.
Pequena biografia:
Haruki Murakami nasceu em Quioto, em 12/01/1949. Escritor e
tradutor japonês, seus livros têm tido imenso sucesso ao redor do mundo – já foi
traduzido para mais de cinquenta idiomas. Embora muito apreciado e premiado,
Murakami nem sempre recebe elogios dos seus pares. Constantemente, aliás, é
criticado pelo establishment literário de seu país, sendo acusado de não
japonês, de escritor sem identidade com a cultura japonesa. Um peso-pesado da
literatura nipônica, Kenzaburo Oe (autor de Dias Tranquilos, também já
traduzido para o português), por exemplo, acusa Haruki de não refletir aspectos
da cultura japonesa.
Nosso autor é filho de um sacerdote budista e sua mãe era
filha de um comerciante de Osaka. Apesar de nascido em Quioto, viveu boa parte
da sua juventude nas cidades de Shukugawa, Ashiya e Kobe. Frequentou a
Universidade de Waseda, em Tóquio, onde dedicou-se aos estudos de teatro. Dono de
um bar de jazz, o Peter Cat – experiência que repercute em Sul
da Fronteira, Oeste do Sol – Murakami parte para a Europa e,
posteriormente, para os Estados Unidos, onde decidiu se fixar. Seu primeiro
livro foi escrito em 1979, Ouça a canção do vento, mas apenas em 1987
seu nome se tornou um sucesso no Japão, com Norwegian Wood. Aficionado
aos esportes e à música, nosso escritor é bastante influenciado pela cultura
ocidental. Alguns outros trabalhos de Murakami: Crônica do Pássaro de Corda,
2006; Kafka à beira-mar, 2006; Sputnik, meu amor, 2005.
O livro:
Hajime é o protagonista do livro, acumulando as funções de
narrador-personagem ou, se quiserem, narrador participante da história. A voz
que narra o texto é em primeira pessoa. Voz adequada para falar de suas
características psíquicas, seus dramas, suas limitações e sofrimentos. Eis como
tudo se inicia, nesta história:
“Eu nasci no dia 4 de janeiro de 1951. Na primeira semana do primeiro mês do primeiro ano da segunda metade do século XX. Pode-se dizer que é uma data digna de comemoração. Por isso, recebi o nome Hajime, que significa começo. De resto, não há nada notável em relação ao meu nascimento. Meu pai trabalhava em uma grande empresa de corretagem e minha mãe era dona de casa comum. Meu pai foi recrutado para o serviço militar quando estudante e enviado para Singapura, e depois da guerra passou um tempo em um campo de prisioneiros. A casa da minha mãe foi atingida pelas bombas de um B-29 e destruída pelo fogo, em 1945. Ambos pertenciam à geração marcada pela longa guerra.” (página 9)
Temos então, a partir deste introito, Hajime, pelo menos em
sua infância, tendo sofrido os ecos daquela guerra mundial, da qual seus pais
tiveram experiências e lembranças bem mais impactantes – viveram no cenário do
conflito.
Hajime tem uma característica que vai marcá-lo durante toda
a sua trajetória: é filho único numa sociedade em que as famílias eram
grandes, com muitos filhos. Este sentimento de incompletude, de inadequação só
vai encontrar lenitivo no contato com a jovem Shimamoto, durante a escola. Ela também
é uma solitária.
“Shimamoto vestia um suéter azul de gola redonda. Ela tinha vários suéteres azuis, acho que devia gostar desta cor. Ou, quem sabe, era porque combinavam com o casaco azul-marinho que ela sempre usava na escola. A gola de sua camisa branca aparecia sob o suéter. Usava também uma saia xadrez e meias de algodão brancas. O suéter justo e o tecido macio me permitia vislumbrar o volume discreto em seu peito. Ela estava sentada no sofá com as duas pernas dobradas sob o corpo. Ouvia a música e tinha um dos cotovelos apoiado sobre o encosto e o olhar de quem contempla uma paisagem distante.
— Ei — disse ela. — você acha que é verdade que os pais que só têm um filho não se dão muito bem?
Pensei um pouco a respeito, mas não entendi muito bem a relação entre as duas coisas.
— Onde você ouviu isso?
— Alguém me falou, já faz tempo. Que quando um casal só tem um filho, é porque eles não se gostam muito. Achei triste...
— Hum...
— Seu pai e sua mãe se dão bem?
Não consegui responder na hora. Nunca tinha pensado no assunto.
— No meu caso, foi porque a saúde da minha mãe não é muito boa – falei. — Não entendo muito bem, mas parece que ter um bebê exige muito do corpo.” (páginas 18/19)
O jovem casal é visto junto por todos os lados. Serem filhos
únicos os enlaça e aproxima; não é spoiler adiantar que um sentimento de
amor vai se construindo e se revelando entre os dois.
Mas Hajime se muda para outra cidade, acompanhando sua família.
Pouco a pouco, sua vida se solidifica com outras referências. Shimamoto e ele
não mais se veem. Outra garota importante em sua vida, Izumi, aparece e ambos
sentem atração. É, inclusive, com esta garota que acontece a primeira cena
erótica de várias integrantes do livro:
“Ela foi à minha casa em domingo. Era começo de novembro, o dia estava muito bonito, mas já um pouco frio. Meus pais tinham saído para um compromisso familiar, acho que era aniversário de morte de alguém da minha família paterna, e na verdade era para eu ter ido também, mas disse que precisava estudar para uma prova e fiquei sozinho em casa. Eles só voltariam tarde da noite. Izumi chegou no começo da tarde. Deitamos na minha cama, ela fechou os olhos e, sem dizer nada, deixou que eu a despisse. Mas eu me atrapalhei todo. Não sou muito jeitoso no geral, e as roupas femininas são um negócio terrivelmente complexo. No meio do caminho Izumi desistiu de esperar, abriu os olhos e tirou, ela mesma, toda a roupa. Usava uma calcinha pequena azul-clara e um sutiã da mesma cor. Devia ter comprado ambos especialmente para esse dia, com o próprio dinheiro. Até então, ela sempre usava lingeries comuns, do tipo que as mães compravam para as filhas estudantes do ensino médio.” (página 37)
Hajime se torna um adulto, novas experiências chegam, ele se
casa com Yukiko, tem duas filhas e abre um bar onde serve drinks fantásticos,
além de ter jazz band ao vivo. O empreendimento vai tão bem que
ele abre uma filial, maior e mais bem montada.
