Esta obra é escrita a três mãos, polifonia de três vozes sobre um
mesmo tema, já indiciado pelo título: Felicidade
foi-se embora? Escreveram-na Frei Betto, Leonardo Boff e Mario Sergio
Cortella.
E, contrariamente ao que sempre faço (é bom a gente se reiventar, de
vez em quando), já começo contando um causo,
que é como nós, mineiríssimos, gostamos de dar a essa palavra nosso sotaque.
Gostamos de causos.
Era uma quarta-feira, dia da palestra tríplice e lançamento do livro
em questão. Entrada gratuita, sendo necessário apenas o comparecimento duas
horas antes do horário marcado para o início do evento. Lá fui eu, na
expectativa de poder fruir a reflexão desses três, os quais tanto admiro. Não contava
com um incidente: mesmo chegando cedo, muitas, muitas outras pessoas chegaram
mais cedo ainda; dessa forma, foi-me impossível atingir o meu intento.
Podia, é claro, ter dois sentimentos. Sabe aquela coisa de se ver o
copo meio cheio ou meio vazio? Pois é. Eu podia ficar irritado contra alguma
coisa indefinida, deixar o sentimento de frustração tomar conta de mim, ou
podia – estoicamente – deixar-me ficar contente, pois aquela enorme fila de
pessoas comuns à minha frente significava exatamente isso: pessoas comuns,
gente como a gente, interessada em algo mais reflexivo, mais profundo, mais
filosófico. Optei pelo copo meio cheio.
“Frei Betto – diz-nos a orelha do livro – é
frade dominicano e escritor. Estudou Jornalismo, Filosofia, Antropologia e
Teologia. Possui 60 títulos publicados, muitos deles
traduzidos do exterior.
O reconhecimento de seu talento literário o fez merecer os prêmios
Jabuti (1982); da Associação Paulista de Críticos de Arte (1998) – “Melhor Obra
Infantojuvenil” com o livro A noite em
que Jesus nasceu, editado pela Vozes; e o Prêmio Alba de Literatura (2009).
Entre suas obras literárias se destacam Sinfonia
universal – A cosmovisão de Teilhard de Chardin, A arte de reinventar a vida e, em parceria com Leonardo Boff, Mística e espiritualidade, editadas pela
Vozes.
Ao longo de sua trajetória, Frei Betto tem recebido vários prêmios por
se destacar na luta pelos direitos humanos, com destaque para o Prêmio
Intrernacional Unesco José Martí, para o qual foi indicado por unanimidade em
2012. Recebeu, em 2015, o título Doutor Honoris Causa em Filosofia da
Universidade de Havana.”
“Leonardo
Boff – continua a orelha do livro – (1938) foi por mais de 20 anos professor de
Teologia Sistemática no Instituto Franciscano de Petrópolis e posteriormente
professor de Ética, Filosofia da Religião e de Ecologia Filosófica na
Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Também professor-visitante em várias
universidades estrangeiras. Por muitos anos coordenou as publicações religiosas
da Editora Vozes e especialmente a Obra Completa de C. G. Jung. É membro da
Iniciativa Internacional da Carta da Terra, da qual é um dos corredatores. Em 2002
foi galardoado pelo Parlamento Sueco com o Prêmio Nobel Alternativo da Paz, por
associar ecologia com justiça social e espiritualidade.
É autor de quase cem livros, em sua maioria publicados pela Editora
Vozes, entre os quais se destacam: Ecologia
– Grito da Terra; grito dos pobres; O
Tao da Libertação – Explorando a ecologia da transformação, junto com o
cosmólogo Mark Hathaway; O rosto materno de Deus; A Trindade e a Sociedade. Por
mais de 15 anos é colunista semanal do Jornal
do Brasil.”
“Mario Sergio Cortella, nascido em Londrina,
em 05/03/1954, - seguem as informações do livro – filósofo e escritor, com
mestrado e doutorado em Educação, professor-titular da PUC-SP (na qual atuou
por 35 anos, 1977-2012), com docência e pesquisa na Pós-Graduação em Educação:
Currículo (1997-2012) e no Departamento de Teologia e Ciências da Religião
(1977-2007).
É professor-convidado da Fundação Dom Cabral (desde 1997) e ensinou no
GVpec da FGV-SP (1998-2010). Foi secretário municipal de Educação de São Paulo
(1991-1992), tendo antes sido assessor especial e chefe de gabinete do Prof.
Paulo Freire.
Comentarista da Rádio CBN no Academia
CBN (rede nacional, de segunda a sexta-feira) e Escola da Vida (capital paulista às terças e quintas-feiras). É autor
de dezenas de obras de sucesso.”
Felicidade foi-se embora? é
uma pequena obra sobre o tema “felicidade”. Mas dizer somente isso não basta;
da cabeça maravilhosa dessas três figuras sai um livro absolutamente
fascinante. Texto leve, poético muitas vezes; naturalmente, Frei Betto vai nos
dar uma visão eminentemente religiosa (o termo não tem aqui a conotação de
religião católica, como se pode erroneamente inferir, mas o de religiosidade),
centrando a felicidade como uma experiência transcendente do ser humano.
Ele nos conta uma Parábola das sementes
de felicidade, a qual vale a pena transcrever:
“Um homem muito rico, porém infeliz, vendeu todos os seus bens, disposto a comprar, a qualquer custo, a felicidade. Saiu pelo mundo afora com suas arcas repletas de barras de ouro. Nas Arábias, soube por um jovem cameleiro que, em pleno deserto, junto a um oásis, havia uma tenda sobre a qual se erguia um anúncio: “Felicidade”.
