Autora: Carmen Laforet
Tradutor: Rubia Prates Gordoni
Editora: TAG Livros/Alfaguara
Copyright: 1945
ISBN: 978-85-5652-072-2
Gênero literário: Romance
Origem: Espanha (Catalunha)
Bibliografia: Nada (1944); A
ilha e os demônios (1950); A nova mulher (1955); A
Insolação (1963); Ao virar a esquina (2004); O piano (1952);
Um namoro (1953); A ligação (1954); Os Colocados (1954);
A Viagem Engraçada (1954); A Garota (1954); Um
Casamento (1956); A menina e outras histórias (1970); Gran
Canaria (1961); Parallel 35 (1967) livro de viagens,
reeditado em 1981 com o título de Minha primeira viagem aos EUA. Artigos
literários (1977), compilação de artigos; Posso contar com você
(1965-1975) (2003), epistolar com Ramón J. Sender. De
coração e alma (1947-1952) (2017), epistolar com Elena Fortún.
Nada, romance debutante de
Carmen Laforet. Que impressões me ficam desta leitura que começou arrastada e
depois se acelerou? Uma escritora que produz aos vinte e três anos pode compor
um livro relevante para a literatura espanhola? Pode um livro sobre a desagregação
de uma família tratar do assunto sem um pingo de emotividade? Estas questões,
suscitadas a partir do material de apoio da revista que compõe o kit do mês de
novembro de 2018, ficaram voejando na minha mente, enquanto lia o livro. A resposta
é sim. Nada impressiona exatamente por ser uma obra que analisa a decadência de
uma família, no ambiente do pós-guerra civil espanhol, sem qualquer concessão
à emoção. Um livro que me incomodou exatamente por isso e por "otras cositas
más". A tia Angustias, Glória, Román, Juan e Andrea, a protagonista e narradora
desta história, compõem uma família estranha. Carmen as pôs em cena como se fossem
fantasmas de si próprios, seres que não se deixam capturar pela atividade leitora na totalidade. Ambíguos.
Ou, modernamente, poderiam, talvez, serem classificados como portadores de
transtorno bipolar.
Carmen Laforet Diaz é catalã, da
cidade de Barcelona; seu nascimento deu-se em 06/09/1921. Faleceu em Madrid, em
28/02/2004. É a filha mais velha de um arquiteto de Barcelona e uma professora
de Toledo. Residiu por um tempo, acompanhando a família, nas Ilhas Canárias. Quando
a mãe de Carmen morreu, o pai se casou de novo; entretanto, a relação da autora
com a madrasta nunca foi boa. Estreou na literatura com o presente romance Nada
e foi ganhadora do desejado prêmio Nadal. Laforet casou-se em 1946 com o
crítico literário Manuel Cerezales, com quem teve cinco filhos, dos quais dois
deles – Agustín Cerezales Laforet e Silvia Cerezales Laforet – tornaram-se também escritores.
Contextualização necessária: a Guerra
Civil Espanhola se deu entre 1936 e 1939, antepondo republicanos, de um lado, e
os nacionalistas, de outro. Os republicanos eram progressistas e urbanos,
enquanto os nacionalistas, liderados pelo General Franco, eram um misto de
monarquistas, carlistas e católicos.
Conflito de várias facetas, ora foi
analisado como luta de classes, guerra religiosa, batalha entre ditadura e
democracia republicana, revolução e contrarrevolução, embate entre fascismo e
comunismo. Seja como for, o resultado nós todos sabemos: venceram os nacionalistas
e, a partir de 1939, a Espanha foi governada pelo General Franco até a morte
deste, em novembro de 1975.
Deste ambiente de destruição –
vários desmandos e assassinatos foram cometidos pelas duas facções – sai um
país não só derrotado em sua economia, como também profundamente tumultuado no
quesito valores humanos.
É neste ambiente que a catalã
Carmen Laforet vai plantar sua narrativa. Andrea é uma jovem, vinda do
interior, para estudar letras na capital. Sua mala vem abarrotada de livros e
de sonhos, para a casa dos avós – da qual somente se recordava os tempos idos,
mais felizes:
“Comecei a seguir – uma gota num rio – a massa humana que, carregada de malas, afluía para a saída. Minha única bagagem era uma malona muito pesada – porque estava quase cheia de livros – que eu mesma levava com toda a força da minha juventude e da minha ansiosa expectativa.