Haruki Murakami costuma se servir de elementos de fantasia
para compor suas obras. Não é isso o que acontece aqui, neste Sul da Fronteira,
Oeste do Sol. Optando pelo drama psicológico de Hajime, cujo fato de ser filho
único é apenas um dos elementos de conflito interno – o protagonista, na
verdade, não consegue encontrar seu lugar no mundo; à exceção de com Shimamoto,
não consegue entender-se com as mulheres que amou – o autor realiza uma obra
com fortes tintas contemporâneas.
Neste mundo líquido, como proposto pelo sociólogo Zygmunt Bauman,
sofremos pelas referências semoventes. Explico-me melhor: vivemos numa época em
que aquela segurança das coisas imutáveis dos tempos de nossos pais ou avós cai
por terra constantemente. Valores que, até ontem nos balizavam, hoje já não nos
servem mais; o que era moderno, torna-se ultrapassado. A tecnologia em ebulição
cada dia nos joga mais dentro do vórtice que tudo liquidifica e absorve.
Sul da Fronteira, Oeste do Sol não propõe uma
solução, nem seria esperável que o fizesse. Hajime, Shimamoto, Izumi, Yukiko são
personagens à busca de sua própria identidade, e talvez, a própria sociedade
japonesa que perde rapidamente suas referências do passado e de sua cultura
mais tradicionais (isto é muito mais evidente numa megalópole como Tóquio) não
ajuda a melhorar os conflitos internos de seus habitantes.
Os protagonistas de Murakami – está dito na revista da TAG
que acompanha esta bela edição – são, normalmente, homens maduros na casa dos
trinta e poucos anos, tendo que lidar com seus fantasmas. Fazem parte do
cardápio relações amorosas tumultuadas.
Duas imagens atravessam a narrativa, constituindo-se em duas
referências literárias: uma é o deserto: “cada um vive do seu jeito, morre do
seu jeito. Mas isso não importa muito. No fim, sobra apenas o deserto. A única
coisa viva de verdade é o deserto”. É curiosa esta associação, pois deserto é
tradicionalmente concebido como um lugar cuja vida não vinga. Torna-se, nas
mãos de Murakami, e de modo amargo, “a única coisa viva de verdade”.
A segunda, é a água. Mas o significado que se pode atribuir
não será somente o de representar a vida. Como vem sempre associado ao
feminino, e em contraste claro com a imagem
do deserto (sem água), pode ser lido como “proporcionadora de vida”. Num
belo trecho, Murakami escreve: “eu a olhei nos olhos. eram como a água de uma
nascente silenciosa, à sombra de uma rocha, fora do alcance do vento. Tudo estático,
sem nenhum movimento. Tive a impressão de que, se ficasse olhando, conseguiria
ver os reflexos na superfície da água”.
Sul da Fronteira, Oeste do Sol, afinal, deve seu
título a uma música de Nat King Cole, que Hajime e Shimamoto escutam com frequência
(South of the Border, West of the Sun). A oeste do sol está a Sibéria,
território permanentemente frio, em cujo inverno árido e rigoroso obriga as
pessoas a viverem em isolamento dentro de suas casas.
A letra da música diz, em sua primeira estrofe, “South of
the Border – down Mexico way/That’s were I fell in love, where the stars above –
come out to play/And now as I wander – my thoughts ever stray” (Sul da
fronteira – no caminho do México/Foi aí que eu me apaixonei, onde as estrelas
acima – saíram para brincar/E agora, enquanto vagueio – meus pensamentos sempre
se perdem).
De novo, a associação de uma vida sem significado, gerando
seres perdidos por um lado e, por outro, o amor que seria o antídoto para a
solidão. Não obstante, na minha leitura deste livro de Murakami, nem o amor
consegue realizar a união dos seres.
Outro ponto a depender de interpretação envolve a personagem
Shimamoto. Para alguns leitores, ela seria uma idealização de Hajime, não
teria, portanto, existência dentro da história. Rita Kohl, a tradutora da obra
e autora de um excelente posfácio que acompanha o livro, entende ser possível
tal caminho interpretativo, mas não concorda com ele. Eu, também não. Há muitas
pistas, muitas passagens deixadas pelo autor que me permitem construir um
raciocínio interpretativo segundo o qual Shimamoto seja personagem “real”,
assim como Hajime, Izumi ou os demais seres. Infelizmente, não posso defender minha
interpretação com excertos do livro, porque aí eu encheria esta resenha de spoilers.
Esta é a primeira obra de ficção de Haruki Murakami que
leio. Por todas as informações obtidas sobre o autor, seus livros, seus personagens,
suas preferências temáticas, ambientação, posso dizer-me interessado em ler
outros livros dele.
Disse acima ter sido esta a primeira obra de ficção de
Murakami que leio. Isto porque, em 2017, no mês de maio, li o livro Romancista
como vocação, uma não ficção exatamente de Haruki Murakami e o postei neste
blogue.
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