Autor: Javier Cercas
Tradutor: Sérgio Molina
Edição: 2ª
Editora: Editora Azul/TAG Livros
Copyright: 2018
ISBN: 978-85-2506-751-7
Gênero: Romance
Origem: Espanha
Bibliografia do autor (incompleta):
El Móvil, 1987; El Inquilino, 1989: El Vientre de La Ballena, 1997; Soldados de
Salamina, 2001; La Velocidad de La Luz, 2005; Anatomia de Un Instante, 2009;
Las Leyes de La Frontera, 2012; El Impostor, 2014.
Imagem: SKOOB
Este
é um livro que tem a ensinar a quem deseja, um dia, escrever. Várias
referências metaliterárias aparecem no texto. Javier Cercas tem uma habilidade
enorme em misturar dados da realidade e dados ficcionais, produzindo um todo
coerente. Rodney, o protagonista da história, carrega seus fantasmas por ter
combatido no Vietnã, é um sujeito taciturno e esquisitão. Na verdade, A
Velocidade da Luz é sobre um livro que é
escrito pelo narrador sobre a vida do amigo Rodney Falk. O narrador arranja um
emprego, por intermédio do amigo Marcelo Cuartero, numa cidadezinha dos Estados
Unidos, chamada Urbana. Ler este livro foi muito bom. Escrito com inteligência
e prazer, é assim uma prova de fogo do escritor Javier Cercas. Sim, pois ele
havia escrito o famoso Soldados de Salamina – considerado por muita gente como a sua obra-prima. Ora, não é todo
dia que qualquer autor, após produzir um romance de referência (apontado como o
melhor livro escrito em língua espanhola do século XX), consegue escrever
outro, com excelência. Sem dúvida, este A Velocidade da Luz é um ótimo livro. Não posso fazer
comparações, pois não li ainda o Soldados de Salamina. Mas tenho vontade de ler mais coisas deste ótimo escritor. Meu exemplar
da obra anterior aguarda sua vez, na prateleira da minha estante.
Javier Cercas Menas nasceu em 1962
em Cáceres, Espanha. Acumula nada menos que 23 prêmios literários. Atua como
escritor e tradutor. Um aspecto muito frequente em sua obra é a reflexão sobre
o passado espanhol e do mundo ocidental e suas relações com o presente. Seu
último livro, El Monarca das Sombras
(O Monarca das Sombras, em
português), foi publicado em 2017 e versa sobre a guerra civil espanhola.
O presente romance se inicia da
seguinte forma:
“Hoje eu levo uma vida falsa, uma vida apócrifa, e clandestina, e invisível, porém mais verdadeira que uma vida de verdade. Mas eu ainda era eu quando conheci Rodney Falk. Isso foi há muito tempo e foi em Urbana, uma cidade do Meio-Oeste americano onde passei dois anos no final dos 80. A verdade é que, sempre que me pergunto por que fui parar justo lá, digo a mim mesmo que fui parar justo lá como poderia ter ido parar um qualquer outro lugar. Vou contar por que, em vez de ir parar em qualquer outro lugar, fui parar justo lá.” (página 15)
Marcelo Cuartero é um professor
universitário, a respeito de quem diz o protagonista deste livro, “a cujas
aulas deslumbrantes eu tinha assistido com fervor, embora fosse um aluno
medíocre”.
É Cuartero quem fala de uma vaga para
professor de literatura espanhola, numa cidadezinha perdida no Meio-Oeste
americano, chamada Urbana. Tipicamente, uma cidade de interior, dominada pelo
campus universitário. Pouco se sabia daquela localidade, a não ser que tinha
sido cenário para o filme Quanto Mais
Quente Melhor, com Tony Curtis e Jack Lemmon.
