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Título:
A Rainha do Ignoto Autora:
Emília Freitas Editora:
Wish Edição:
2ª Copyright:
2021 ISBN:
978-85-67566-27-6 Origem:
Literatura brasileira Gênero:
romance fantasia/ficção científica |
Projeto Escritoras Esquecidas – 2
Emília Freitas
nasceu em Aracati, Ceará, em 11/01/1855 e veio a falecer em Manaus, capital do
Estado do Amazonas, em 18/10/1908, portanto, com 53 anos de idade. Filha de
Antônio José de Freitas, tenente-coronel, e de Maria de Jesus Freitas; após o
falecimento do pai, a família muda-se para Fortaleza. Emília, ali, teve aulas
de inglês, francês, geografia e aritmética, num colégio particular. Transferiu-se,
depois, para a Escola Normal e se tornou professora.
A partir de 1873,
colaborou em diversos jornais literários do Ceará, e outros, de Belém do Pará. São
poesias, depois compiladas num volume intitulado Canções do Lar (1891). Em
1899, ela publicou este A Rainha do Ignoto. Consta, ainda, que ela tenha
escrito outro romance, mas dele não temos mais do que poucas notícias.
A vida não foi
benigna com Emília. Perdeu, aos poucos todos os familiares. Emília Freitas era uma
mulher branca, mas, mesmo assim, teve enorme dificuldade em tornar-se
escritora. Naquela época, mulheres deveriam ficar quietas, cuidando de seus
lares. Apesar disto, ela conseguiu algum reconhecimento.
Casou-se muito
tarde para a época, aos quarenta e cinco anos. As moças costumavam contrair
matrimônio aos dezesseis, aos dezoito anos de idade. Em 1900, em Manaus, teve
por marido Arthunino Vieira, jornalista e redator do Jornal de Fortaleza.
Residentes na Serra do Maranguape, Ceará, tiveram outra parceria: fundaram o grupo religioso Verdade e Luz (Centro
Espírita).
Tempos depois,
mudaram-se para Belém, onde fundaram o Centro Espírita Paraense. Naquele tempo,
o espiritismo era tão perseguido quanto o candomblé e o casal teve sua casa
apedrejada.
Emília posicionou-se
como pacifista, contra a Guerra do Paraguai, na qual dois irmãos seus serviram
como voluntários. Era francamente contra a escravidão, feminista e
assumidamente espírita. Uma mulher assim, vivendo numa sociedade fortemente
patriarcal, não podia mesmo obter notoriedade.
Quanto mais
antigo é um livro, mais teremos de recorrer a conhecimentos da época envolvida,
para conseguirmos entender as referências usadas pelo autor. É o caso de A
Rainha do Ignoto.
O livro foi
escrito no século XIX. O Romantismo, como escola literária, dominava o período,
com o espelhamento dos sentimentos dos personagens nas descrições da natureza. Por
exemplo, se alguém estivesse triste, a natureza apresentava-se chuvosa; os
transportes de felicidade se faziam sob um céu límpido e cheio de sol. A Escola
Romântica não foi o único fato de importância.
É também quando
temos a Revolução Industrial, modificando as relações de trabalho, invenções como
o automóvel, o telefone, Freud dá a conhecer a psicanálise, Charles Darwin
publica A Origem das Espécies, os trens rasgam as distâncias. A ciência
desponta com seus métodos experimentais. Cria-se aí o ambiente propício à
eclosão das histórias futuristas, inflamadas pela ciência. O gênero literário
ainda não está delineado; muitas vezes, deixa-se influenciar pelas narrativas
de aventuras ou exploração de lugares exóticos.
O conservadorismo
dos costumes, defendido pela Era Vitoriana, na Inglaterra, se espalha por todos
os lugares. Às mulheres eram reservados o lar e as futilidades; entretanto,
sempre houve quem, dentre elas, se empenhasse em romper este status quo.
Contextualização feita,
vamos ao romance A Rainha do Ignoto. A Literatura sempre me entusiasma:
quando penso que já li de tudo, descubro algo que me encanta, que me propõe novas
abordagens. E, como neste romance, pode ser que não seja um livro novo; este é
de 1899.
A obra de Emília
Freitas desconcerta o leitor. É uma ficção científica? É um romance gótico? Será
uma fantasia? Há um pouco de cada um destes elementos. A imaginação desta
autora toca, às vezes, o inverossímil.
A Rainha do Ignoto
me lembrou de Jules Verne, de Vinte Mil Léguas Submarinas, Marion Zimmer
Bradley, de As Brumas de Avalon e, de quebra, H. G. Wells, de A Ilha
do Dr. Moreau.