Esperançoso, o homem partiu rumo ao local indicado. Após muitos dias de viagem, acompanhado pela fila de camelos com suas arcas cheias de ouro, atingiu o oásis. De fato, lá estava a tenda da “Felicidade”. Ao entrar, deparou-se com um balcão e, do lado de dentro, uma atenciosa moça.
“É aqui que se encontra a felicidade?”, indagou. “Sim, é aqui”, confirmou a moça. “Quero comprá-la. Não importa o preço. Estou disposto a pagar por ela toda a minha fortuna”.
A moça fitou-o compassiva e disse: “Não vendemos felicidade”. O homem ficou indignado: “Como não vendem!? Posso pagar quanto pedirem!” A moça sorriu e retrucou: “Senhor, não vendemos; damos”. “Dão? De graça?” “Sim, de graça”, confirmou a balconista.
Ela se enfiou nos fundos da tenda e, pouco depois, retornou. Sobre o balcão, depositou uma pequena embalagem, do tamanho de uma caixa de fósforos. “Toma, senhor. Pode levar. Aqui está a felicidade.”
O homem, espantado, sem entender o que sucedia, abriu a caixinha e se deparou com uma dúzia de pequenas bolinhas pretas. “O que é isso? Não compreendo”, queixou-se.
A moça tomou a caixa em mãos e apontou as bolinhas: “Esta aqui é a semente da amizade; esta, da solidariedade; esta, da fidelidade; esta, da generosidade. Se o senhor souber cultivá-las, será um homem feliz.” (páginas 20-22)
Para aqueles que acharem o texto do Frei Betto muito fluido, poderão contentar-se com o escrito por Leonardo Boff. Alertando já de início que “por
mais definições que se tenham dado, elas não vão além daquilo que Aristóteles
em sua Ética a Nicômaco já explanou.”
Ela (a felicidade), sendo um fruto do agir bem e do viver bem, resulta de um
modo de vida virtuoso.
Boff vai dar importância ao modo como nos relacionamos com Gaia – a Terra.
Porque ela é, raciocina ele, a que nos dá condições de sustentação de vida. Somos
seres integradas à natureza. Cita, por exemplo, os astronautas:
“Daqui de cima não há diferença entre Terra e humanidade. Elas formam uma unidade complexa, constituem uma única grande e diversa realidade”. (páginas 62)
E Leonardo Boff conclui daí:
“Se vivermos consoante ao ritmo musical da Terra, se nos afinarmos à sua melodia, se cuidarmos dela com terno afeto, como cuidamos de nossas mães, colheremos o melhor fruto, que é a felicidade.” (página 62)
O texto de Mario Sergio Cortella é talvez mais acadêmico, embora, no
fundo, essa tentativa de caracterização não diga muita coisa. Cortella nos
avisa que a felicidade é circunstancial; somente o alienado é feliz por toda a
sua vida. E somente conseguimos nos avaliar como felizes porque fomos, alguma
vez, anteriormente, infelizes:
“Felicidade não é um estado contínuo, não pode nem deve sê-lo. E nem seria possível, pois isso colocaria a pessoa próxima do estado de demência. Não se confunda felicidade com euforia. A euforia contínua é um distúrbio mental. Afinal de contas, estamos num mundo onde há atribulações, passos tortos, turbulências, problemas.” (páginas 81/82)
Este não é um livro resumível. Os três autores são talentosos ao lidar
com a escrita. Provam por a + b que filosofia não tem que ser uma coisa chata,
bocejante. Outra coisa boa de se constatar, com posturas analíticas tão
diferentes, esses três amigos dão o exemplo de, como quer Edgar Morin, é
possível ser-se diverso na unidade. Três maneiras diferentes de ver o objeto de
suas análises resultam num livro coeso, polifônico, mas equilibrado e uno.
A visão de Leonardo Boff, pensei ao concluir o rascunho dessa resenha,
me fez lembrar muito da filosofia contida no filme Avatar, do diretor James Cameron. Não é só um filme bem feito
esteticamente, mas divulgador da ideia de que todos estamos de algum modo
unidos à Gaia. Os Na’Vi são os
habitantes do planeta Pandora e vivem em íntima integração com as forças da
natureza. Colaboram com elas e delas tiram seu sustento e sua harmonia. O elemento
perturbador dessa paz é o homo ambiciosus. Não é
demais lembrar que Jake Sully precisa morrer para a ambição humana para
integrar-se à natureza de Pandora, “renascendo” para a harmonia e para o amor
de Neytiri. Precisa cumprir a epopeia
de uma profecia: a de que o elemento portador do mal também será o elemento
restaurador das Forças Harmônicas.
Disse no começo que Felicidade
foi-se embora? é uma pequena obra sobre o tema felicidade. Ledo engano! É,
na verdade, uma grande obra; suas 130 páginas nos mergulham numa sensação
preconceituosa (no sentido de conceito formado antes da experiência em si); os
textos são gostosamente densos, vozes de bons pais para filhos, ou seja, com
carinho e respeito. Que mais se pode exigir de um livro?
BETTO, Frei; BOFF, Leonardo; CORTELLA, Mario Sergio. Felicidade foi-se embora?. Editora
Nobilis/Vozes. Petrópolis, RJ: 2016.
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