Eis como o protagonista caracteriza
seus companheiros professores universitários:
“Eu me lembro muito bem desse jantar, entre outras razões porque algumas das coisas lá ocorridas, receio, dão o tom exato do que devem ter sido minhas primeiras semanas em Urbana. Os três colegas que compareceram tinham mais ou menos a minha idade; eram dois homens e uma mulher. Os dois homens dirigiam uma revista semestral chamada Línea Plural: um deles era um venezuelano chamado Felipe Vieri, um sujeito muito lido, irônico, um pouco esnobe, vestido com um apuro não isento de afetação; o outro se chamava Frank Solaún, era um americano de origem cubana, corpulento e animado, de sorriso brilhante e cabelo empastado com gel. Quanto à mulher, seu nome era Laura Burns, e, como eu soube mais tarde pelo próprio Borgheson, pertencia a uma família riquíssima e aristocrática de San Juan de Porto Rico (seu pai era dono do maior jornal do país), mas o que mais me chamou a atenção nela naquela noite, além de seu inequívoco físico de gringa – alta, robusta, loura, de pele branquíssima –, foi sua intimidadora propensão ao sarcasmo, a duras penas refreada pelo respeito que a presença de Bogheson lhe inspirava.” (página 21)
Entretanto, é na figura de Rodney Falk que a narrativa de Javier Cercas vai se centrar. Sempre em seu
estilo fluente, fácil de ler, o autor nos adianta alguma coisa deste personagem
tão importante para o romance:
“Mas não foi em nenhuma daquelas festas multitudinárias que eu conheci Rodney Falk, e sim na sala que dividimos durante um semestre no quarto andar do Foreign Languages Building. Nunca vou saber se me deram essa sala por acaso ou porque ninguém queria dividi-la com Rodney (tendo mais à segunda alternativa), mas o que sei é que, se não fosse por isso, o mais provável é que Rodney e eu nunca tivéssemos feito amizade, e tudo teria sido diferente, e minha vida não seria o que é, e a lembrança de Rodney teria sumido da minha memória como depois de alguns anos sumiu a de todas as outras pessoas que conheci em Urbana.” (página 25)
Javier Cercas é um escritor de
muitos recursos narrativos e vai revelando a complexidade da personalidade de
Rodney Falk aos poucos. Ele tinha lutado no Vietnã – uma batalha em que os EUA
se meteram e na qual sofreram acachapantes derrotas.
Para contextualizar, podemos dizer
que o Vietnã havia sido colônia francesa e que, ao final da Guerra da Indochina
(1946-1954) fora dividido em dois países: o Vietnã do Norte, comandado por Ho Chi
Minh, de orientação comunista pró-União Soviética e o Vietnã do Sul, uma
ditadura militar que passou a ser aliada dos EUA.
Em 1959, os vietcongues
(guerrilheiros comunistas apoiados por Ho Chi Minh e pela então União
Soviética) atacaram uma base norte-americana no Vietnã do Sul. Isso foi
suficiente para os americanos declararem guerra. O que se seguiu foi um
verdadeiro mar de sangue, com os EUA fazendo uso de armas modernas contra um
inimigo que, se estava completamente defasado em termos de armamentos, conhecia
profundamente seu próprio território e possuía extrema eficiência em táticas de
guerrilha. Em 1960 já era claro o fiasco americano.
Em 1973, o governo dos EUA,
pressionado pela opinião pública e pelo morticínio intenso de seus soldados,
aceita o Acordo de Paris, que prevê o cessar-fogo. A América retira todos os
seus soldados e abandona o território vietnamita em 1974.
Este resumo contextualizatório da
Guerra do Vietnã se torna necessário, para o leitor entender melhor o porquê
das características do personagem Rodney Falk. Tendo feito parte de um grupo de
fuzileiros americanos, teve suas amargas experiências. É que tal grupo, certa
feita, confunde um conjunto de cidadãos do Vietnã do Norte com um grupo guerrilheiro
e abre fogo cerrado contra ele. Para descobrir, depois, que o “inimigo” era composto
de mulheres, crianças e velhos indefesos.
E, como de um momento para outro,
Rodney Falk pede demissão do seu cargo de professor na Universidade e some, sem
deixar qualquer notícia, o protagonista vai à casa dele, numa cidade próxima a
Urbana, na tentativa de encontrá-lo. Encontra o pai de Rodney e recebe dele um
completo dossiê sobre o amigo, composto de cartas à família em que tal
incidente com o grupo de cidadãos vietnamitas é narrado.
O livro A Velocidade da Luz é contado a partir de um narrador-personagem,
em primeira pessoa. Esta escolha técnica deve ter sido bastante consciente,
pois produz um efeito muito interessante no livro. É que, como ocorre nestes
casos de narradores-personagens, as verdades são sempre relativas, subjetivas. Como
é um narrador afetado pelos acontecimentos que ele próprio descreve, como ele analisa
os fatos sempre a partir do “eu”, a maior parte do que é narrado fica por conta
da subjetividade, da interpretação pessoal. Portanto, este é o famoso “narrador
não confiável”, do mesmo miolo que constitui o Bentinho de Dom Casmurro, do
nosso Machado de Assis. Ainda mais que, no caso de Javier Cercas, o
protagonista é escritor, quer escrever um livro cujo personagem central é
Rodney Falk. Os fatos aconteceram mesmo, ou foram pura ficção romanesca do
narrador-escritor?