Há mistérios
lançados no livro, esperando a atenção do leitor. Esta moça que aparece numa
canoa e a quem a população chama de Funesta, afinal, é uma bruxa? Uma
fada, como o afirmam alguns? Um ser encantado? Por que ela aparece assim –
sozinha, tocando uma harpa? Seu passado esconde alguma tristeza intransponível,
como ela faz parecer?
“O Jaguaribe corria em frente da janela, onde o Dr. Edmundo ficou ainda a cismar; mas sua vista errante parou sobre a lua erguendo-se no firmamento azul, como uma hóstia de ouro.
A solidão era completa, o silêncio era profundo!
Nem o vento movia os ramos das árvores. Elas se levantavam do meio da sombra projetada pela copa, como espectros cismadores.
De repente, soou ao longe uma voz doce e triste entoando uma canção francesa, e era tão saudosa, tão cheia de melancolia que as próprias pedras da margem pareciam comover-se, escutando:
Te souvient tu Marie
De notre enfance au champs
Notre jouet a la prairie,
J’avais alors quinze ans.
A voz era de mulher e vinha se aproximando. Já se distinguia o som de uma harpa com que ela se acompanhava.” (páginas 39/40)
É neste trecho
que o Dr. Edmundo, advogado, tem o primeiro contato com a chamada Funesta
– a Rainha do Ignoto. Personagem estranha, cercada de mistério, logo tem a
atenção do doutor. As pessoas a seu redor não têm muitas explicações; apenas
sabem que ela aparece de repente, às vezes seguida por um enorme cão negro como
a noite e de olhos esbraseados e um ser recurvado, um orangotango. Estaríamos,
aqui, em contato com o mito fáustico (venda da alma ao diabo), que tanta
literatura produziu? Não, não se trata disto.
Com o interesse
aguçado, o Dr. Edmundo obtém a informação de Funesta aparecer sempre lá
pelas bandas da Serra do Areré. A moça encantada sai de uma gruta inexplorada,
mas de acordo com Valentim – personagem que dialoga com o Dr. Edmundo – é melhor
não ir lá, pois
“Ela tem pacto com Satanás! Dizem que, onde aparece, é desgraça certa. Chamam-na “A Funesta”. Deus me livre de encontrá-la.” (página 39)
Para o bem do
mistério e do enredo, o Dr. Edmundo não obedece às recomendações de Valentim.
Outros personagens
misteriosos entram nesta história. Probo, o caçador de onças, é um homem
solitário, de poucas palavras. Ele e Roberta, sua esposa, moram em uma casinha
isolada. Com o casal, vive a filha Diana, moça bonita e sobre a qual ninguém
pode dar informações detalhadas. No entanto, é Probo quem iniciará Edmundo
naqueles mistérios funestos.
Probo revela ao doutor
que Funesta é a Rainha do Ignoto (em tempo, ignoto significa “desconhecido”,
“incógnito”). Ela possui vários navios a vapor, mas viaja sempre no Tufão
e lidera o que ele chama de uma maçonaria só constituída por mulheres. Às vezes,
estas paladinas (a associação com as amazonas da mitologia grega é imediata),
disfarçadas, se misturam à população para melhor agirem.
Elas vivem na
Ilha do Nevoeiro. Um local perto da costa, mas que ninguém viu. Pelas
revelações de Probo, envolta em neblina, a ilha é mantida ignorada de todos em
parte pelo nevoeiro, em parte pela prática da hipnose a distância. As habitantes
da Ilha do Nevoeiro são cultas, corajosas e têm muito poder.
Este trecho me
fez lembrar de três obras, já referidas acima: Vinte Mil Léguas Submarinas
(o Capitão Nemo também mantém a base do Nautilus numa ilha ocultada), As
Brumas de Avalon (Morgana habita uma ilha envolta em neblina mágica). Há mesmo
certa ligação com A Ilha do Dr. Moreau (é numa ilha desconhecida que o
tal Dr. Moreau faz suas tétricas experiências). A obra de Marion Zimmer Bradley
é muito posterior à de Emília Freitas. Explica-se a lembrança por As Brumas
de Avalon serem uma recriação literária de lendas muito mais antigas, do ciclo
arturiano da literatura inglesa.
