Francisco
Buarque de Hollanda quase dispensa apresentação. Filho de outro ícone da
cultura brasileira, o historiador e crítico literário Sérgio Buarque de
Hollanda, Chico Buarque é autor de músicas que o colocaram no primeiro time da
chamada MPB. É também escritor com uma produção literária não muito ampla, mas
solidamente constituída.
Escreveu Fazenda Modelo, Estorvo, Benjamim, Budapeste, Leite Derramado e, mais recentemente, O Irmão Alemão.
Este romance Benjamim não é das narrativas mais fáceis de se ler. Há obras
literárias para determinadas faixas de maturidade, isto é, considero um
desserviço entregar, por exemplo, obras de Machado de Assis para leitores pouco
amadurecidos lerem. E não ajudam nada, defendo eu, as famigeradas adaptações de
clássicos.
Mas essa é uma discussão para
outra ocasião.
Benjamim tem uma estrutura
circular; isto equivale dizer, no caso, que a obra se inicia por onde termina. Benjamim
Zambraia é fuzilado logo na primeira página, primeiro parágrafo. Naqueles minutos
entre os disparos dos fuzis e sua morte toda sua vida passa diante de seus
olhos, em tempo de memória. Entretanto, esta não será uma memória objetiva,
precisa; muito do mundo dos sonhos estará ali presente, num elaborado jogo de
espelhos.
Vejamos:
“O pelotão estava em forma, a voz de comando foi enérgica e a fuzilaria produziu um único estrondo. Mas para Benjamim Zambraia soou como um rufo, e ele seria capaz de dizer em que ordem haviam disparado as doze armas ali defronte. Cego, identificaria cada fuzil e diria de que cano partira cada um dos projéteis que agora o atingiam no peito, no pescoço e na cara. Tudo se extinguira com a velocidade de uma bala entre a epiderme e o primeiro alvo letal (aorta, coração, traquéia, bulbo), e naquele instante Benjamim assistiu ao que já esperava: sua existência projetou-se do início ao fim, tal qual um filme, na venda dos olhos.” (página 5)
Benjamim é um ex-modelo
fotográfico:
“Fez-se filmar durante toda a juventude, e só com o advento do primeiro cabelo branco decidiu abolir a ridícula coisa. Era tarde: a câmera criara autonomia, deu de encarapitar-se em qualquer parte para flagrar episódios medíocres, e Benjamim já teve ganas de erguer a camisa e cobrir o rosto no meio da rua...”(página 7)
Ele conhece certa Castana Beatriz
e por ela se apaixona, repelido pelo pai dela, que não via futuro naquilo que o
pretendente da filha fazia. Como o pai surpreendera uma fotografia de Castana em
biquíni de duas peças, numa capa de revista, manda-a para o exterior. Posteriormente,
ela retorna e reassume o relacionamento com Benjamim.
Castana Beatriz é uma ativista
nos anos 60, duros anos da ditadura e, como Benjamim acredita que por sua causa
ela fora morta, ele vive obsediado por seu sentimento de culpa. Não será
difícil, portanto, ao conhecer outra personagem, Ariela Masé – alguma coisa
nela lhe lembra Castana – que ele se ligue afetivamente a ela.
Manipulando tais elementos de
ficção do tipo thriller, Chico
Buarque nos leva a uma situação complexa, em que elementos ficcionais e
biográficos dos personagens vêm misturados.
Um pouco da biografia de Castana
Beatriz:
“Castana Beatriz sempre foi péssima aluna, mal completou o ginásio, colava, fumava no banheiro, foi expulsa do colégio de freiras, só foi readmitida porque o pai era um benemérito, e a essa altura da vida queria fazer crer a Benjamim que se convertera ao universo acadêmico. Benjamim não fez o espetáculo de ciúmes que agora talvez fizesse. Preferiu arriscar a reviravolta drástica, que daqui para sempre renegará: levou Castana Beatriz a um restaurante bolorento e propôs-lhe que se casasse com ele. Agora é claro que ele retira a proposta. Mas não é capaz cancelar a reação de Castana Beatriz, que soltou uma gargalhada e jogou para trás a cabeça cheia de cachos castanhos.” (página 56)
A narrativa, do ponto de vista
histórico, se passa em duas épocas: a primeira, em que existe o relacionamento
de Benjamim Zambraia e Castana Beatriz, durante a didatura dos anos 60; a
segunda, em que circulam o protagonista e Ariela Masé, já nos anos 70.
Um outro ponto de destaque é a
capacidade de Chico Buarque de lidar com detalhes miúdos, de uma vida
absolutamente corriqueira:
“Ariela arregaça a meia-calça, calça a perna direita, a esquerda, levanta-se, acaba de ajustá-la às virilhas e desconfia que a vestiu de trás para diante. Despe-se, tateia a cabeceira, tateia os lambris da parede, topa num pé de sapato, alcança o espaldar da poltrona, apalpa a saia plissada e o casado do tailleur. Chega à porta do quarto, mercê de uma nesga de luz rente ao carpete, e atravessa nua a sala de jogos que dá no bar que dá no salão de visitas, onde as lâmpadas ficam acesas.” (página 141)
Os vários personagens – Castana,
Ariela, Benjamim, Alyandro Sgaratti – não são protagonistas de suas próprias
vidas. A vida os leva, as situações constroem suas ações, isto é, eles reagem
aos fatos, aos acontecimentos, mas não os criam. Alyandro Sgaratti, por
exemplo, fora um puxador de carros na adolescência, depois se torna o rei das
peças usadas originadas de desmanches clandestinos e, diríamos, num automatismo
determinante, chega à carreira de político corrupto. Sua candidatura é o
resultado de uma campanha de marketing político.
Aqui nesse blog já foi resenhado
o livro Leite Derramado, do mesmo autor. Como aquele, esse Benjamim é leitura altamente recomendada, mas, como a outra obra,
não é uma leitura das mais fáceis. Chico possui uma narrativa densa, cheia de
pormenores, ritmos e rimas, referências em planos mais elaborados que,
obviamente, o tornam um autor recomendado para leitores com mais experiência de
vida, de leituras mais sutis; ele é daqueles escritores que, provavelmente, não
serão considerados best-sellers, mas sim alcançarão prestígio e consideração da
cognominada “Alta Literatura”.
Dele, disse certa vez o também
escritor José Saramago, Hollanda seria uma voz realmente importante e nova na
literatura brasileira.
HOLLANDA, Francisco Buarque de. Benjamim. Editora Companhia das Letras,
2ª edição. São Paulo, SP: 1995
Nenhum comentário:
Postar um comentário