Autora: Toni Morrison
Tradutor: Manoel Paulo Ferreira
Edição: s/n
Editora: TAG/Cia das Letras
Copyright: 1970
ISBN: 978-85-359-3196-9
Gênero Literário: Romance
Origem: Literatura Americana
Bibliografia: O Olho Mais Azul, 1970; Sula, 1974; Song of
Solomon, 1977; Tar Baby, 1981; Amada, 1987; Jazz, 1992; Amor, 2003; A Mercy,
2008; God Help The Child, 2015. Prêmio Nobel de Literatura de 2013.
O
friozinho soprava por baixo das portas fechadas e pelas gretas mínimas das
janelas. O sítio estava num recanto isolado e não havia internet para me
incomodar. Apenas o som da televisão de tubo chegava de longe aos meus ouvidos,
mas televisão, sinto muito dizer, não me apetece tanto. Aí dei razão para a letra
do Djavan: um dia frio, um bom dia para ler um livro. A coisa que menos eu
queria era sair de dentro das cobertas. Conheci Toni Morrison há algum tempo,
quando pesquisava na rede mundial algumas informações sobre outro livro, nada a
ver com Toni e dei com o nome dela. Toni Morrison. Escritora negra
norte-americana. Este O Olho Mais Azul
foi o primeiro romance dela. Certamente, não é o livro da minha vida, acredito
que Amada seja melhor, mas este é um
bom livro. Leitura agradável, não é; denso, fala das agruras de se ser negro
numa sociedade segregadora. É leitura para reflexão, incomoda.
Toni Morrison (o nome verdadeiro é
Chloe Antony Woford) nasceu 18/02/1931, em Lorain, Ohio, Estados Unidos. É a
segunda dos quatro filhos de uma família de classe média baixa, profundamente
afetada pela Grande Depressão. Morrison sempre fora uma leitora ávida e seus
escritores prediletos eram Jane Austen e Liev Tólstoi. Do pai herdou o talento
para contar histórias. Sempre as ouvia, envolvendo as questões entre negros e
brancos. Consta que ela se converteu ao catolicismo aos 12 anos de idade;
recebeu então o nome de batismo Anthony, que deu origem à sua designação
literária, Toni.
Em 1958, Toni Morrison se casou com
o arquiteto jamaicano Harold Morrison que também lecionava, como ela, na
Universidade de Howard. Ela concluiu seu mestrado em inglês com a tese sobre o
suicídio nos livros de William Faulkner e Virginia Wolf. Toni Morrison ganhou o
Prêmio Nobel de Literatura de 1993.
Apesar de abordar aspectos
feministas em seus livros, ela não se considera como tal, tendo dito, certa
feita, “não concordo com o patriarcado e não acho que ele deva ser substituído
pelo matriarcado. É uma questão de acesso igualitário, de abrir portas para
todo os tipos de coisa.” Os críticos costumam apontar, entretanto, aspectos de
um feminismo pós-moderno em suas obras.
Seu trabalho mais famoso é Beloved
(Amada); quando foi anunciado que a
obra não ganhara nenhum prêmio, 48 críticos literários e escritores negros
protestaram.
“Esta é a casa. É verde e branca. Tem uma porta vermelha. É muito bonita. Esta é a família. A mãe, o pai, Dick e Jane moram na casa branca e verde. Eles são muito felizes. Veja a Jane. Ela está de vestido vermelho. Ela quer brincar. Quem vai brincar com Jane? Veja o gato. Está miando. Venha brincar. Venha brincar com a Jane. O gatinho não quer brincar. Veja a mãe. A mãe é muito boazinha. Mãe, quer brincar com a Jane? A mãe ri. Ria, mãe, ria. Veja o pai. Ele é grande e forte. Pai, quer brincar com a Jane? O pai está sorrindo. Sorria, pai, sorria. Veja o cachorro. Au-au, faz o cachorro. Quer brincar com a Jane? Veja o cachorro correr. Corra, cachorro, corra. Olhe, olhe. Aí vem um amigo. O amigo vai brincar com a Jane. Eles vão jogar um jogo gostoso. Brinque, Jane, brinque.” (página 13)
Assim é o parágrafo inicial deste O Olho Mais Azul. As irmãs Frieda e
Claudia recebem a adolescente Pecola Breedlove em casa:
“Ela dormia na cama conosco. Frieda na beirada, porque é corajosa – nunca lhe ocorre que, se a mão dela ficar pendurada na beirada da cama, ‘alguma coisa’ vai sair rastejando lá debaixo e arrancar os dedos dela com uma mordida. Durmo junto da parede porque esse pensamento me ocorreu. Portanto, Pecola teve que dormir no meio.
Mamãe tinha dito, dois dias antes, que estava chegando um ‘caso’ – uma menina que não tinha para onde ir. O condado a havia colocado em nossa casa por alguns dias, até decidir o que fazer cm ela ou, mais precisamente, até que a família se reconciliasse. Deveríamos ser simpáticas com ela e não brigar. Mamãe não sabia ‘o que dá nas pessoas’, mas o Breedlove, aquele cachorrão, tinha incendiado a própria casa, dado uma surra na mulher e o resultado foi que ficou todo mundo na rua.” (página 26)
Aí ficamos sabendo que ‘ficar na
rua’ era o pior que poderia acontecer a alguém, naquele condado. Era muito
diferente de ‘ser posto para fora’. Conforme nos explicita a narradora, ‘estar
na rua’ era algo degradante, um fato físico e irrevogável, “definindo e
completando nossa condição metafísica”. Já ser posta para fora, a pessoa pode
ir para outro lugar, o peso é menor e não definitivo.
