
Título original: Wuthering Heights
Título em português: O Morro dos
Ventos Uivantes
Autor: Emily Brontë
Tradutora: Rachel de Queiroz
Edição: Folha de São Paulo
Copyright: 2017
ISBN: 978-85-7949-351-5
Literatura Inglesa
Gênero Literário: Romance
Terminei hoje, dia 20/03/2018, a leitura deste clássico da literatura
inglesa. Vivo ainda os efeitos da leitura; oscilo entre a mais profunda
antipatia do protagonista da história, Heathcliff, e uma enorme compaixão.
Pontos para a Literatura, arte da palavra escrita: o livro acrescenta-me uma
experiência que, afinal, poderia ter sido vivida na vida real, mas, felizmente,
não o foi. E fico sem entender porque uma autora de tão dilatados talentos
narrativos só produziu esta obra. E – mais espantoso ainda – como é que o talento
para a literatura marcou esta família? Afinal, as três irmãs Brontë, Emily,
Charlotte e Anne, além do irmão mais velho, Patrick Branwell (romancista, poeta
e pintor), constituem um caso raro de quatro escritores contemporâneos dentro
da mesma família.
Emily Jane Brontë nasceu
30/07/1818 em Thornton, Inglaterra, a quinta de seis filhos de Patrick Brontë,
vigário na Igreja da Inglaterra e Maria Branwell. Emily era irmã de Charlotte e
de Anne, também escritoras. Além das duas, havia um irmão mais velho, Patrick
Brunwell, pelo que consta, também com grande talento para a literatura, mas sem
se destacar neste campo, não tendo publicado nada. Charlotte é autora do livro Jane Eyre e Anne publicou Agnes Grey.
Emily sempre teve a saúde
comprometida pelas condições severas do lugar onde moravam. A casa era muito
perto do cemitério local e a água que lhe chegava estava contaminada. Thornton,
Yorkshire, era um lugar de condições climáticas bastante severas, ventava muito.
A geografia do lugar incluía muito morros. Certamente, tais condições serão
importantes na composição do seu único livro, este O Morro dos Ventos Uivantes, publicado sob o pseudônimo masculino de
Ellis Bell.
No velório do irmão Brunwell,
Emily contraiu forte constipação, em setembro de 1848 e sua saúde piorou
deveras quando contraiu tuberculose. Não quis ser tratada por um médico e
recusou todos os remédios; no dia 19 de dezembro de 1848, ela finalmente
expirou.
O que é um clássico? Uma das
respostas possíveis a esta pergunta é uma obra que consegue não se limitar a
seu tempo; mesmo contendo elementos formativos próprios de sua época, consegue
transpor esses limites e manter o vigor e algo a dizer a períodos distantes do
seu. O Morro dos Ventos Uivantes
enquadra-se perfeitamente dentro desta definição. Apesar de conter informações
características da Inglaterra do Século XIX, em pleno Romantismo, sua história
de amor, singular para a época, pela narrativa tensa, chega até nossos dias
conservando o mesmo poder encantatório. Esta história forte, sobre amores
atormentados, de fortes apelos sexuais, foi recebida pela crítica da época com
muitas reservas. Não acreditavam que aquilo pudesse ser escrito por uma mulher.
Quando O Morro veio a lume, Charlotte Brontë já havia publicado a segunda edição
do seu Jane Eyre (este sim, bem
recebido pela crítica).
Se pudéssemos resumir o livro
tratado aqui em uma palavra, talvez a melhor fosse ressentimento. O protagonista Heathcliff é um menino órfão, trazido
após uma viagem, pelo Sr. Earnshaw. Hindley, o filho legítimo logo se enciúma, por
achar que está perdendo a afeição do pai. Catherine se afeiçoa
rapidamente ao pequeno que chega.
Morto o casal que o adotara,
Heathcliff passa a sofrer humilhações constantes e se torna melancólico e
bruto. Catherine e ele desenvolvem um amor muito grande um pelo outro, mas ela
tem de fazer uma escolha e esta recai sobre Edgar Linton, por ele ter condições
de sustentá-la. Heathcliff parte da propriedade de Wuthering Heigths e, quando
retorna, está rico (o romance não nos explica por que meios).
