Autor: Mário Magalhães
Editora: Record
Edição: 1ª
Copyright: 2019
ISBN: 978-85-01-11714-4
Origem: Brasil
Gênero: História
Pequena bibliografia do autor: O
Narcotráfico (1999); Viagem ao País do Futebol, em parceria com o fotógrafo Antônio
Gaudério (1998); Crescer a Golpes (2013); Ciudades visibles (2016); 11 Gols de
Placa (2010).
Impressões ao ler:
O ano de 2018 foi realmente o ano em que o Brasil flertou
com o apocalipse, como está escrito na quarta capa deste livro. À medida que eu
o lia, iam desfilando diante dos meus olhos e reavivando minha memória fatos e
acontecidos. Uma coleção de estranhamentos, embora já vividos. É que, vistos
assim, em conjunto e em sequência, soaram ainda mais bizarros aqueles eventos. Escrevendo
a quente, Mário Magalhães, mesmo assim, consegue objetividade. Quase ia dizendo
“distanciamento”, mas este vocábulo não pode ser aplicado à obra, escrita no
torvelinho daquele ano. Quando o compulsei, na livraria, pinçando trechos aqui
e ali, vislumbrei que devia lê-lo. Entretanto, outros volumes estavam na fila e
só agora cumpri minha vontade.
Breve biografia do autor:
Mário Magalhães nasceu no Rio de Janeiro, em abril de 1964. Formou-se
em jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ e trabalhou nos jornais Tribuna
de Imprensa, O Globo, Estado de São Paulo Folha de São
Paulo. Neste último, exerceu os cargos de repórter especial, colunista e ombudsman.
Profissional premiadíssimo – recebeu em torno de vinte prêmios e menções
honrosas no Brasil e no exterior – é também autor da obra Marighela, O
Guerillheiro Que Incendiou O Mundo. Mário trabalha também no site de
notícias The Intercept.
O livro:
Já no início, o autor nos avisa que este
“É um livro indignado em um tempo que exige indignação. Os editores dos dicionários britânicos Oxford apontaram “tóxico” a palavra do ano. Seu sentido aplica-se do comportamento ao poder. Como se verá, ou recordará, o Brasil de 2018 foi insaciável produtor de toxicidade.” (Prólogo, página 16)
O livro traz os capítulos por datas, como se fosse uma
espécie de diário – recurso bastante condizente com o espírito dos textos. Começa
falando da matança desarrazoada de macacos por causa do surto de febre amarela.
Tal fato ocorrera nos anos anteriores e a população executa os bichos, na
completa ignorância da diferença entre o que sejam portadores-vítimas e reais
transmissores. Os macacos contraem os vírus, mas não os passam aos humanos. Funcionam
como infelizes sentinelas da presença silenciosa da doença.
2018 é ano eleitoral. O país vai às urnas, escolher seu
presidente da república. E a lava-jato mantém sua presença, capitaneada por Sérgio
Fernando Moro. Diz-nos o autor:
“A prioridade desses eleitores é vencer Lula, com seu impedimento, alguém alinhado com o sucessor de Fernando Henrique Cardoso. Moro seria uma opção competitiva para os brasileiros que apoiaram – e ainda apoiam – postulantes do PSDB, agremiação que conquistou duas vezes o Planalto, nos pleitos de 1994 e 1998 (com FHC) e amargou o vice em 2002 (José Serra), 2006 (Alckmin), 2010 (Serra) e 2014 (Aécio Neves). No Datafolha recém-saído do forno, Lula atropela Alckmin com 19 pontos de distância, 49% a 30% a favor do antecessor de Dilma Rousseff. Nem os aduladores cogitam Aécio e Serra presidenciáveis.” (página 40)
Um dos pontos de maior tensão do livro, é indubitavelmente,
a morte de Marielle, no Rio de Janeiro. Executaram-na e o motorista com vários
tiros. Vejamos como Mário se refere ao caso:
“Quem matou Marielle para calá-la teve de ouvir muita gente gritando em nome dela. O coro compartilhou suas ideias, celebrou seus ideais, reviveu seus combates. Vozes que hibernavam em mudez, na cidade e no país de infindos 7 a 1, esgoelaram-se contra a covardia. Uma réstia de esperança iluminou o fim da noite.” (página 70)
Seguem o tempo e os eventos. Sob o comando de Temer, vice de
Dilma que sofrera o impeachment, explode uma greve de caminhoneiros e o governo
se complica:
“O céu nublou. Deputados, senadores e ministros do STF percebem a possibilidade de Temer não completar o mandato. Um senador da base governista sugeriu depor o vice de Dilma. José da Fonseca Lopes, presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros, disse que há ‘um grupo muito forte intervencionista’ que ‘quer derrubar o governo’. Não seriam, afirmou, caminhoneiros. Há ‘infiltrados’, denunciou o Planalto.” (página 136)
Neymar comparece nas páginas deste livro, sob o título ambíguo
de “Na copa, Neymar caiu”:
“Com tamanhas aspirações, todas legítimas, Neymar não foi nem o destaque do time do técnico Tite na fase inicial. Nos dois primeiros jogos, Philippe Coutinho se sobressaiu. No terceiro, Paulinho. O camisa dez foi a vítima de mais da metade das 19 faltas cometidas pelos suíços, amarelados três vezes ao atingi-lo. facilitou a vigilância helvética ao segurar demais a bola. Às vezes, na intermediária, de costas para o goleiro Sommer. Desacelerou os ataques. Pareceu imaginar que se desenrolava o confronto Neymar, e não Brasil, versus Suíça. Houve lances em que, ao ser abalroado, exagerou na coreografia das quedas, e aí semeou sua desgraça. Chamou a atenção também pela alegoria capilar, e o compararam a uma calopsita e ao Canarinho Pistola. Mancava ao sair do gramado.” (página 156)