Outras tantas coisas vão acontecer
no romance, caro leitor, mas não desejo dar spoilers,
como sempre. Eu não me importo com eles, se tenho interesse em ler um livro,
pouco se me dá que alguém me conte o final ou os principais lances narrativos. Leio
alguns livros, de que gosto muito, várias vezes – na minha estante há livros
lidos quatro, cinco vezes – pelo simples fato de gostar da história, da forma
como um autor faz o seu trabalho. Enfim, diz o sábio ditado popular, “de sábios,
de médicos e de loucos, todos temos um pouco”. No meu caso, predomina a porção
do “louco”. Entretanto, a maioria das pessoas não gosta de spoilers e eu lhes dou razão.
Vários dados biográficos são
encontrados na composição dos personagens e nos fatos narrados no livro, para
quem quiser fazer o trabalho de Sherlock Holmes (aliás, não seria nada mal resenhar
aqui um livro deste muito caríssimo Sherlock).
Por exemplo, é dito na obra A Velocidade da Luz que o primeiro livro
do escritor-narrador não fez sucesso. Que depois de muito tempo, ele consegue
publicar um livro que se torna um best-seller. Temos o protagonista indo para
os Estados Unidos.
Não por acaso, Javier Cercas deixou
a Espanha e foi viver por um tempo na América. Realmente, seu sucesso e
reconhecimento só chega com Soldados de
Salamina, após outras publicações. Defendo que, de um jeito ou de outro,
acabamos pondo algo de nós em narrativas que escrevemos. Por que deveria ser
diferente?
Aproveitar nossas próprias
experiências é sábio. Ademais, como identificar ou mesmo extirpar dados nossos guardados
lá na caixinha preta do nosso inconsciente? Parece que o ato de contar uma
história, de verter uma narrativa para o papel – ou, em tempos modernos – para o
arquivo digital estabelece uma ligação direta com tal caixinha preta.
Escrever é assim: um prazer, um
trabalho (às vezes muito árduo), uma revelação. Tantas vezes o leitor descobre
relações insuspeitadas pelos escritores, nos livros destes... E ao autor, interessado
ou incomodado, conforme o caso, só resta dizer um “não tinha pensado nisso”.
O próprio Umberto Eco – grande escritor
e estudioso da semiótica – conta seu caso deste tipo. Diz ele, um crítico de O Nome da Rosa (que romance, meus caros leitores!
Viciante!), sua obra mais conhecida, apontou certa vez uma passagem que
lembrava em tudo outro texto antigo. Na hora, Umberto disse que não havia
relação, que ele não havia consultado tal texto.
Depois de algum tempo, pesquisando
outra coisa em sua biblioteca pessoal – sonho dos sonhos, mais de 30 mil
volumes – deu com um livro fora do alinhamento. Tomou-o nas mãos. Estava marcado
em determinado ponto. Releu o texto. Lá estava, inteirinha, a passagem aludida
pelo crítico. Sim, ele, Umberto Eco, havia gravado o texto antigo e, de modo
inconsciente, fizera uma alusão a ele, ao construir a trama da sua obra mais
conhecida.
A
Velocidade da Luz é um livro repleto de comentários sobre o ato de
escrever, as preocupações de um escritor. E não é forçado, uma vez que o
protagonista se vê às voltas com um dossiê que traz não só relatos de guerra,
mas, principalmente, sentimentos de um soldado participante de uma batalha que
lhe fora vendida como um ato de honra contra um inimigo comunista e o que ele
confronta, na realidade, são pessoas que dão o seu sangue e sua vida para
expulsar o invasor. Eterna luta de David contra Golias; no fundo, no fundo, o
livro é também um libelo contra as loucuras dos conflitos armados, da
insanidade humana que vê inimigos onde eles não existem.
Não seria esta a mensagem dada pela
descrição do fuzilamento do grupo de civis vietnamitas, homens velhos, mulheres
e crianças? O sórdido acordo firmado entre os participantes do evento, no
sentido de todos se calarem quanto ao ocorrido é o que desequilibra o
personagem Rodney Falk. Afinal, calar consciência, nem todo mundo consegue. Aqueles
que são mais sensíveis sofrem mais.
Mas paremos por aqui, amigo leitor.
No entusiasmo da resenha, quase levei você a um spoiler. Leia este A
Velocidade da Luz. Livrão, somente isto. Livrão.
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