Catherine tem uma filha e morre ao
dar à luz. Desesperado, Heathcliff quer se vingar de todos; seu amor
correspondido, mas não desfrutado, as humilhações pelas quais havia passado são
os motores que desatam a personalidade de um dos mais intrigantes personagens
de toda a literatura. Beirando, por vezes, a loucura, tendo alguns laivos de
consideração para com algumas pessoas, como a empregada Ellen Dean (apelidada
Nelly), talvez ele fosse classificado, hoje, como portador de bipolaridade.
Heathcliff é odioso, sob vários
aspectos. Entretanto, quando o leitor vai acompanhando sua formação, ao ter
ciência dos maus tratos a que fora submetido após a morte dos seus benfeitores,
consegue pelo menos entender o móvel de suas atitudes.
O Morro dos Ventos Uivantes tem um fluxo de tempo lento, comum nos
romances da época. Tempo lento, permeado de descrições, não quer dizer
desinteressante. A autora consegue manter nossa atenção pelo clima tenso
criado. E, observe, caro leitor, como a descrição da propriedade, Wuthering
Heights, é a extensão do personagem Heathcliff:
“Um degrau nos levou à sala de
estar da família, sem o intermédio de um vestíbulo ou de um corredor; chamam
aqui a essa peça: ‘the house’ – ‘a casa’ por excelência. Em geral, serve ao
mesmo tempo de cozinha e sala de visitas: em Wuthering Heights, contudo, a
cozinha fora forçada a recuar para outro sítio: pelo menos escutei um rumor de
conversa e um tilintar de utensílio culinários, lá dentro; e não descobri
nenhum sinal de que na grande lareira da ‘casa’ se assava, fervia-se ou
cozia-se pão; nas paredes não luziam caçarolas de cobre nem escumadeiras de
estanho. Mas, a um canto, a luz e o calor se refletiam esplendidamente sobre
filas de imensos pratos de peltre, intercalados com pichéis e jarros de prata,
enchendo prateleira sobre prateleira, até o teto, num vasto aparador de
carvalho. Por falar em teto, creio que o daquela sala jamais fora pintado: sua
anatomia completa exibia-se nua ao olhar curioso, exceto num trecho onde o
escondia um paiol de madeira, carregado de bolos de aveia, de pernis de vaca e
carneiro, e de presuntos.” (página 13)
Este ambiente lúgubre é
completado por uma passagem um pouco adiante:
“— É melhor que deixe a cachorra
quieta – grunhiu o Sr. Heathcliff em uníssono com ela, detendo com um pontapé
demonstrações mais ferozes. – Não está acostumada a receber festas... nem foi
criada para cão de colo. – Caminhando depois para uma porta lateral, tornou a
gritar: - Joseph!
Das profundas da adega, Joseph
resmungou indistintamente, mas não deu indícios de que subia; o patrão mergulhou,
pois, em sua busca, deixando-me vis-à-vis com a feroz cadela e um casal de
mal-encarados e peludos cães de pastor, que com ela partilhavam a ciosa guarda
de todos os meus movimentos. Fiquei imóvel, poi não me agradava nada a ideia de
lhes entrar em contato com as presas; mas, crente de que não entenderiam
insultos mímicos, entreguei-me, infelizmente, ao prazer de piscar e fazer
caretas para o trio; algum trejeito que tomou minha cara irritou a dama que, de
repente, se enfureceu e me saltou aos joelhos. Atirei-a ao chão e corri a
interpor a mesa entre nós. Essa manobra atiçou a matilha inteira: meia dúzia de
quadrúpedes adversários, de vários tamanhos e idades, deixou tocas ocultas e
saltaram para a arena.” (página 15)
O Morro dos Ventos Uivantes tem dois narradores: na primeira parte,
tudo se inicia quando o Sr. Lockwood chega à propriedade de Heathcliff, desejando
alugar por uma temporada a outra propriedade, Thrushcross Grange. Nela, há uma
empregada que se tornará amiga do locatário, Ellen Dean, de apelido Nelly.