Uma das coisas mais esdrúxulas dos debates entre candidatos,
transmitido pela televisão, foi a atuação do cabo Daciolo, de acordo com
Magalhães:
“Daciolo provou Ciro Gomes sobre a conspiração pela ‘Ursal’, a temível União das Repúblicas Socialistas da América Latina. O candidato do PDT ignorava, como as torcidas inteiras do Guarany de Sobral e do Flamengo, do que se tratava. Na Ursal dos desvarios daciolistas, bolcheviques tropicais apagariam as fronteiras dos países, no espírito internacionalista da canção “Imagine”. A Ursal é uma brincadeira criada 17 anos atrás por uma professora conservadora. Somente lunáticos acreditaram na sigla, e charlatães filosofaram a sério sobre o que era traquinagem.” (página 182)
Um dos personagens mais importantes daquele ano de 2018 foi
o ex-presidente Lula. Preso em Curitiba, para onde fora conduzido em “condução
coercitiva” (e com isto, aprendi mais uma expressão jurídica). Alijado do processo
eleitoral, Magalhães descreve:
“Os partidários de Lula, reconhecendo que a candidatura será proibida, cultivam a esperança de que 2018 reproduza 1945 e Haddad herde os votos. Os antagonistas dos petistas temem a reencarnação, como Lula-Haddad, da tabelinha Getúlio-Dutra. Em sua cela em Curitiba, o ex-presidente conhece bem esses fatos, sobre os quais leu no terceiro volume da biografia Getúlio, de Lira Neto. Lula terá mais tempo do que Getúlio Vargas, em 1945, para dar o seu recado. Nada garante que a história se repetirá.” (página 195)
2018 também é o ano em que, além das agendas políticas e de
uma morte que deu o que falar, aconteceu o incêndio do Museu Nacional,
vinculado à UFRJ. Sucateado, sem verbas para ser cuidado, era previsível que
tal acontecesse:
“Debulharam lágrimas de hipocrisia sobre as cinzas. ‘É um dia triste para todos brasileiros’, disse Michel Temer. Por que destinariam em oito meses menos de R$ 100 mil à instituição cujo ‘valor para nossa história não se pode mensurar’? Gerido no âmbito do Ministério da Educação, o museu zelava por herança cultural valiosíssima. O presidente rebaixou o Ministério da Cultura a secretaria, antes de recuar. Supondo que poupava o chefe, o ministro Carlos Marun o interpretou: ‘Está aparecendo muita viúva apaixonada, mas na verdade essas viúvas não amavam tanto assim o museu.” (página 200)
No capítulo referente à facada perpetrada contra Bolsonaro,
em plena campanha eleitoral, Mário Magalhães conta uma fábula:
“Um escorpião pede para atravessar um lago nas costas de um sapo. O sapo se recusa a dar carona por recear uma picada assassina. O escorpião alega não saber nadar; argumenta que não envenenaria o anfíbio, porque afundaria junto com ele. O sapo coaxa: ‘Então, tá’ no meio da travessia, o escorpião o atraiçoa. Agonizando, o sapo pergunta o motivo do gesto suicida. O escorpião esclarece, antes de se afogar: ‘Porque é da minha natureza.” (página 203)
Termina o capítulo, fazendo a ligação entre a fábula contada
e a facada sofrida pelo então candidato:
“Na sexta-feira, deitado em seu leito, o candidato gravou um depoimento. Agradeceu a Deus, médicos e enfermeiros. Abatido, relembrou a investida: “Parecia apenas uma pancada na boca do estômago [...] A dor era insuportável, e parecia que tinha algo mais grave acontecendo.’ Lamentou se ausentar do desfile militar do 7 de Setembro. E falou: ‘Nunca fiz mal a ninguém.’ Na manhã de sábado o transferiram para São Paulo, onde Bolsonaro posou para a foto cuja legenda bem poderia ser “Porque é da minha natureza.” (páginas 207/208)
Indiscutivelmente, este Sobre Lutas e Lágrimas é um
livro bem escrito. De certa forma, me faz lembrar de outro, 1964 – O Ano Que
Não Terminou, de Zuenir Ventura. Mário Magalhães tem autoridade para falar
dos fatos – respeitabilidade conquistada por anos de jornalismo bem conduzido.
Vivemos uma época de ódios polarizados, o que não invalida
ou apaga fatos e atitudes. A democracia é sempre um sistema em que correlação
de forças apresentam seus argumentos e influências; como num jogo, ao final,
vencem aqueles que conseguirem costurar melhor seus acordos ou conseguiram melhor
trânsito de influências.
A meu ver, criou-se uma falácia ao se alegar que “o povo não
sabe votar”. Se não sabe, quem saberá? Os americanos, que elegeram (ainda que
num sistema indireto) o presidente Trump? Vota-se em quem se acredita representar
valores. Talvez e – aí sim, admito – devamos aprender a votar pensando em
interesses coletivos, em detrimento de interesses locais ou individuais.
Mas isto é, a meu ver, uma longa e difícil evolução. Penso que,
enquanto eu viver, pelo menos...
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