“Um ar marinho pesado e fresco invadiu meus pulmões com a primeira sensação confusa da cidade: uma massa de casas adormecidas, de lojas fechadas, de postes de luz como sentinelas bêbados de solidão. Uma respiração profunda, difícil, vinha com o murmúrio da madrugada. Muito próximo, às minhas costas, além das vielas misteriosas que levam ao Borne, sobre o meu coração excitado, estava o mar.” (página 15)
O endereço de destino é a rua
Aribau, onde residiam seus parentes e onde ela deveria se ajeitar, enquanto
cursava a faculdade. A guerra e o tempo, entretanto, já haviam desgastado o
imóvel, deixando-o, metonimicamente, com os degraus da escada gastos e em nada correspondendo
àquela casa guardada na memória de Andrea. O primeiro contato com aquela gente
é de péssima impressão:
“Em toda aquela cena pairava algo de aflitivo, e no apartamento um calor sufocante, como se o ar estivesse parado e podre. Ao erguer os olhos, vi que várias mulheres fantasmagóricas tinham aparecido. Uma delas, vestida de preto com uma roupa que lembrava uma camisola, quase me causou arrepios. Tudo naquela mulher parecia horrível, calamitoso, até a esverdeada dentadura com que sorria para mim. Era seguida por um cachorro que bocejava ruidosamente, também ele preto, como uma extensão de seu luto. Depois me disseram que era a empregada, mas nunca nenhuma outra criatura me causou uma impressão tão desagradável.” (página 18)
A avó não reconhece de imediato a
neta. Seu comportamento é mostrado como o de uma pessoa que não tem posse saudável de suas
memórias, de suas percepções. Entretanto, como uma alma penada, ela nunca parece dormir, sempre aparecendo em momentos e em cômodos inesperados, quer durante o
dia, quer durante a noite.
Juan é casado com Gloria, num
estranho relacionamento. Ela, sempre preocupada com a própria aparência, à qual
atribui extrema importância e ele, um pintor sofrível. Andam sempre a se
dizerem desaforos e, às vezes, Juan chega até mesmo à violência contra a
mulher.
Román é um músico extraordinário,
mas que abre mão de sua habilidade e se deixa levar pela vida medíocre. Vivem também,
Juan e Román, batendo boca e se agredindo, muito embora, na visão da vovó, a
relação entre os dois fosse de outro teor:
“Juan era loiro e Román muito moreno, e eu sempre os vestia com roupa igual. Aos domingos iam à missa comigo e com seu avô... No colégio, se algum menino brigava com um deles, o outro logo aparecia para tomar sua defesa. Román era o mais esperto... mas com eles se gostavam! Para as mães, os filhos são todos iguais, mas esses dois eram os meus preferidos... porque eram os mais novos... porque foram os mais infelizes... Principalmente o Juan.” (página 46)
Angustias – nome extremamente
bem-colocado – funciona como uma espécie de guardiã da moral da família, embora
ela não seja pautada exatamente pela moral ilibada. Mais um elemento em
desagregação dentro daquela casa por si já desagregada:
“Saltei da cama tonta de frio e de sono. Tão assustada, que tinha a sensação de não poder me mexer, quando na verdade dois só o que fiz: em poucos segundos arranquei as roupas da cama e me enrolei nelas. Ao passar pela sala, joguei o travesseiro numa cadeira e fui até o vestíbulo envolta numa manta, descalça sobre o piso gelado, justamente quando Angustias chegava da rua puxando Gloria pelo braço, seguida por um taxista com suas malas. Vovó também apareceu, atarantada e balbuciante ao ver a cena.” (página 93)
Mais tarde, ficamos sabendo – e isto
não é um spoiler – que Gloria também é um fantasma de si mesmo, uma alienada, que vive
alimentando a exaltação de como ela é boa demais, de como é bonita demais. Oscila
ela também, entre outras coisas, entre seu marido Juan e Román, como se pode
ver no diálogo entre Gloria e Román:
“— Fala baixo!... Você tem muito o que esconder, portanto vê se baixa o tom... Você sabe muito bem que tenho testemunhas que podem dizer para o seu marido como você uma noite foi se oferecer para mim no meu quarto e de como te enxotei a pontapés... Já podia ter feito isso, se quisesse me dar ao trabalho. É bom lembrar que eram muitos soldados no castelo, Gloria, e que alguns deles moram em Barcelona...
— Naquele dia você me embebedou e me beijou... Fui no seu quarto porque te amava. Você caçoou de mim da pior maneira. Escondeu os amigos lá dentro, que morreram de rir da minha cara, e me insultou. Disse que não estava disposto a roubar o que era do seu irmão. Eu era muito nova, garoto. Naquela noite em que te procurei, eu me considerava separada do Juan; tinha decidido deixá-lo. o padre ainda não tinha selado o casamento, não se esqueça.” (página 194)
Román é descrito como um homem
muito bonito, destes que poderia ter qualquer mulher a seus pés, desde que o
quisesse.