Nelly será a segunda narradora, contando toda a história pregressa daquela
localidade e do drama vivido por todos os personagens daquela família. Depois,
o Sr. Lockwood retoma a narrativa, quando, muito tempo depois, ele retorna à
localidade e resolve visitar a antiga propriedade.
Por que O Morro dos Ventos Uivantes obteve tamanha permanência, sendo
transformado em filmes várias vezes, sendo lido em pleno Século XXI? Não será
somente pelo talento narrativo da autora, Emily Brontë. A verdade é que ele
trata de temas universais, a questão do amor genuíno abafado por questões
financeiras, vingança, ódio, relações familiares complexas – temas que têm
sempre algo a dizer a qualquer época.
O título dado aqui no Brasil – O Morro dos Ventos Uivantes –, faz com
que muita gente que não leu o livro o julgue uma história de terror. “Ventos
uivantes” remete a um ambiente de terror, uma vez que o adjetivo ‘uivantes’
lembra lobo e nos permite associações com narrativas de lobisomens, por
exemplo. Nada mais enganoso.
Há sim, o ambiente soturno, a
presença de fantasmas, ou pelo menos, a sugestão de presença destes seres, tão
comuns na cultura inglesa:
“Eu não enxerguei nada. Mas nem o
menino, nem os carneiros davam um passo à frente, de modo que os fiz passar
pelo caminho de baixo. Provavelmente o Pastorinho, andando solitário pela charneca,
recordava as tolices que ouvia em cada da boca dos pais e dos companheiros e
por sua vez enxergava também os fantasmas. Contudo, eu mesma já não gosto de
andar no escuro. Nem gosto de ficar sozinha nesta casa triste: é mais forte do
que eu. Será para mim uma alegria quando eles partirem daqui para Thrushcross
Grange.” (página 382)
Quando Emily Brontë fez a opção
de contar a parte mais interessante do romance, os dramas vividos pelos personagens, pela boca de Nelly, ela constrói um narrador não confiável, pois Nelly Dean, nitidamente, tomar
partido, o tempo todo, da sua querida Cathy; Ellen tem a tendência evidente de absolvê-la
de qualquer culpa, e não tem a mesma complacência com os outros. É um narrador-personagem,
isto é, as coisas que narra afetam a ela também.
Finalmente, elementos característicos
do período romântico (século XIX) estão presentes, como a idealização extrema
do objeto do amor:
“— Ela abandonou isso tudo levada
por uma ilusão – respondeu o homem. – Fazia de mim um herói de romance e
esperava da minha dedicação cavalheiresca uma ilimitada indulgência. Mal a posso
considerar uma criatura racional, tão obstinada se mostrou em me transformar num
indivíduo fantástico, baseando-se em sonhos que inventava.” (página 175)
Atravessa o romance o reflexo do
estado melancólico do personagem em elementos da natureza:
“Cathy fitou muito tempo a
florzinha solitária que tremia no seu abrigo e afinal respondeu:
— Não, não quero tocar nela; parece
melancólica, não é mesmo, Ellen?
— Sim – respondi –, quase tão
abatida e estiolada quanto você; seu rosto não tem uma pinga de sangue. Dê-me a
mão e vamos correr. Anda tão lenta que me atrevo a dizer que a acompanho.”
(página 268)
O Morro dos Ventos Uivantes é um romançaço – não fosse um clássico.
Todos os seus personagens são multifacetados: Isabella, Hariton, Heathcliff,
Catherine, Cathy, Hindley, Joseph, o menino Linton... Todos tocados por algo de
loucura, de instabilidade, de excessos emocionais, por ressentimentos, mediados pela voz narradora de uma Nelly parcial,
mas de maior estabilidade emocional. Os dois únicos seres de construção mais
simples, nesta saga familiar, são o Dr. Kenneth e o Sr. Lockwood. A imediata
associação que me vem à mente são as criaturas do escritor russo Dostoiévski:
seres atormentados, perdidos, inquietos.
Livro recomendado a quem ama os
clássicos. E para aqueles que ainda não se aventuraram por algum. Só há um meio
de a gente gostar de ler clássicos: é pegá-los e lê-los.
Nota atribuída: 10,0