Disfarçado de
mulher, o Dr. Edmundo pôde visitar a Ilha do Nevoeiro e acompanhar de perto
todo o trabalho desenvolvido pela Rainha do Ignoto e suas paladinas. O local
conta com uma imensa biblioteca, inclusive, com obras espíritas. Kardec e
Camille Flammarion são citados nominalmente. Para quem não sabe, Camille, além
de ter trabalhado junto a Kardec, era também um astrônomo de renome do século
XIX.
Probo não é só o
introdutor do Dr. Edmundo nos mistérios das paladinas. Ele é um personagem que
funciona como contraponto das ideias da Rainha do Ignoto, representando, deste
modo, as opiniões da maioria das pessoas. Vejamos alguns trechos, em que Probo
reproduz falas da Rainha, em tom de desagrado:
“...não há lei alguma de direito humano que possa escravizar um cidadão que a condição de escravo resultou de um abuso de força contra a fraqueza...”
“A pena última é o recurso dos governos impotentes para regenerar o criminoso pela instrução e pelo trabalho.”
“... o rei é o produto da ignorância dos povos antigos, que ainda não estavam em estado de governarem-se...” (todas as citações nas páginas 185/186)
A cada uma destas
condenações de Probo, o Dr. Edmundo antepõe suas aprovações: então a personagem
em questão é uma rainha republicana – coisa admirável –; é abolicionista – tem ideias
sãs –; ao ouvir que ela é espírita, antepõe, zombando: “Espírita! Mais um
crime!”
Disse acima que
há certas características de romance gótico. Por este rótulo, reconhecem-se
narrativas ligadas ao terror, ao sombrio, ao fantasmagórico. Por exemplo, Frankenstein,
Drácula, O Morro dos Ventos Uivantes.
Eis um trecho:
“A lua pairava no céu azulado, derramando uma luz pálida e saudosa sobre o mármore dos túmulos. O silêncio da hora, a tristeza do lugar, o mistério dos vivos casado ao mistério dos mortos traziam ao coração do Dr. Edmundo o frio do pavor!” (página 270)
Nem só de
mistérios e peripécias femininas vive este bom romance. Em outra vertente
temática, há a história de amor de Carlotinha pelo Dr. Edmundo. Ele, porém, só
tem olhos para a Rainha do Ignoto. Acompanhando Probo e a mulher dele, Roberta,
ele se ausenta do povoado por nada menos que três anos. Entretanto, o escritor –
no caso, escritora – emula Deus e linhas que se afastam também podem se
aproximar...
Desejo marcar
outra passagem, esta, como exemplo dos recursos usados pela Escola do
Romantismo:
“— Meu coração foi como tu, oceano! Lidou sem cessar, mas tu continuas, e ele despedaçou-se como esses navios que voam com o arfar do teu seio. Tu ficas e eu vou... Adeus, querido oceano, imagem de minhas dores, adeus! Tu guardas em teu seio tesouros que nunca foram vistos, e eu guardo em meu peito segredos que não foram adivinhados. As cãs de minha fronte são comuns a tuas vagas, espuma vaporosa onde se reflete a luz da lua, o cintilar das estrelas e o clarão do sol. Adeus, irmão de minha alma, retrato de minha vida.” (página 367)
Certamente, não
será uma obra a agradar todo leitor. Ela contém, como visto, aqueles clichês do
romantismo. Além disso, há períodos longos. São muitas as frases exclamativas,
o que confere ao texto o tom de sentimentalismo. Mas – isto acontece com os
clássicos – para além de tais clichês e “defeitos”, A Rainha do Ignoto
chega aos nossos dias com ainda algo a nos dizer.
A edição que
tenho é a da Editora Wish. Um belo tratamento devido a um clássico esquecido. Percebo
um movimento de resgate destas mulheres escritoras corajosas. Desejo ingressar
nesta fileira dos que valorizam tais leituras. E descubro, outra escritora
esquecida, contemporânea de Emília Freitas, e igualmente cearense, Francisca
Clotilde. Ela escreveu um romance abolicionista e feminista, A Divorciada.
Para finalizar, o
livro A Rainha do Ignoto traz o prefácio O Fantástico Ignoto de Uma
Rainha, da autoria do professor Alexandre Meireles da Silva e o posfácio Paladina
das Paladinas, assinado pela professora Adrianna Alberti.
O prof. Alexandre
me dá duas referências que me deixam assanhado: o primeiro romance de ficção
científica escrito no Brasil é O Doutor Benignus (1875), de Augusto
Emílio Zaluar (há uma edição atual dele). Outra referência preciosa, O Mundo
Resplandecente (1666!), de Margaret Cavendish, Duquesa de Newcastle.
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