São várias as reviravoltas do
enredo. Como disse Yuri Al’Hanati em seu canal Livrada, no YouTube, Nada
soaria como uma novela mexicana não fosse o contexto em que foi escrito. Concordo
plenamente. A exploração do triângulo amoroso (Gloria-Juan-Román), os dramas de
tons acentuados, envolvendo os irmãos Juan e Román, Angustias e Gloria, a caricaturização
da empregada Antonia, de Angustias – tudo somado sugere realmente uma narrativa
sentimentaloide – não fossem dois aspectos discordantes: o pano de fundo temporal
em que acontecem as ações, o pós-guerra decadente e a completa ausência de sentimentos
com que tal história é narrada. É estranho que a autora, embora não tivesse
dotado sua narrativa de sentimentos, consiga expressar uma sensibilidade tão
grande. Não há julgamento, não há condenação das atitudes humanas, mesmo as
mais terríveis.
As cidades arrasadas pela Guerra
Civil espanhola, entre as quais Barcelona, são entremostradas no primeiro
trecho transcrito nesta resenha. As pessoas, arrastando suas malas, o terminal
abarrotado, cheio de gente sem lugar definido para ir. É de se supor que tais
fatos tenham contribuído fortemente para a desolação, para o desencanto, para a
depressão que se estendera na população, por muito tempo, após o término do conflito.
E, ainda, outro item de
contextualização vem ajudar a compor este quadro de desagregação: é que a própria
região da Catalunha tem uma identidade linguística e cultural própria dentro da
Espanha. Uma região que tem sonhado, com intensidade, em sua própria
autonomia...
A autora não lança a mão de muitas
descrições, mas quando o faz, envolve-as num clima fluido, embaçado, nas quais
o mundo da realidade toca o mundo da fantasmagoria, como no trecho que se
segue:
“Lembro-me especialmente de uma noite de luar. Eu estava inquieta depois de um dia muito agitado. Ao levantar da cama, vi no espelho de Angustias todo o meu quarto envolto numa cor de sede cinza e, lá mesmo, uma longa sombra branca. Quando me aproximei, o espectro se aproximou comigo. Por fim pude ver meu próprio rosto borrado sobre a camisola de linho. Uma velha camisola de linho – amaciado pelo roçar do tempo – carregada de pesadas rendas, que minha mãe usara muitos anos atrás. Era estranho contemplar-me assim, quase sem ver, de olhos abertos. Levantei uma das mãos para apalpar minhas feições, que pareciam fugir de mim, e lá apareceram uns dedos longos, mais pálidos que o rosto, seguindo a linha das sobrancelhas, do nariz, dos pômulos conformados segundo a estrutura dos ossos. De todo modo, eu mesma, Andrea, estava viva entre as sombras e as paixões que me rodeavam. Às vezes chegava a duvidar disso.” (página 202)
A TAG me presenteou com dois livros
de autoras catalãs: Mercè Rodoreda (A Praça do Diamante) e agora, Carmen
Laforet (Nada). Provavelmente, autoras que talvez não lesse, se as
encontrasse em algum expositor de livraria, por pura conformação à minha zona
de conforto. A Praça do Diamante foi uma leitura gostosa, tendendo para a
prosa poética. Este Nada, porém, mistura uma poesia que incomoda com a
falta de sentimentos.
Talvez seja isto, a guerra nos
deixa estéreis, sem sentimentos – como vermes que nos entrassem pelos sentidos
e nos deixassem intocados ossos, músculos, órgãos, pele – mas nos roubasse a
alma e o equilíbrio psíquico.
Por último, mas não menos
importante, devo acrescentar que Nada é uma obra que se enquadra no
movimento literário espanhol que convencionou-se chamar tremendismo. Por
este termo entende-se
uma técnica narrativa literária que foi desenvolvida, fundamentalmente, na novela espanhola dos anos quarenta do século XX. Caracteriza-se por uma crueza especial na apresentação da trama, no tratamento dos personagens e no idioma, rasgado e difícil. A relação entre essa tendência e o contexto social do período imediato do pós-guerra é clara, pois parece responder às experiências complicadas dos autores durante a guerra, o que teria condicionado sua maneira de ver e apresentar a realidade no mundo artístico. O tremendismo é uma maneira particular de descrever a realidade sob a ótica do exagero, às vezes usado para criar em terceiros a ideia de que uma tragédia é iminente, com o propósito oculto de induzir uma determinada decisão, que é feita para parecer o único capaz de evitar o evento nefasto. O romance que começou o estilo foi A família de Pascual Duarte, de Camilo José Cela. Outras novelas são A Fiel Infantaria, de Rafael García Serrano, Filhos de Máximo Judas, de Luis Landínez, Lola, Espelho Escuro de Darío Fernández Flórez, etc. (, acessado em 30/08/2019)
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