Pecola Breedlove é descrita como
uma garota muito feia, não por ser negra, mas por ser da família Breedlove,
como o pai, Cholly e a mãe, Sra. Breedlove, Sammy, que estava com outra família.
Cholly estava preso.
“Nos poucos dias que Pecola passou conosco, nós nos divertimos. Frieda e eu paramos de brigar uma com a outra e nos concentramos na hóspede, fazendo força para que não se sentisse na rua.” (página 28)
Pecola tinha um desejo secreto:
desejava ter olhos azuis:
“Toda noite, sem falta, ela rezava para ter olhos azuis. Fazia um ano que rezava fervorosamente. Embora um tanto desatinada, não tinha perdido a esperança. Levaria muito, muito tempo para que uma coisa maravilhosa como aquela acontecesse.” (página 56)
É que, na cabeça de Pecola, tudo se
arranjaria para ela quando tivesse olhos azuis. Eram uma marca física de beleza
máxima e teria o dom de mudar sua triste realidade.
A relação dos pais era um tanto
complicada, pois Cholly, seu pai, sempre chegava bêbado em casa, se atirava
sobre a cama e dormia. Sua mãe tentava obter alguma reação dele e não
conseguia; por isso, terminou sendo uma mulher pessimista e azeda, como fica
claro nesta passagem em que – digamos – ela tem uma relação muito especial com
Jesus:
“E uma vez, quando um gesto de bêbado atirou Cholly contra o fogareiro em brasa, ela gritou: ‘Pega ele, Jesus! Pega ele!’. Se Cholly tivesse parado de beber, ela jamais teria perdoado Jesus. Precisava desesperadamente dos pecados de Cholly. Quanto mais ele afundasse, quanto mais selvagem e irresponsável se tornasse, mais esplêndidas se tornavam ela e sua tarefa. Em nome de Jesus.” (página 52)
O livro conta com várias
referências a filmes americanos. Por exemplo, o nome de Pecola fora tirado do
filme Imitação da Vida, em que “a
moça mulata odeia a mãe porque ela é preta e feia, mas depois chora no
enterro”. O filme tem no elenco Sandra Dee, Lana Turner, Juanita Moore, Susan
Kohner e John Gavin.
Esta questão do racismo está
presente no livro todo, como deixa claro a passagem seguinte:
“Meninos brancos; a mãe não gostava que ele brincasse com pretinhos. Ela lhe havia explicado a diferença entre mulatos e pretos. Era fácil identificá-los. Os mulatos eram limpos e silenciosos; os pretos eram sujos e barulhentos. Ele pertencia ao primeiro grupo: usava camisas brancas e calças azuis; cortava o cabelo o mais rente possível para evitar qualquer sugestão de carapinha e a risca era desenhada pelo barbeiro. No inverno a mãe passava loção Jergens no rosto dele para que a pele não ficasse cinzenta. Embora fosse clara, a pele podia ficar cinzenta. A linha entre mulato e preto nem sempre era nítida; sinais sutis e reveladores ameaçavam erodi-la e era preciso estar constantemente atento.” (página 96)
Em sua adolescência, Pecola sonhara
ser bela, branca e loura como Shirley Temple, atriz-mirim, considerada um
prodígio, estrela de filmes como Anjo
Azul e A Pequena Órfã. Quanto
mais se fortalece este seu desejo, mais o entorno social lhe lembra sua
condição de negra e feia.
Pecola procura, então, certo
Soaphead Church, uma espécie de curandeiro do lugar. Eis a descrição da cena e
do que ela lhe pede:
“Soaphead Church a mandou entrar.
“O que é que eu posso fazer por você, minha criança?”
Ela ficou ali parada, com as mãos cruzadas sobre o estômago, uma barriguinha um pouco saliente. “Talvez. Talvez o senhor possa me ajudar.”
“Ajudar como? Diga, não tenha medo.”
“Os meus olhos.”
“O que é que tem os seus olhos?”
“Eu quero que eles sejam azuis.”
Soaphead franziu os lábios e tocou com a língua uma obturação de ouro. Aquele era o pedido mais fantástico e, ao mesmo tempo, mais lógico que já lhe tinham feito. Ali estava uma menina feia pedindo beleza.” (página 181)
Mal sabe Pecola que a obtenção dos
olhos azuis, tão desejados, não será suficiente para lhe dar a vida tão
sonhada.
O
Olho Mais Azul é o primeiro romance de Toni Morrison. Embora tenha gostado
dele no geral, não gostei – e isto é inteiramente pessoal – do investimento que
a autora faz na figura de Cholly, o pai de Pecola. A caracterização deste
personagem gasta várias páginas. Explico-me melhor: em literatura, se os
personagens são os principais, justifica-se o autor investir muito na
caracterização dele. Agora, se o personagem é secundário, a carga de
informações sobre ele não deve ser tão grande.
Não é o caso, mas, se na vida, há
pessoas que entram e saem da nossa vida, apenas tocando nosso caminho, numa
obra literária tal situação deve ser evitada por uma questão de economia de
meios. Somente entram personagens que têm alguma função na história.
Exceto este senão, o livro é muito
bom. Uma frase que fecha o romance mereceria estar numa moldura:
“O amor nunca é melhor do que o amante. Quem é mau, ama com maldade, o violento ama com violência, o fraco ama com fraqueza, gente estúpida ama com estupidez, e o amor de um homem livre nunca é seguro. Não há dádiva para o ser amado. Só o amante possui a dádiva do amor. O ser amado é espoliado, neutralizado, congelado no fulgor do olho interior do amante.” (página 212)
Não concordo cem por cento com tais
dizeres. É coerente com a história de vida da personagem, com o tema do livro.
E é bonito, produz reflexão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário