Título em português: Eu, Tituba,
Bruxa Negra de Salem
Autora: Maryse Condé
Tradutor: Natália borges Polesso
Edição: 1ª
Editora: Rosa dos Tempos
Copyright: 2019
ISBN: 978-85-01-11723-6
Gênero: Romance
Origem: Literatura Francesa
Bibliografia (incompleta): Heremakhonon (1976);
Une Saison à Rihata (1981); Ségou: Les Murailles de Terre
(1984); Ségou: La Terre em Miettes (1985); Eu, Tituba: Bruxa Negra de
Salem (1986); A árvore da vida (1987); Traversée de la
mangrove (1989); An Tão Revolysion (Play, 1989); Tree
of Life (1992); O último dos reis africanos (1994); Winward
Heights (2008); Le coeur à rire et à pleurer - Souvenirs de mon
enfance (1999) ; Célanire cou-coupé (2004); Histoire de
la Femme Cannibale (2007); Como dois irmãos (Play, 2007); Victoire,
les saveurs et les mots (2010) ; La Vie sans Fards (2012)
As feiticeiras de Salem... diante desta referência, acudiram-me à memória certos fatos já lidos muito antes. Arbitrariedades de uma sociedade de puritanos, na localidade americana de Salem... puritanos protestantes do século XVII que levaram ao cadafalso muitas mulheres suspeitas de bruxaria. Até onde vai o fanatismo, em todas as épocas? Lembranças misturadas à indignação vieram à tona diante da capa deste Eu, Tituba, Bruxa... Negra de Salem, de Maryse Condé. Dela, já havia lido Le Coeur à Rire et à Pleurer. Já sabia, de antemão, leria uma história trágica, mas muito bem escrita, de uma escritora que sabe o que faz. E, tão logo iniciei a leitura, a obra me pegou, a leitura engrenou e emoções fluíram.
Maryse
Boucolon, premiadíssima escritora, detentora do Nobel alternativo de 2018,
nasceu em Guadalupe, 11/02/1937. Escritora francesa, doutora em Literatura
Comparada pela Universidade de Sorbonne, Paris. Difusora de cultura e da
história africana das Caraíbas, ela se casou em 1959 com o ator guineano
Mamadou Condé; o nome de casada, Maryse Condé tornou-se referência de boa
literatura, com temas de cultura e história dos afrodescendentes.
Num
dos mais objetivos inícios que já tive oportunidade de ler, Maryse Condé assim
começa seu romance:
“Abena, minha mãe, foi violentada por um marinheiro inglês no convés do Christ the King, num dia de 16**, quando o navio zarpava para Barbados. Dessa agressão nasci. Desse ato de agressão e desprezo.
Quando, longas semanas mais tarde, chegamos ao porto de Bridgetown, ninguém notou a condição de minha mãe. Como ela não tinha mais do que dezesseis anos e coo era bonita, com sua tez de um negro azeviche e suas bochechas altas com o desenho sutil das cicatrizes tribais, um rico fazendeiro de nome Darnell Davis a comprou por bastante dinheiro. Junto com ela, ele adquiriu dois homens, axanti também, vítimas das guerras entre fânti e axanti. Ele destinou minha mãe à sua mulher, que estava inconsolável por ter deixado a Inglaterra e cujo estado físico e mental necessitava de cuidados constantes. Pensou que minha mãe saberia cantar para distraí-la, quiçá pudesse dançar e realizar aqueles truques que, acreditava, os negros gostassem de fazer. Destinou os dois homens à sua plantação de cana-de-açúcar, que crescia bem, e a seus campos de tabaco.” (página 25)
Darnell
descobre, pouco depois, que havia comprado uma escrava grávida e, contra a
vontade da sua própria esposa, decide punir Abena e a destina a outro axanti
que havia comprado, Yao. Quando ela entra na cabana do homem a que fora dada,
ele percebe imediatamente seu estado:
“Minha mãe entrou na cabana de Yao um pouco antes da refeição da noite. Ele estava deitado na cama, deprimido demais para cogitar comer qualquer coisa, muito pouco curioso com essa mulher cuja vinda lhe foi anunciada. Quando Abena apareceu, ele se apoiou sobre um dos cotovelos e murmurou:
— Akwaba! [Bem-vinda]
Depois ele a reconheceu e exclamou:
— É você.
Abena se verteu em lágrimas. Tempestades demais se acumularam a longo de sua curta vida: seu vilarejo incendiado, seus pais estripados ao tentar se defender, sua violação e, agora, a separação brutal de um ser tão doce e tão desesperado quanto ela mesma.
Yao se levantou, e sua cabeça tocou o teto da cabana, pois esse negro era tão alto quanto uma laranjeira-do-mato.
— Não chore. Não vou te tocar. Não vou te fazer mal algum. Acaso não falamos a mesma língua? Não adoramos o mesmo deus?
Então ele baixou os olhos até o ventre da minha mãe:
— É o filho do senhor, não é?
As lágrimas, ainda mais quentes, de vergonha e de dor, brotavam dos olhos de Abena:
— Não, não! Mas ainda assim é o filho de um branco.
Enquanto ela estava lá, na frente dele, cabeça baixa uma imensa e doce compaixão preencheu o coração de Yao. A ele pareceu que a humilhação dessa criança simbolizava aquela de todo seu povo, derrotado, disperso, leiloado. Ele secava as lágrimas que escorriam dos olhos dela.
— Não chore. A partir de hoje, seu filho é o meu filho. Ouviu? E que se cuide aquele que disser o contrário.” (página 26/27)
A
narradora de Maryse, a própria Tituba, nos relata que Yao e sua mãe passaram a
noite um nos braços do outro, castos como pai e filha. Somente uma semana após estes acontecimentos
os dois iniciam suas relações como homem e mulher. Mas os fatos aguardavam;
quatro meses depois, nasce uma menina e o trecho que descreve o evento segue
abaixo:
“Minha mãe chorava, porque eu não era um menino. Parecia que o destino das mulheres era ainda mais doloroso que o dos homens. Para que se libertassem de sua condição, elas não deveriam passar pelas vontades dos homens que as mantinham em escravidão e deitar na cama deles? Yao, ao contrário, ficou contente. Ele me pegou com suas grandes mãos ossudas e besuntou minha testa com sangue fresco de uma galinha depois de ter enterrado a placenta da minha mãe debaixo de uma mafumeira. Em seguida, me segurando pelos pés, apresentou meu corpo aos quatro cantos do horizonte. Foi ele quem me deu o meu nome: Tituba. Ti-tu-ba.” (página 28)
Abena
sofre o assédio sexual do seu amo Darnell e, para se defender, ela comete o
crime definitivo de ferir um homem branco, embora não o tivesse matado. Como resultado,
Tituba assiste ao enforcamento da mãe, nos galhos de uma mafumeira. Yao fora
vendido para outra plantação e a pequena Tituba, expulsa definitivamente das
terras do senhorio.
Esta
sequência de acontecimentos dramáticos é amenizada com a introdução, na
história, de outra personagem:
“Uma velha me acolheu. Parecia corajosa, pois havia visto morrer torturados seu companheiro e seus dois filhos, acusados de fomentar uma revolta. Na verdade, ela só tinha os pés sobre a nossa terra e vivia constantemente na companhia deles, cultivara o extremo dom de se comunicar com os invisíveis. Não era uma axanti como minha mãe e Yao, mas era uma nagô, da costa, cujo nome, Yetunde, sofrera uma transformação para o crioulo, Man Yaya. As pessoas tinham medo dela. Mas vinham de longe para vê-la por causa do seu poder.” (página 32)
Nesta
passagem está demonstrada um dos maiores valores deste livro excelente: o
respeito à cultura das nações africanas. Seus deuses, suas crenças, aparecem na
obra e explicam muito da condução dos personagens. Ideias como reencarnação,
comunicação entre seres humanos e espíritos são frequentes. Man Yaya, por
exemplo, mesmo depois de morta continua a velar por Tituba, bem como, um pouco
mais tarde, sua mãe Adena e seu pai adotivo Yao.
Nossa
protagonista tem os mesmos dons de Man Yaya, ou quase, realizando curas com
rezas e beberagens. Numa sociedade majoritariamente branca, purista e racista,
não demora muito para Tituba ser levada ao tribunal como suspeita de bruxaria. Não
é condenada, mas vendida a um outro senhor, desta vez um homem chamado Samuel
Parris.
A
esposa deste senhor, Elizabeth Parris é outra personagem de alguma importância
na história. Muito doente e acamada, recorre aos dons paranormais de Tituba e
consegue alguma melhoria. Tituba vive um amor intenso com John Indien, trabalhador
nas mesmas terras que ela.
Mal
sabe Tituba que o enredo desta história se modificará por completo, com sérias
injunções para a sua vida e de toda a comunidade da pequena reacionária cidade
de Salem.
Aqui
abro um enorme parêntese necessário ao esclarecimento do que, de fato, era o
tal puritanismo tão forte em Salem. A revolução puritana teve sua origem na
Inglaterra, sob matriz calvinista. Era contrário tanto à Igreja Católica quanto
à Igreja Anglicana; seus partidários tentavam escoimar os resíduos do
catolicismo da Igreja inglesa, trazendo-a para mais perto dos valores
calvinistas.
De
acordo com a revista Galileu (www.revistagalileu.globo.com),
em fevereiro de 1692, a filha do reverendo de Salem, Samuel Parris (que
adquiriu Tituba) caiu doente, tendo alucinações e contorções de dor. Iguais
sintomas estranhos aconteceram com uma prima e com um outra garota, ambas com
onze anos de idade. Pressionadas pelas autoridades, as três menores atribuíram
tudo às intervenções de Tituba, de Sarah Osborne, uma idosa pobre e Sarah Good,
uma mendiga.
Iniciado
o julgamento, Tituba, provavelmente para se livrar da morte que a rondava, confessou
ser uma serva do diabo e acusou outras mulheres de tramarem contra os puritanos.
Ainda de acordo com o artigo, somente com a intervenção do governador, William
Phipps, a caça às bruxas terminou. Consta que a própria filha de William estava
entre as acusadas.
Apesar
de várias pessoas terem morrido na localidade, o julgamento do qual Tituba participara
é anulado, os nomes dos envolvidos limpos e determinados valores pagos aos
descendentes dos réus.
O
julgamento das bruxas de Salem passou, então, à História como um dos casos de
histeria ou paranoia coletiva. Há teses que atribuem os sintomas esquisitos das
crianças à ação de fungos encontrados no pão e que provoca espasmos musculares,
vômitos e alucinações.
A
História não registra qual o fim de Tituba. Maryse Condé, entretanto, se
apropria do acontecido a esta personagem da vida real e lhe dá um tratamento
ficcional; de acordo com a autora, então, Tituba retorna para sua terra natal,
Barbados, senhora de suas condições paranormais, influindo, por isto mesmo, nos
acontecimentos do país.
Eu,
Tituba, Bruxa Negra de Salem é, portanto, uma obra
com inclusão forte de fatos misturados à ficção – técnica muito utilizada nos
bons romances históricos. Encaixa-se no projeto literário desta ótima escritora
(pouco conhecida no Brasil) de valorizar de defender a cultura afrodescendente.
Leitura
de fácil entendimento, enredo linear, constitui-se num libelo contra o racismo
de uma comunidade predominantemente branca, com fortes tons de assustador preconceito
religioso, bastante atual para nossos tempos e sociedade, na qual parece,
ser-se participante da diferenciação religiosa vai se tornando condenável e
insuportável.
Recomendo
o livro de Maryse Condé por algumas razões, mas nenhuma mais importante do que
a de uma boa leitura – coisa ótima nestes tempos de isolamento social pela
ameaça da propagação do coronavírus. Saber mais a respeito de um fato
importante, histórico e que pode nos alertar sobre nossa atualidade e a
compreensão do direito de etnias afrodescendentes são dois outros motivos para
se ler esta obra. Há um prefácio bastante interessante de ninguém menos que Conceição
Evaristo, escritora brasileira.
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